a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

13/08/2023

Caputh

Quando, nas casas de banho dos quartos de hotel, os secadores de cabelo já não precisarem de ter o seu cabo enfiado pela parede adentro, à prova de roubo por hóspedes com falta de secadores de cabelo na sua pobrezinha vida, o mundo será possivelmente justo.

O empregado do restaurante do hotel, jovem imigrante original da Indonésia, explicou - nos que, no seu país, as rezas do dia começam às cinco horas da manhã por uma questão de disciplina. (e depois, respondendo à minha pergunta, disse que preferia esse seu país para viver mas é este lugar onde estamos, nas imediações de Berlim, que lhe permite ter uma vida decente, um trabalho, um salário)

Na casa de verão de Einstein, em Caputh, a sala onde ele trabalhava e onde eu me sentei à secretária para escrever no livro de visitas, é aquela que fica mais distante da cozinha, a zona então mais barulhenta da casa.

12/08/2023

Estação de serviço

Era uma família de quatro: pai, mãe, e duas crianças. Comiam o seu almoço debaixo de um chapéu de sol cujo cabo atravessava o centro geométrico da mesa de plástico na zona exterior da estação de serviço. Não pude entender uma palavra do seu alemão, claro, mas que estavam alegres era evidente. A três metros de distância, o nosso carro carregava a bateria enquanto nós descansávamos da viagem. Tangente ao recinto passa a autoestrada onde as filas de automóveis escorriam vagarosamente, interrompidas por numerosos veículos pesados, estes quase todos de matrícula polaca, apesar de ser sábado. A chuva intensa havia finalmente cessado dando lugar a uma tarde quente e húmida. O almoço da família de quatro está servido em caixas de cartão impregnado de gordura. Salsichas de comprimento grandinho e diâmetro também, envoltas numa espessa camada de molho de tomate escorrendo por todos os lados e pelos dedos dos meninos, tudo muito acompanhado de animadas doses de batatas fritas também elas  relativamente gordinhas.

10/08/2023

Bisando

Ainda com o café ao lado, pego no livro da Filipa Leal e abro-o de alto a baixo. Muito devagar, reviro-lhe quatro ou cinco entranhas contíguas, diz ela que projetos políticos. Com c, creio, projectos políticos.
Mesmo assim, apesar do calor das minhas mãos, apesar da minha avidez, as páginas sentem-se estrangeiras, como se tivessem muito frio. O livro fecha-se então de um lado e do outro. E eu, transversal à manhãzinha de verão, continuo a beber o café completamente.