a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

29/12/2019

Uma manhã de verão como está calor

Está o ano quase a concluir o seu curso, do meu ponto de vista numa serra beirã plena de sol e calor. Para um dezembro em fim de vida, isto é calor (as gordinhas almofadas das cadeiras secam como se fosse verão, estou em curso de lavar todas, cabem duas a duas na máquina, sim senhor).
Anteontem, debaixo do sol rasante mas ainda assim no ponto mais alto de que é capaz, e já sabemos que quentinho, estava a carrinha dos correios a parar na rua e estava eu a dar uma voltinha à casa a ver se vislumbrava para onde tinha ido passear o membro mais recente da família, a gata. Porque o meu coração não anda muito valente e estava aqui a apertar-se relativamente a este passeio. Então dou de caras com a vizinha inglesa em leggings coloridas e camisola de manga cava. Ou seja, com uma grande parte da sua coleção de tatuagens também a apanhar sol. Estava, para não variar, a receber encomendas das mãos do carteiro. Eram várias e grandinhas as encomendas. Não ponderei muito e, depois de dar os bons dias, perguntei-lhe se precisava de ajuda com os pacotes. Ora ela, com os referidos empilhados nas mãos, virou-se para mim, sorriu e disse
- Não obrigada. Eu tenho de ir, não posso conversar contigo, os meninos sozinhos em casa, mas logo tu vens conversar quando Ken chegar, sim?
Eu também não tinha intenções de conversar propriamente com ela, mas que fica anotado aqui o mais-ou-menos-convite para ir conversar a sua casa, ai isso fica.
(a foto faz prova de que o novo membro da família regressou do seu passeio e em plena forma)

16/12/2019

No terminal das carreiras

A voz masculina já avisou cinco vezes ao microfone que está a fazer o último aviso. Para quem, como eu, tem um blogue no bolso, isto é demasiado bom para deixar passar.
O hangar em open space do aeroporto de Lisboa não o noto tão transbordante e terrível como das últimas vezes, há melhorias (é preciso dizer, até porque estou sentada numa cadeira especial de aeroporto e não em cima da minha mala ou no chão, 'tá?). E portanto a voz  masculina emitida, com o quinto último aviso, viaja por entre o espaço de menos-pessoas-que-o-costume mais à vontade. E chama, eu diria desesperadamente, a passageira Cecília Ponte. Cecília Ponte a embarcar imediatamente, não volto a avisar! (mas voltou, voltou, voltou, voltou)
Ora eu, que tenho uma mente desocupada e nem sempre limpinha, imaginei a Cecília atarefada na única loja de souvenirs do hangar em open space a escolher mais um perfume ou mais um relógio, por exemplo. E o avião ali fora à espera, onde é que já se viu.
Mentalmente, para ocupar a referida, digo assim à Cecília: ó Cecília, tu não vês que agora já não há o glamour dos sacos de duty free, não vês que os aeroportos já não são espaços aprazíveis onde se encontra uma mesa de café desocupada (como certas mentes) para a gente se sentar a degustar um capuccino com o desenho de uma árvore de Natal na espuma e a folhear a Newsweek, depois da compra da gravata de seda na Tie Rack, não, os aeroportos agora são tipo os terminais das carreiras, só que maiores, e é tudo a despachar, Cecília, desculpa lá coiso. Compras isso depois no Continente com desconto em cartão que vai dar ao mesmo, não te rales.
Ou então a Cecília coitadinha fugiu do aeroporto, nunca saberemos. 
E isto que sabemos deve-se ao facto de haver greves em França e eu estar aqui em vez de num TGV a cortar o ar francês a trezentos quilómetros por hora enquanto bato uma soneca, que bem precisada dela estou.

12/12/2019

Em oxigénio

Os meus alvéolos pulmonares dão-me a entender que não gostam nada de estar na estação dos correios ali a tentar puxar o ar. Que é mau, não sei como quem lá trabalha aguenta aquilo o dia todo. Pesado, saturado. Hoje fiz a segunda volta da entrega dos postais de natal para enviar aos meus clientes (dito assim até parece que tenho imensos). Ora é lá para o segundo número que os alvéolos pulmonares me dão a entender o mal-estar deles. Isto passa-se, em média, quatro ou cinco números antes do meu. A tática é encostar-me à estante que expõe os livros quase todos de autoajuda, para me autoajudar a não ceder à pobreza do ar enquanto espero. Resultam, esses livros, já agora posso afiançar, e tanto é que o seu efeito se estende a toda a estante. Por outras palavras, mantive-me. Mas onde eu queria chegar era ao balcão após o meu número aparecer no tlilim do ecrã. Já cheguei. E entregar a coleção de envelopes ao empregado que já me conhece esta manha dos postais de natal em papel. Agora noto que ele vai olhando para os endereços destinatários, o maroto, e não é que lê o nome do meu Cliente Azul?! Pois lê! Azul?! Trabalha no Azul?! (todo espantado). Às vezes, digo eu orgulhosa, é meu cliente. E, se notar, continuo, aí mais à frente encontra o Mais Novo, o meu Cliente Mais Novo...


Sim, sim, fiquei vaidosa, que eu senti. Deu até, verdade, para esquecer ali um bocado os pobres alvéolos pulmonares ricos em dificuldades. É que foi só quando saí porta fora, decerto sorridente, a pensar nas pessoas que vão receber os meus postais, que me lembrei dos pobres alvéolos, porque estes ficaram claramente num instante de novo ricos. Em oxigénio, coitadinhos.

04/12/2019

Especialidade almoço

Tenho esta dificuldade. Depois de toda a manhã em pé, a falar a falar, não há agarrem-me-senão-vou-a-correr ficar retida numa tal de fila parada para o almoço na cantina. O que há é uma senhora vontade de me sentar. Isso, juntando o facto verídico de eu optar por não calçar sapatos tipo ténis para a ocasião, é tramado. Foi ontem: inaugurei-me e aos meus sapatos ligeiramente elegantes no cliente mais novinho, o Cliente Grande. Ainda por cima, ali é corredores e corredores, ai que eu perco-me, se não fosse ter memorizado os votos de Feliz Natal das diferentes secções colados nas paredes e mais uma ou outra máquina de café com que me cruzei, por ali fora, para aumentar as hipóteses de encontrar o caminho de volta, são técnicas, mas desvio-me, aliás ai perco-me.
Vá lá que com a conversa a fila parada lá se mexeu e cumpre-se a espera. Finalmente munida de tabuleiro nas mãos, uma salada de atum, sopa, uma maçã para mais tarde que cheira tão bem a maçã, vou e, muito mais contente, sento-me junto de algumas das pessoas para quem falei falei. Agora vamos saltar esta conversa que é confidencial e há aquilo dos dados para preservar. Mas comi tudo menos a maçã, de acordo com as previsões. Levantam-se as pessoas minhas anfitriãs, levanto-me eu embora ainda ficasse mais um pouco antes de me lançar na sessão da tarde toda ela também de pé, e eis que bato os olhos numa espécie de colega por um dia que tive recentemente e que apareceu em um post deste blogue. Está sentada, a comer, numa mesa aqui perto. Olá, como está, etc, eu de tabuleiro na mão, ela na sua refeição, não lhe disse grande coisa, não estava a dar jeito, ela tampouco a mim disse. Ficou, portanto, sem saber que pela segunda vez seria mencionada neste blogue. E de novo na especialidade almoço. Que giro.

30/11/2019

Margaret

Não sei porquê, dá-me sempre vontade de escrever no comboio ou no aeroporto. Mas agora é no comboio. Vai todo sujo, este. Leva, imóvel no chão, um m amarelo possivelmente coberto de bactérias gulosas. Da coleção de chocolates em bolinhas coloridas m&m's, já se vê. Mas como é só um, digo m (não foi engano). Ainda é muito cedo, era noite completa quando entrei no comboio, as cadeiras vão quase todas vazias. Sujas e vazias. Também por ser sábado (o irem vazias).
Tenho estado a pensar na vida infeliz de tantos membros da coroa britânica, com particular incidência em Margaret. Por causa de ter andado a ver a série, sim, a série!, "The Crown". Sinceramente prefiro ir num comboio sujo tendo por companhia o m amarelo, possivelmente bacteriano, estendido no chão, do que viver naquele enquadramento de salamaleques e sabe-se lá que constrangimentos, espartilhos e frustrações. Talvez mesmo um certo tédio now and then. Que sorte tive de não calhar nascer naquela família. Nem sequer um pequeno blogue decerto poderia manter para atender a estas vontades que me dão no comboio. E chegando aqui, de repente rematar que o céu já está a clarear dum lado.

29/11/2019

Dia da tampa laranja

Temos, nesta pequena e pacata cidade holandesa, a seguinte organização entre outras, muitas (por acaso adoro). Amanhã passa nas ruas o camião de esvaziamento dos contentores de tampa laranja: plástico e metal, embalagens. Isto é evento para estar nas agendas de todas as casas, naturalmente. Mas basta olhar pela janela e ver que Joop, o vizinho que mal vê - do seu sofá, imagino - umas folhitas de árvore no chão do seu arranjadíssimo jardim, vai soprá-las para a rua com a sua máquina especial de soprar folhas barulhenta, basta ver que Joop, dizia eu, já pôs o seu contentor de tampa laranja em posição, a uns vinte centímetros do lambril do passeio, para dispensar a consulta da agenda. Vou então eu também, munida de casaco e botas apropriados ao tempinho que faz, puxar o nosso próprio contentor com a cor da tampa certa. Vou ser a segunda da rua. Já está escuro, mas dá para distinguir as cores das tampas e pego no contentor certo. Atravesso a rua com ele e posiciono-o alinhado com o de Joop, de soslaio verificando se a posição está corretamente paralela à rua e a distância ao lambril bem medida.  Amanhã os braços-robot do camião que vai passar encontrarão tudo em ordem, o seu encaixe será perfeito, sem folgas nem desvios, nas adequadas ranhuras do recipiente. 
A acrescentar a isto, é um bocado, como direi, surpreendente que o camião ande sempre tão limpinho (é um gosto vê-lo, camião), mas deve-se isso em parte, já refleti, à exata geometria com que toda a vizinhança colabora no orquestrar da situação. Não posso negar que tem a sua beleza. Se amanhã a oportunidade vier, ainda vou e faço uma foto para ilustrar. Porém, era aqui que eu queria chegar, de cada vez que empreendo a colocação do contentor determinado pela organização local - há também o de tampa verde, o da tampa azul e o da cinzenta - sou acometida de uma vontade metidinha de colocar na rua em posição, como se por engano, um com tampa da cor errada. Para testar o sistema, ver que tal. E, quem sabe, é capaz de não ser demais, sair no jornal local.

25/11/2019

O silêncio da cor

Acordei a pensar nisto. São dezenas de milhares de pessoas, só em Lisboa, a vibrar com os concertos do André Rieu. Música, luz e cor. Ou cor, luz e música. A ordem não importa quando o mote é a alegria coletiva. Então porque não sinto eu a urgência para lá ir também, imbuir-me da festa, sair levezinha, como decerto seria, as angústias esmagadas em nada, os medos que me assaltam de noite vestidos de anjos?
Mas depois - o silêncio! - compreendi. Ao contrário do fenómeno André Rieu, quando a orquestra se veste de preto é para que os instrumentos brilhem nos seus metais. É para que as madeiras, tranquilas, aqueçam as notas no ponto. E se forem de cordas, o silêncio da cor dá-lhes o espaço para vibrar. O silêncio da cor. E então a música vem inteira. Pura, suave, dura, chorando ou dançando, agonizando até, ela traz intacta a alma do poeta que a escreveu, sentindo. Como uma oração, um respeito completo, um outro interior. E só assim, sem exuberância adicional, a minha alma insegura, incerta de estar, friorenta, pode abrir-se e, quando capaz, experimentar a alma do poeta como se ela fosse ele. Só assim serei tomada por dentro. Num concerto de André Rieu, estou certa, seria tomada, ah seria, mas apenas por fora.
E depois, sabes, o silêncio da cor, a música que permite sentir, serve de exercício para melhor te compreender. Para melhor ver o mundo. Se não o todo, pelo menos o teu.

23/11/2019

Não é que seja especialista em não cumprir promessas, mas é que me esqueci de mostrar a casa de banho!

E isso não é coisa que se faça, evidentemente. Uma casa de banho tão agradável de se estar, tão renovadinha e bonita, é que não dá vontade de se sair de lá! Até podia correr o risco de perder os meus queridos leitores se não a mostrasse com toda a brevidade. Tss tss.

Berlim-Lagos-Berlim

Já ontem à noite, antes de dormir, notei que ela tinha o computador aberto à sua frente. Senti que não era uma série que estava a entretê-la, que era outra a sua ocupação. Da minha cama na posição de baixo do beliche, podia vê-la com o computador, na sua cama, no outro beliche do compartimento do comboio, na posição de cima. Mas adormeci. A noite foi correndo sobre os carris ibéricos, a um ou outro chocalhar mais decidido acordo, mas realmente não passa nada. 
De manhã, já dentro da manhã, ainda Espanha não está toda feita, vou ao bar do comboio munida do meu livro beber um café com leite de vaca. A bebida está suficientemente quente para me dar tempo de terminar de ler um dos melhores livros que já vi. Capitães da Areia, do Jorge Amado. Estrondoso, belo. Não hei de largar de insistir com as minhas filhas enquanto não o lerem também. Termino a leitura e fico nostálgica ali a beber o resto do café com leite de vaca vendo-me refletida no vidro da carruagem-bar. Estou, claro, mais rica. Muito, mesmo.
Pago o euro e meio que me é pedido e volto para o meu compartimento-cama de quatro ocupantes, duas carruagens a sul. E é aqui, cheia do final dos Capitães da Areia, que entabulo conversa com ela, a única passageira restante deste compartimento. As outras duas saíram mais cedo, deixaram Espanha a meio. Disse-lhe que fui tomar café ao bar, para começar. Ela é magrinha, tem o cabelo loiro e apanhado, e deve ter uns vinte e três anos de idade. Veio a pergunta que vem sempre: porquê fazer a viagem de comboio (quando o avião custa pouco mais do que o café com leite de vaca?). Passado este tema obrigatório, perguntei-lhe onde esteve em Portugal. No Sul, diz ela, em Lagos. Fui com uma amiga que ia fazer surf e como tenho a tese para acabar, fiquei a trabalhar, enquanto ela ia para o surf. Tese de quê, eu quis saber. Medicina. É só o que me falta para acabar o curso, acabar a tese. Ena, dei-lhe os parabéns, desejei-lhe felicidades na sua vida profissional que está agora a começar. Uma nova médica de Berlim, ela vive em Berlim, que foi escrever parte da sua tese em Lagos. E agora, aqui bem perto de mim enquanto escrevo este post, a tese continua a ser escrita, na cama do beliche ao lado. Faltam vinte minutos para a viagem terminar.

22/11/2019

Ia-me esquecendo de mostrar o chão tão lindo que ficou

Passados imensos meses do fim muito querido das obras de renovação realizadas no meu apartamento, deteto, a páginas estas de novembro maduro, que me esqueci completamente de mostrar no blogue quão lindo ficou o chão escolhido para a varanda, a lembrar um pátio alfacinha e coisas boas do género sardinhas assadas, junho, fado e roupa estendida nas cordas a cheirar a omo ou persil (já não me lembro qual é o que cheira bem).

Como não tinha nada em arquivo, pedi à minha filha Saminhas que tratasse do assunto com o seu telemóvel munido de câmara fotográfica bem boa e melhor que a do meu próprio telemóvel, dado que as câmaras fotográficas de que dispúnhamos em separado, tipo só mesmo a fazer de câmaras fotográficas sem quaisquer outras funcionalidades como aquecer a sopa, estender a roupa ou levar o carro à oficina, dado que essas, dizia, sumiram na última ronda de roubos.

E então? Ficou o chão lindo ou não?


(pronto, prometo que foi a última)
(por agora)

19/11/2019

é Huawei, é

Desde que uma certa gata me entrou no coração sem pedir licença, acho que é no coração que isto acontece, a capacidade de memória do meu telefone esperto entrou no vermelho (claro). O telefone vai fazer quatro anos comigo, é preciso notar. Uma relação duradoura, zero riscos no vidro, um querido até certo ponto. Que tenho uma gata não digo, a posse é toda relativa, e em princípio não possuo gatas. Neste caso, foi ela que me escolheu, disse a minha mãe e a minha mãe sabe imenso de gatos em geral (as marradinhas em redor de mim, os olhinhos de fazer muita pena dela, os miados adoráveis e isso tudo). Portanto a gata é que me tem a mim. E eu tenho o telefone esperto (aqui possuo) embora não muito muito. De maneira que ando a tirar fotografias à gatinha (ela ainda é pequena), e não é poucas, é muitas, mas não tenho culpa de ela ser tão fofinha e diabrete. O telefone não é muito esperto, tal como já disse, tendo começado a apresentar a gata ao contrário nas fotos, a sério (posso.mostrar.com, a pedido). Mas, mesmo ao contrário, querido telefone, a gata fica tão bem que até faz impressão, etc. Após uns dias de muitas fotografias ao contrário, que eu não reduzi o ímpeto nem nada, vem o google com uma ideia brilhante de estilizar fotos que ninguém lhe pediu apresentando sugestões em verdes e vermelhos garridos de mau gosto que me lembram um histerismo americano (nunca mais fui ao web summit, por falar nisso). Uma maçada e eu a querer trabalhar. Não liguei, nunca ligo ao que é impingido, obviamente tenho mais o que fazer.
Mas depois o google deu-se conta (fiquei admirada) e veio comentar numa próxima intromissão metidinha e não solicitada que achava haver fotografias ao contrário no meu álbum ou lá o que é aquele backup instantâneo chato. Fiquei admirada, já disse. Principalmente porque daí em diante o telefone arrependeu-se e tornou a fazer as fotografias da gata que me tem direitinhas. Ora eu ah bom, assim 'tá melhor. Um a zero para o google e para já.

*******
Adenda de embelezamento (ao contrário)
Segunda adenda (com rotação administrada pelas tecnologias vigentes)

07/11/2019

O dois-em-um

A vizinha inglesa do botox pintou o cabelo de uma nova cor. Tenho-a visto de manhã, quando chega a carrinha do correio. O condutor e carteiro, um dois-em-um com pouca vontade de se levantar do carro, para a carrinha vermelha com o símbolo da corneta dos CTT entre a nossa casa e a destes vizinhos ingleses e toca a buzina com um fervor que não denuncia uma grande alegria pelo seu trabalho. Ao que consta, a vizinha faz muitas compras pela Internet, que este dois-em-um carteiro-condutor vem entregar. Tem sido todos os dias e as buzinadelas insistentes e impacientes também. Ela demora a aparecer. Quando surge, arrasta-se pela rampa abaixo até à rua, nas suas roupas meio pijama meio fato-de-treino, e fala com ele num português engraçado, porém possivelmente carregado de nuvens negras dependendo dos dias. Ouvi-lhe o português engraçado quando, há dias, abri a minha porta a ver se estava ali alguém a morrer devido às insistentes buzinadelas tremendas. Mas não estava, era só o carteiro-condutor e a vizinha do botox abeirando-se do carro. Eu disse-lhe bom dia vizinha, mas ela não respondeu, ou não ouviu ou está-se a borrifar, o que também pode ser o caso. Todavia hoje, pela hora da carrinha passar, e parar, as buzinadelas foram de tal modo prolongadas, que eu achei que agora sim, havia mesmo alguém a morrer e fui de novo à porta. Desta vez não estava ela, mas sim o vizinho seu companheiro que hoje, suponho, veio fazer a recolha da encomenda em sua vez. O carteiro estava só com metade do corpo dentro do carro, para variar, à procura de algo que terá caído entre os bancos – isto explicou-me o vizinho muito civilizadamente ao ver-me surgir alarmada detrás da minha porta, mas que raio (what the hell…) – e o carteiro dois-em-um, ao procurar o cartucho ou lá o que seria a coisa, apoiava-se nas costas do banco inclinadas para a frente sobre o volante, não sei se dá para ver, quer dizer, imaginar. O banco a encostar com força na buzina, esta julgando ser a sério respondia direitinho, tocando em modo contínuo, enchendo a ex-pacata aldeia de uma inquietação trazida em pacotes e que é consequência, afinal, de uma vida muito muito infeliz.

06/11/2019

Muito obrigada a todos

Eu gosto deste blogue, muito. A palavra “deste” não tem link, o blogue referido é o presente, mesmo. Ou é mesmo um presente. É que passados tantos anos disto, ter sempre, mas é que sempre, pessoas boas a lê-lo e a comentá-lo é muito bom e é balsâmico.
Muito obrigada a todos e todas pela presença e pela generosidade, por deixarem aqui as vossas palavras e/ou o vosso tempo (parece que me estou a despedir, mas não estou, é um agradecimento sem calendário, sem ser o fim, o Natal ou um aniversário). Por mim, era começar a servir chá e café, biscoitos e fatias de bolo a toda a gente que vem e se senta um pouco, relaxa, e aqui se entrega, mais ou menos, nem que seja pelos minutos de ler. Se isto fosse um lugar físico, seria assim o presente blogue. Sofás e cadeiras, bancos, almofadas coloridas, velas e música de fundo, por exemplo também livros. Toda a gente a conversar, a partilhar. Era era.

Porém – por agora – melhor ser virtual o presente, mesmo, que eu talvez fosse entupir o ambiente com fotografias de gatinhos fofos e gatinhas que me entraram pela vida adentro como se isto fosse tudo deles e delas. Dela, para ser precisa. A safada. Esta.

(parece muito santinha)
(mas é uma cabrita)
(traz da caçada grilos estonteados que entrega de presente e depois deita-se a descansar a beleza)

31/10/2019

Uberizei-me

Ontem, quando precisei de me transportar da Av. Almirante Reis para o Campo de Ourique em hora pulsante de tráfego, sito em Lisboa, e estando o meu carro a marcar lugar longe de mim, fui ver as minhas opções. Tomar dois autocarros desconhecidos e meio descoordenados, oferecendo probabilidades, sendo eu a passageira, de errar o alvo na paragem de descida ou sabe-se lá de que outros desvios seria capaz. Então senti que tinha chegado o momento de dar o passo.
Já era de noite. Os carros a passar, a apitar, a acelerar, a fazer enfim coisas de carros, bufando no semáforo vermelho enquanto não sai o verde. Enchi-me de animação. Tinha vinte e seis minutos para fazer o trajeto. Então saquei do telefone inteligente e chamei a app já por tempo pertencente ao meu conjunto pessoal de apps por estrear. Ora logo à cabeça o ecrã mostra um mapinha cheio de moscas. Pareciam moscas a tremer, eu sem óculos de ver bem, a noite caída como já disse, as luzes dos candeeiros de rua a não ajudar imenso. Adorei as mosquinhas, é verdade, ainda me distraíram lembrando os jogos no computador velhinho, onde já vão esses tempos. Mas logo percebi a cena, as moscas eram carrinhos, oh c’amooor como diz a minha irmã Ana imitando as suas alunas, repito-me, e fui informada que o carro estava a dois minutos de mim. O carro? Mário?! Quem é o Mário? Já?! Mas aceitei tudo o que apareceu para aceitar no modo userfriendly e avancei para a relação iminente. Não correu bem. O carro chegou tão depressa, quais dois minutos de nada de magrinhos, que eu nem tive tempo de pestanejar e ajeitar-me ali no passeio eu toda animada. Resultado, não interpretei que aqueles faróis quase à minha beira eram os supostos guardiães da matrícula que eu devia reconhecer e que, óbvio, se encontrava invisível devido à noite e às luzes a encandear-me. O meu ex-futuro primeiro motorista Uber desistiu de mim e pirou-se. Mário! Vi que era ele, quando passou bem perto, mas já era tarde demais. Logo olhei para o ecrã na minha mão lançando chispas dos olhos encandeados e dizendo a mim mesma que afinal a paragem de autocarro é que vai ser, mania de modernices que não me querem para nada. Porém a safada da apezinha agarrou-me pela rapidez no serviço, pela inteligência, pelo golpe de cintura e nem um passo eu dei, logo passei a estar com um novo motorista Álvaro?! a quatro minutos de mim. E desta vez a coisa deu-se, a app é minha amiga, isso eu posso dizer que senti. O carro, quando entrei, boa noite, com licença, a cheirar tão bem de lavadinho (o meu carro também quer!!), o som ambiente meio que acolhedor, eu logo fiquei tranquila. A viagem aconteceu lindamente, incluindo vislumbrar fotografias do bebé do motorista, Álvaro!, o bebé é tão parecido consigo!, que era, e então bebés, que eu adoro, o oh c’amoooor é aqui que fica. Logo quis saber o Álvaro se eu ia a apanhar muito ou pouco vento, que eu dissesse caso algo não esteja em conformidade, eu disse pouco vento, muita conformidade. E pouco também foi o que paguei, um euro e dezoito cêntimos a mais quando compararmos com a opção dois autocarros mais uma chance de me tresmalhar. Cheguei ao destino faltavam dois minutos para a hora marcada. E no fim ainda veio mail a informar que estou muito bem cotada na rede, diz que sou cinco estrelas. Ah pois é.

29/10/2019

Um bom coração era para ser aqui

Há muito tempo que não faço uma ligação aqui neste pequeno blogue empoeirado e com uma ou outra teíta de aranha, só um momento, ultimamente deu-me para gostar de aranhas e também de osgas, está bem está, já me deve faltar pouco para abraçar um gafanhoto, ai senhores, mas não me querendo desviar do foco, o que eu vinha dizer é que hoje ando bem disposta, bem mais do que devia e já lá vamos.
Do que devia?! (que estranho) Tendo em conta que a minha casa foi assaltada de fresco com pés e mãos de lã, outra vez, é isso que quero dizer. Pensava eu e os polícias (no último ano entraram em minha casa uns doze polícias ao todo e acho que não me falta conhecer nenhum dos que ficaram de fora), e toda a minha família e arredores também pensava que os miseráveis já se tinham empaturrado com o que levaram das outras vezes e agora, com fechadura nova de alto gabarito, se teriam desencorajado, porém não.
Isto somado ao apito nos ouvidos e à dor de cabeça que ainda não saiu, dava para andar cabisbaixa. 
Mas logo ontem, dia em que me dediquei à esquadra da Polícia da área de atuação, obviemos os pormenores, li um post num outro blogue que me alegrou por dentro e veio mesmo a calhar essa alegria. Era aqui que eu queria chegar quando peguei lá em cima e depois derrapei. Não li só um post num outro blogue, atenção, li vários em vários blogues e como só leio o que gosto, em todos me alegrei. Mas este que vou dizer alegrou-me por dentro por causa da imensa generosidade, que é o mesmo que dizer, por revelar um bom coração.
Se há coisa que me faz feliz é tropeçar num bom coração. Ora o post é este.

(Penso que na lista referida no post linkado está este blogue da teíta de aranha, e isso poderia pôr em causa a imparcialidade da minha manifestação. Pois paciência, não chega para me deter.)

25/10/2019

Por obséquio

Tenho em mãos um trabalho de tricô que já não se usa. Mesmo eu, teimosa veterana rejeitante de novidades de que não sinto falta e portanto fora de moda, mal lhe pego! Por vezes, levo-o a passear de carrinho para aqui e para ali, acondicionado no seu saquinho e bem acompanhado de intenções. Até lhe comprei umas agulhas circulares para, no comboio ou numa sala de espera onde me possa eu encontrar, não dar agulhadinhas em quem me ladeasse e aí pôr-me a produzir à vontade. Só espero que não dar agulhadinhas em quem me ladeasse esteja suficiente para se visualizar a cena hipotética que as agulhas circulares vêm salvar. Mesmo assim, todo equipado e prevenido, o trabalho já vai ganhando um pózinho por cima que é revelador.
Tudo isto porque, quando acabei as obras em casa, me enchi de entusiasmo e decidi não comprar mas fazer capas novas para duas almofadas dos sofás (não vou nem a meio da primeira) e agora, instalada no comboio regional, o outono holandês a deslizar, todo querido, na janela, eu bem calminha, o tricô já ia. Mas só se eu não o tivesse deixado ficar em Lisboa, claro, que um trabalho destes não se pode guardar na nuvem ou pedir a alguém que de lá mo envie por obséquio e por Whatsapp ou por e-mail num instante. Olha que lindo.

22/10/2019

Ata Luna. Spânia.

Há dias, precisei de comprar, com certa urgência, uma caixa para transportar animais. Gatos, por exemplo. E como não dispunha de vontade de procurar em lojas da especialidade, longe de mim, fui à loja dos chineses que não só estava perto de mim, como já sabemos que tem lá tudo (mas tudo, um enigma).
A chinesa dona da loja, que conheço há anos de a ver ali atrás do balcão, mas acho que ela nunca se lembra de mim, indicou-me o corredor especializado em oitocentas coisas incluindo caixas de transporte de animais.
Lá fui eu por ali fora, o corredor não é dos curtos, e escolhi uma caixa azulinha com corpanzil para levar dois gatos de uma vez, pareceu-me, e ainda aproveitei para registar na memória os restantes artigos afins. Nunca se sabe.
Quando me pus a caminho de regresso à caixa de pagamento com a caixa de transporte na mão, uma mesma palavra pode dar para tanto, ela estava ao telefone a falar o que para mim era completamente chinês. Abrandei então o passo e fingi interessar-me pelos chinelos de quarto ali pendurados suficientemente perto para me permitir ouvir a conversa. Os estalidos e as exclamações, evidentemente, aquilo encanta-me. De resto, é, como já disse, chinês. Quando decidi que já chegava de ouvir chinês, aproximei-me do balcão e a dona da loja terminou a conversação e olhou para mim. 
- Qué chineu? Qual qué numbo?
Até aqui ainda se traduz bem.
- Não, obrigada, estava só a ver.
E depois confessei.
- Gosto muito de ouvir falar chinês.
Sem se impressionar com o que eu disse (afinal se calhar lembra-se de mim) ela esclareceu-me, então, sobre o teor da conversa, deduzindo, bem, que esse eu não tinha podido interpretar.
- É Ata Luna.
- Como?
- Ata Luna. Spânia.
- Como, desculpe?
- Ata Luna, Ata Luna. Spânia.
- Espanha? Tem familiares em Espanha? - experimentei.
- Si, Ata Luna.
E então mostra-me, no seu telemóvel, as imagens dos protestos que decorrem na Catalunha.

Quando dou formação sobre temas nada a ver, costumo ainda assim mencionar que a comunicação é fundamental. Continuo, porém, a sentir que não se lhe dá a devida importância. Continuo, também, a sentir que, se a comunicação tivesse palavras e tivesse ouvidos em proporção equilibrada, talvez muitos protestos, destes e doutros, pudessem ser evitados. E como fiquei dias a pensar neste episódio da loja dos chineses, tinha de vir aqui contá-lo ainda antes de pegar ao trabalho. Bom dia!

20/10/2019

Perdido por cem perdido por mil (contudo nem sempre)


A passageira parisiense que, na estação de Biarritz, veio sentar-se no lugar ao meu lado, primeiro assustou-me devido à enormidade da mala que trazia. Para avançar no corredor central e único do comboio de grande velocidade, a senhora puxava a mala com visível esforço. Por sugestão sua, para que melhor nos encaixássemos ambas, eu deslizei com a minha tralha já em ação desde há três estações atrás, computador e os afins do costume incluindo uma garrafa de água, para o lugar à janela, o seu, e ela senta-se no meu, mais acessível para manter a sua grande mala debaixo de olho, que tal? Por mim, está excelente, digo. Fico portanto a ver a França passar a grande velocidade mais perto dos olhos. Mas, após o susto inicial e pronto a ser ignorado, um atraso que nasceu pequenito foi crescendo a cada paragem, cedo começando a ameaçar a tranquilidade da viagem e aí oferecendo um susto maiorzinho. Isto porque no meu caso não adoro perder o próximo comboio e ficar entregue ao natural fluir do encadeamento da vida, por vezes recheado de injustiças prontas a saltar para fora da caixa delas (agora usa-se muito isto da caixa, especialmente do lado de fora). Eu seguia concentrada no meu trabalho, mas ainda assim pude reparar na quantidade desabitual de passageiros extra a entrar no comboio. Eles provêm de uma longa espera visto que, informou-me a nossa passageira (passa a nossa), os dois comboios anteriores haviam sido cancelados devido a certa greve. Mau. Eu a pensar que tinha tido sorte por ter escapado à greve o meu comboio (meu, mas não muito muito) e que portanto ia fazer a viagem lindamente. Começaram, então, a acumular-se passageiros no corredor, metidos com as malas, passageiros, outros, sentados nos degraus das escadas entre os dois pisos do material circulante (ou podemos repetir comboio), e no chão, em frente à casa de banho, já toda inacessível, sentavam-se outros passageiros nos interstícios deixados pelas bagagens. No altifalante, o chefe de cabine ia pedindo milhares de desculpas, às mil de cada vez, pelas condições e pelo atraso, ok. A dada altura percebi que ia perder a ligação seguinte, a margem de que dispunha estava já consumida até ao limite. E foi aí que a passageira parisiense ao meu lado me tentou ajudar (eu tinha-lhe contado da minha possível perda iminente). Mostrei-lhe, na app, as minhas intenções de apanhar o percurso de metro recomendado por ela, app, para chegar à estação seguinte, a bela Gare du Nord, e aí um novo comboio (uma espécie de complicação). Ora esta senhora, certificada e validada pela sua condição de residente em Paris, instruiu-me noutra route, uma que, não parecendo, seria menos morosa, mais minha amiga nesta hora da escassez dos minutos. Experimente, ela disse. Pensei aquilo do perdido por cem perdido por mil, talvez esta nossa senhora tenha razão e, após saltar do comboio a rebentar pelas costuras o mais cedo que consegui, corri, furei o mar de gente naquela estação de Montparnassetambém ela recheada demais, contornei as obras de uns melhoramentos, bem precisados esses melhoramentos, ó senhores!, a ver se já agora pelo caminho limpam a estação, pensei, desci escadas quase a voar e fui. Tomei a nova route sugerida pela nossa senhora e à revelia da app.

E agora toma (vai buscar): não perdi o comboio por dez minutos, perdi-o por cinco. Um-zero para a nossa passageira, que ganhou à app!

(A greve deveu-se ao seguinte, para quem estiver interessado: há dias, um comboio local, algures em França, uma composição com duas carruagens, teve um acidente. O maquinista, único membro da tripulação na composição – em comboios tão pequenos é a regra – ficou ferido no acidente e, ferido, ajudou outros passageiros, também feridos. Os colegas, em todo o país, já desde longa data contra atribuir a comboios pequenos apenas um trabalhador, que é o maquinista, fizeram esta greve, querem mais tripulação nas composições.)

14/10/2019

Trinta segundos em prancha na boa (ah pois é)


Já contei em diversos círculos, incluindo este, que faço sete minutos de exercício físico todos os dias. Quer dizer, quase todos os dias. No início, apesar de parecer mentira é verdade: ficava a transpirar imenso e a arfar como sei lá o quê, que agora não me ocorre uma boa analogia. Ainda deu para umas dorzitas musculares daquelas que nos fazem sentir que estamos no caminho certo da linha corporal, vamos vingar no sentido da saúde e por aí adiante (as queridas lérias). Mas agora que já atingi a maturidade do exercício, transpiro quase nada, as dores musculares abandonaram-me e o arfar foi com elas. Ou seja, tornou-se ainda mais aborrecido aquilo. Comecei, então, a bocejar inadvertidamente lá para o segundo minuto e a olhar para o relógio sempre que a posição corporal o  permitia.
Tenho vindo a dizer a mim mesma que não se perdia nada em duplicar a dose e fazer catorze minutos de exercício, para energizar, tornar a entrar no mundo das dificuldades, ter de novo os músculos a doer e isso. Mas ainda não tive determinação suficiente para dar esse passo, que até me poderá levar ao adormecimento. Portanto, dei outro. Comecei a pôr música a tocar durante os tais sete minutos. Música! Como é que não me lembrei disto antes? Tss tss. E não é que a música é minha amiga? Já não bocejo, quando posso marco o ritmo dela e os sete minutos até passaram a parecer segundos (para não dizer primeiros) e não muitos, poucos. Já se está mesmo a ver qual será o próximo. Passo.

10/10/2019

A estatística fofinha

Há dias (vem aí mais uma história da casa da serra, tem muitas), há dias estava no meu próprio terraço ao sol, de costas para ele e para o terreno das árvores de fruto, cujo solo é prolífero em insetos, florzinhas e ervas indiferenciadas. O terreno atira-se para o vale que se estende a perder de vista, terminando numa fieira de oito geradores eólicos no monte mais longe e, em baixo, pode ver-se (mal, mas pode) uma autoestrada muito fininha. Todo este conteúdo virado a sul, ou seja, o sol encima-o batendo-me então em cheio nas costas, o que eu adoro. Os nossos novos vizinhos ingleses estavam a partilhar o momento com um café com biscoitos combinado anteriormente num encontro junto à carrinha do pão. A conversa, também inglesa, fluía. Devo referir que em poucos meses três casas passaram a estar habitadas na aldeia, todas por ingleses não ligados uns aos outros. O Brexit dá-me graça. Mas adiante. Estava então o casal de ingleses que vai chamar-se o casal Ridley aqui para nós. Deixaram lá a vida deles na ilha unida, não é, e vieram de armas e bagagens aterrar nesta aldeia beirã que há pouco tempo tinha por especialidade ser deserta, não contando com os javalis, veados, martas, cobras, corujas... A mrs. Ridley fala pelos cotovelos como diria a minha mãe e conta imensas coisas da vida deles. O mr. Ridley é mais de ouvir.
Eu gosto muito de estar nesta casa na serra em comunhão com a natureza, as estrelas e o som da coruja à noite, a receber os novos vizinhos que largam tudo e vêm à aventura. No entanto, nos dias de sol, vivo com medo que algum gafanhoto proveniente do lado sul descrito ali em cima venha desvairado por aí fora, falhe a pontaria no seu voo em salto picado sem destino certo e aterre em cima de mim em vez de no chão do terraço que é tão extenso e apropriado e já foi testado para o efeito por muitos gafanhotos de tantas gerações, lindamente. Mesmo estando eu a ocupar cada vez mais volume e consequentemente mais área, o chão bate-me largamente em metros quadrados disponíveis para o pouso dos referidos insetos apatetados. A estatística parece, portanto, estar a meu favor e daí a tranquilidade com que sigo conversando com estes vizinhos recém chegados a Portugal, enquanto esqueço os coisos.
Mas, está-se mesmo a ver que, tal como nos filmes, o óbvio vai acontecer. Ouço então, a páginas tantas, um tiquezinho à minha esquerda e sinto uma leve pressão na pele nua do meu antebraço. Posso imediatamente, neste picossegundo, constatar, horrorizada, que estão pousadas imensas patas verdes de um enorme gafanhoto bem na minha pele. Não tive tempo de as contar uma vez que me dediquei a saltar (agora eu) da cadeira à velocidade da luz ou perto dela e...
Não. Não vou dar mais detalhes, já basta ter divulgado que a minha área aumentou devido ao volume, etc. Vamos mas é ficar por aqui.

(É capaz de levar algum tempo até que os vizinhos Ridley se esqueçam do meu lado mais, hum, descontrolado e eu recupere alguma da minha imagem de tranquilidade confiante na tal estatística e, enfim, no mundo em geral... só não sei como não desmaiei)

09/10/2019

Para quê pipocas quando se tem rainhas cláudias e um bolso para caroços?

Saí da reunião no Cliente Segundo já noite quase caída, o que é novidade desde a hora anterior, estava aí o março. O ar fresco acolheu-me com alegria! Ou talvez a alegria fosse toda minha. Desço o campus em direção ao carro levando o entusiasmo pelo trabalho delineado de fresco, um novo projeto bem apresentado, distinto, um senhor projeto. No caminho para casa, paro no supermercado para autoaumentar a alegria (aqui podemos meter uma nota de rodapé entre parêntesis para que a nota saia da sua zona de conforto e dizer assim: tipo como quem no cinema come pipocas para aumentar a alegria de ver um filme, acertei?). Então compro uma caixinha do sushi que me anda a apetecer há semanas, uma garrafa de vinho branco, uma anona macia que era espanhola (era), bananas para mais tarde e ameixas rainhas cláudias que me dão água na boca, tal como de costume. Aliás só de escrever sobre elas já me estão a dar de novo (há bué que não falava nas pipocas no cinema, tenho-me portado bem). Vou portanto lindamente servida do supermercado para casa e depois não quero continuar a engordar. Tem cá uma graça.

08/10/2019

Tipo socorro

Quando eu era pequena não havia nem cão nem gato que passasse perto de mim que não levasse com os carinhos mais caprichados, atenciosos, assentes no expoente das minhas capacidades do espetro das ternuras. Assim andei até as visitas que fazia a certa casa, pessoas das amizades dos meus pais, me porem, invariavelmente, num estado lastimoso. O facto de nessa casa morarem três gatos não me despertava nenhum aviso, apenas me fazia feliz por ver os bichanos de novo (e claro que eles também gostavam de mim, pensava, senão por que não fugiam e ainda fechavam os olhos todos encaixados no próprio pelo à passagem da minha mão?). Portanto, no final dessas visitas, quanto a mim, o tremendo inchaço nos meus olhos, já só no estado de fechados, o arranhar na garganta atrapalhando-me a respiração e a aflição do meu nariz que não sabia onde havia de se meter, tinha origem, provavelmente, num defeito só meu, que se manifestava sempre naquela casa especial, logo por azar. A minha mãe então disse: tu deves ser alérgica a gatos. Levou-me a fazer os testes respetivos a um consultório médico onde eu haveria de passar muitas tardes a fazer os trabalhos de casa, depois da escola, em cima das cadeiras da sala de espera. Alergia aos gatos! E das grandes! O médico arregalou os olhos para a senhora reação do teste no meu braço e disse, Esquece os gatos. Eu esqueci.

Passados todos estes anos sem eles, vida sossegada a minha, aparecem-me no terraço, na casa da serra, três exemplarzinhos a fazer miau de seguida, ainda crianças. Ora, toda a gente sabe que gatos pequeninos são total e absolutamente irresistíveis, situação da qual eles estão cientes, dela se servindo conforme lhes der jeito. Isso pode observar-se no intervalo de andarem a caçar gafanhotos pelo arredondar dos olhares quando lhes bate a fome nas barriguinhas peludas, sendo isto um exemplo. As marradinhas nas nossas pernas também não ajudam e os sons emitidos em rrrrrr idem. Então, com os eucaliptos por testemunha e dizendo a mim mesma que é só desta vez, não me deixarei apanhar, abri uma lata de atum ao natural. Dispus o peixe num pratinho que coloquei no chão: três cabecinhas em redor, mnham mnham e cinco segundos para o prato ficar a brilhar de limpo. A partir daí foi pescada cozida com batata e as espinhas retiradas com muito cuidado, ovo cozido esmagado para ajudar à mastigação, asinhas de frango cozidas, desfiadas, sem ossos, claro, e acepipes do género. Basta-me abrir a porta que dá acesso ao terraço (ver figura 1) para dar de caras com os três bichinhos implorando, um miarzinho aqui outro ali, quando não vêm a correr (a galope?) até derraparem já junto ao prato que entretanto aumentou para dois números acima.

Já me encontrei, inclusive, a pesquisar na internet onde se compram casinhas para gatos de exterior, uma vez que para dentro de casa já sabemos que não posso. É que vem aí o inverno e coitadinhos o frio. Estou nisto. Estou nisto e estou feita.
 (Figura 1 - Os culpados)

27/09/2019

Um pontinho


Saí do meu Cliente Primeiro feita num molho de bróculos. Não há visita que eu lá faça ao querido cliente que não acabe comigo de rastos. Valem-me os bancos do tipo jardim que há na rua, ali disponíveis, bem no coração da cidade de Lisboa, para eu me sentar a recuperar a mente, e a devolver os neurónios ao fresco da tarde, enquanto olho passar as bicicletas comunitárias e oiço os autocarros bufar na paragem perto de mim. Com esta envolvente, lá pelos cinco, seis minutos, já começo a sentir-me de novo em ordem. Contudo, desta vez, voltei para casa (o metro de Lisboa é tão lindo, limpinho, novinho em folha!, adorável, fácil de utilizar, não deixa nódoa, e ainda leva dentro pessoas giras, sossegadinhas, sei lá, um bem-estar, uma paz), voltei para casa, continuando, com a suspeita de que desta vez me estiquei um bocado demais para lá do limite aconselhável pelas minhas capacidades. Então e agora, fazer o quê? Agora podia, por exemplo, deixa ver, pegar no molho de bróculos da primeira linha, ok, cortá-lo, lavá-lo e aproveitá-lo na totalidade, juntando-lhe uma cenoura, batata e um nabo vigoroso, prosseguindo depois em direção a uma salutar sopa de legumes com particular incidência no molho de bróculos. E, por ocasião da cozedura, sentava-me, completando o quadro, a passajar uma meíta ou a pregar um botão. No vocabulário da minha avó, dir-se-ia de semelhantes tarefas, indiferentemente, dar um pontinho. Mas não dei pontinho algum. Tomara tê-los eu.

20/09/2019

Duas belezas

Hoje fui almoçar à tasca mas não àquela de antes, a outra. Na verdade (eis decifrado da silva, o enigma do título anterior!), na verdade, repito, esta não é bem bem uma tasca, embora à primeira vista pareça. Trata-se de um restaurante de pequenas dimensões e toalhas de papel no âmbito do qual o senhor que organiza a situação nos senta nos lugares vagos que houver, junto a quem estiver, tanto faz. Aprecio a eficiência. Hoje, quando entrei e ele me olhou inquiridor, fiz um V com os dedos mostrando o número de pessoas que eu representava e ele apontou-me com o queixo os lugares a atribuir-nos, a mim e à colega que se me juntou para o almoço, nós acabadas de nos conhecermos, ela ainda lá fora a terminar um cigarro. O eficiente senhor aponta com o queixo os nossos lugares-to-be, já disse, e eu continuo a cena voltando-me para a rua e pondo o polegar para cima por forma a que a colega se inteirasse da situação positiva quanto a lugares para nós, tudo isto em gestos de dedos e acenos se concluiu bem mais rapidamente do que se faz a escrever. Então vou e sento-me ao lado de um homem de camisola de rede vermelha e manga cava parcialmente coberto com tatuagens, boa tarde, com licença, em frente dele a mulher que o acompanhava trazendo nas unhas o verniz meio ali meio ausente. Comiam a grelhada mista, ambos. A colega que entretanto já tinha consumido o seu cigarro chegou, sentou-se à minha frente. Em resposta ao eficiente senhor e colaborando lindamente, ela não hesita, solicita a grelhada mista, enquanto eu, que prefiro fugir de carnes, vou para a outra opção disponível, um prato de feijoada. Avançando a cena dois minutos, temos as refeições à nossa frente. O feijão posso dizer que estava assim-assim, já tenho tido feijões mais bem dispostinhos no prato; quanto à cenoura e à couve lá se safaram as duas relativamente. A carne de porco é que estava demais. Fui despachando o assunto ao mesmo tempo que ouvia a minha recém-conhecida colega contar do seu trabalho; nestas conversas aprende-se que eu sei lá e eu adoro aprender que eu sei cá. No final (o final chegou cedo), ficou o meu prato com muita carne de porco lá intacta. É claro que isto não contribui para a minha imagem, mas nem sempre posso ser bonita (ou linda, já não me lembro) e comer tudo conforme a minha mãe me ensinou. Por isso, quando de novo à porta da sala para a continuação do evento alargado, cinquenta minutos antes de este recomeçar, ainda deu para me sentar num sofá baixinho, puxar do computador e avançar trabalho que foi uma beleza, uma. E a colega? A colega ficou noutro sofá baixinho a entreter-se com o seu telefone móvel que foi outra beleza (duas).

15/09/2019

An dervade?

Uma das quinhentas e noventa e oito mil coisas que nunca poderei explicar é por que razão misteriosa gosto tanto de ouvir a composição de Stravinski conhecida por "Sagração da Primavera" (querem ver?). O referido pedaço de música desorganiza-me toda, an dervade. Fico fora do sítio, escangalhada, digo, em tensão, a querer que aquilo dure e acabe logo ali já imediatamente. Faz-me até lembrar os quartos das minhas filhas quando estão no pico da desarrumação, que é assunto bem feioso entre nós, sapatos no chão, roupa virada, a intranquilidade aos comandos, sempre sempre (mas sinal de que estão, ainda estão). Ou a música, se preferirmos ir à rua apanhar uma tempestade, a música atira-me para o caminhar atabalhoado pelos corredores do metro de Paris (sim, eu sei eu sei, mas este espanto é recente, ainda não me habituei), eu e mais milhares de desconhecidos (milhares? centenas!) aos tombos com malas, apressados ao máximo, cães ao colo, perdidos?, eu não corro eu voo e só quando entro no comboio de grande velocidade, todo acolhedor, ai o meu lugar que bom, só aí é que eu posso voltar a colocar as mãos juntas, os pés no chão, o cabelo em ordem, o estômago em paz, o coração no compasso próprio, só aí é que acaba a música, já cansadíssima (adoro, adoro). Não se percebe, pois não?

11/09/2019

Vá lá que encastrável temos

Onde estão os técnicos de linguística, pode saber-se? Precisamos de palavras novas, senhores técnicos! E já muitas!  Em toda a minha vida só me estou a lembrar de ter sido posta no dicionário a palavra bué, tão pequenina e redundante, que aquilo não deve ter dado trabalho nenhum, é uma nanopalavra. Ok, nanotecnologia, lembrei-me agora. Parabéns, palavrinha fofa. De resto, ou tenho andado muito distraída a fugir de paragens de autocarro com publicidade ou então gostava imenso de saber.
Por que raio não inventamos uma palavra para software, hã? E hardware? Achamos que não é preciso? Tão sei lá manter o estrangeirismo! O mindset, o downsizing, que lindo. Os franceses criaram o logiciel, não criaram? E nós? Nós nada, software! 
Ainda tive esperança, por volta dos meus dezasseis anos, quando me disseram que hardware ia chamar-se  quinquilharia e eu nem sequer me importei de a palavra ser tão feinha. Estava preparada para um futuro (risonho) com ela. Mas a pobre não vingou, vinha com problemas ou cardíacos ou outros.
Smartphone, não temos. Tablet, não temos. E Website? Internet? (Internet ainda vá que se perdoa) Hob, não temos. Hob? Que é isso?, pergunta aí alguém. Não é hobina, hobura, hobezedura, não. É, por exemplo, placa de cozinha. Mas placa já havia e cozinha também, portanto não vale. Preguiçosos, pá.

(Sugestão: suaviçoso)

09/09/2019

Galáxias convencidas para comemorar

Na noite em que a minha amiga Marina, que é uma espécie de continuação de mim devido à antiguidade da nossa amizade, vamos a ver bem as coisas e crescemos a comer dos mesmos pacotes de bolachas enquanto discutíamos filosofia e também a trocar bilhetes, nas aulas, com urgentes descrições sobre os rapazes que se tinham cruzado connosco de maneiras interessantes no intervalo e ela, é só mais isto antes de atacar o objeto deste post, e ela com a graça habitual de inventar alcunhas para os seus rapazes, alcunhas que passavam a ser código só conhecido por mim, claro, para que mais ninguém soubesse do segredo super secreto, na noite em que ela, agora é que é, me arrancou do meu estado caseiro e me levou àquilo dos 15 anos do Rock in Rio, para vermos o seu querido Rui Massena, descobri que o fogo de artifício está muito mudado. Até fiquei meio tonta com o lúdico do espetáculo, posso dizer. Não sabia se havia de olhar para ali ou para ali. Orquestradas com a música, as bolas explodiam loucas, de vez em quando largavam uns encores tipo fluorescentes a dançar por ali acima e depois por ali abaixo até puf!. Algumas já nem eram bolas nenhumas mas antes uma espécie de galáxias convencidas, enquanto outras começavam nuns  espermatozoides ascendentes, ai foi foi, a prometer, e outras ainda deitavam chuvinha de fogo para um lado e um planeta azul a girar para o outro, tudo isto, deve dizer-se, veio encontrar a criança que há em mim, calma, que há em mim em sentido figurado, tanto que no final dei um baita abraço à Marina para agradecer e ela desatou a rir e disse que eu estou é muito por fora, e portanto fomos foi logo beber uma cerveja para de meio tonta passar a tonta completa, isto nos copos novos que agora há nestas coisas, não descartáveis, muito lindos para comemorar assim a noite e a vida, a amizade, para comemorar.

06/09/2019

Ou matar dois coelhos de uma cajadada só, se isto ainda se pode dizer facilmente

Havia uma cantora pop que a minha cabeça não permite já recordar quem e que tinha uma canção sobre pessoas boas lavarem o carro à hora do almoço. Aquilo era uma graça devido a eu lavar o carro amiúde a essa hora mesmo. Conferia, queria eu crer (queria!). Quando há pouco saí do dia de trabalho no meu cliente azul e entrei no meu pobre carro, fui esmagada por um calor daqueles que a gente já sabe como é principalmente no verão em carros pretos completamente ao sol o dia inteiro. Consultei o visorzinho, tipo, deixa lá ver que calor é este e li 41 graus. A sério? Então vamos já tomar uma banhoca!, penso eu para o carro.
Quanto a mim faço por escrever este postezinho enquanto espero que a máquina trate do assunto com as suas metodologias de lavagem. São estas horas, 'tá certo, mas é capaz de ainda dar para aplicar a tal canção mesmo passados tantos anos (sim?).
Resultou: o visor passou a marcar 23 graus, quer dizer, já dá para respirar.

04/09/2019

E de setembro, também gosto muito de setembro


Quando saí para, antes que o sol da tarde desse as suas dentadas à canícula, ir ao terminal multibanco levantar dinheiro e arejar a pevide pelo caminho (nunca me perguntei o que raio é a pevide), cruzei-me com a mulher que um dia fiz sentar no avião puxando-lhe pelo casaco de pelo a fingir. Não foi a primeira vez, já me cruzei com ela vezes bastantes para perceber que moramos na mesma rua de Lisboa, nos momentos, claro, em que eu moro em Lisboa. É que achei esta uma das coincidências tremendas e até fiz um post ou dois sobre isto há atrasado de tal modo fiquei estupefacta. Puxei-a pelo casaco para a fazer sentar no seu lugar no avião porque ela se tinha posto em pé ainda o aparelho estava a rolar na pista e o comissário de bordo aos gritos no sistema de microfone, minha senhora! minha senhora! sente-se! sente-se! em inglês. Ela toda atarantada não deve saber inglês nenhum porque não fazia caso destes gritos e foi aí que eu estiquei o braço, tal tal, já contei, explicando-lhe ao mesmo tempo a razão do meu gesto brutal (pevide será a cabeça?). Como se não bastasse, no voo de regresso lá vinha ela de novo no mesmo avião que eu e novamente sentada dentro do meu alcance, mas desta vez portou-se muito bem que eu vi. Ora, dias depois, cruzo-me com essa mesma senhora no meu próprio bairro e – desde então – fez a combinação de astros que nos orquestra as vidas cá na terra a proeza repetida de nos pôr em rota de colisão na mesma rua, por isso é que eu sei. Mas voltemos a esta manhã: cruzei-me com ela e pela primeira vez não ia a senhora sozinha, vinha conversando com outra (pevide deve mesmo ser a cabeça, uma vez que também se a pode laurear). No instante em que ficámos alinhadas as três por debaixo de um jacarandá sem flores pude ouvir a nossa senhora dizer para a outra “gosto muito da rapariga que arranja as unhas”.

E eu gosto muito de coincidências, de não arranjar as unhas e de ter tempo para escrever parvoíces deste género.

02/09/2019

We'll always have Paris, right?

Não gostei nada de ver o homem que ia no metro a mais ou menos um de mim (metro). Ele ia em pé encostado à porta que não abria em todas as estações e foi por isso que reparei nele. Era alto e magro. Todo vestido de preto. A tira-colo levava uma mala do tipo de computador, muito coçada, puída. Na cabeça um boné verde-bandeira. Olhava em frente através da outra porta, a que abria em todas as estações (inverno, primavera, verão, neste caso verão). Havia qualquer coisa nele que me estava a deixar inquieta (aquilo das estações é parvo, mas nem sempre me contenho e o que me contenho!). Eu ia sentada a um metro dele, como já disse, num banco basculante, que só se põe a fazer noventa graus com a vertical sob o peso de alguém. Felizmente veio sentar-se um homem normal ao meu lado, talvez um verdadeiro parisiense para variar dos turistas, já que trazia um cão despenteado pela trela e teclou no seu smartphone o caminho todo com ar de quem sabe o que está a fazer e isso. O cão logo se sentou no chão, claro, e ato contínuo deitou a cabeça nas patas da frente cruzadas com um grande suspiro ficando ali a ser fofinho sem querer, olhando para um lado e para o outro, levantando as sobrancelhas de cão. Se a minha filha Saminhas ali estivesse diria "tão fofo!" umas mil e quinhentas vezes.
O homem encostado à porta, de repente, tirou o boné verde-bandeira da cabeça, dobrou-o e meteu-o na mala do tipo computador, de dentro da qual retirou outro boné de padrão camuflado, juntamente com uma revista com a palavra "Guerres" na capa e fotografias de guerra. Pôs o novo boné na cabeça, desencostou-se da porta, enfiou a revista debaixo do braço e, retomando a mirada em frente, fez da mão direita pistola. Apontou-a à porta que ora ia fechada ora abria, e começou a dar tiros imaginários aos cartazes que anunciavam as datas em que a linha quatro está em obras. A cada tiro emitia um "pou!" seco. Alguns passageiros que entraram em Étienne Marcel, levaram com uns tiros destes mas, à exceção de uma mulher mais atenta, não deram por isso. O parvinho do meu coração começou a bater como se eu estivesse em perigo ou não houvesse amanhã. O homem ao meu lado continuava a conversar com o telemóvel nas mãos. O cão também nada, seguia sendo fofinho no chão mais as suas sobrancelhas sem querer enquanto eu a cada tiro, "pou!", mais nervosa. Tirando uma senhora que mudou de lugar para talvez se afastar do homem dos tiros, estava tudo nem aí.
De repente, numa feliz estação seguinte (alguém se sentirá feliz no metro de Paris?), o homem deu um passo cambaleante, depois um ou dois para o lado e com uns ajustes na espécie de caminhar lá se conseguiu alinhar com a porta aberta e saiu.
(E nesse momento, confesso, sim, alguém se sentiu feliz no metro de Paris.)

15/08/2019

O tema despreferido das minhas irmãs

Tanto fiz tanto fiz que, como já é do hábito dos astros que lá devem olhar por mim, aconteceu mesmo. Fiquei com tempo sobrando para ler os meus livros e deixei de trabalhar mais do que a conta (até já voltei a parecer a minha idade e não mais, muito mais, foi foi). Ou vivo duzentos anos bem sossegada ou nunca lerei os livros todos que quero. De maneira que, como já não vou para nova (eta expressãozinha parola que adoro, anda muito comigo), há que fazer olhinhos à leitura.
E não é que já vou no quarto livro seguido que me deita abaixo, ou me toma, me agarra?

Isto sim é felicidade.

A lista - para o caso de interessar:

O susto - Agustina Bessa-Luís (dispensamos comentários)
Os anagramas de Varsóvia - Richard Zimler (nada a combinar com Agustina, especialmente difícil logo a seguir a ela, mas não é que no final valeu demais?)
O vinho da solidão - Irène Némrovski (na senda dos russos, uma doçura triste, beleza tão grande, espécie de autobiografia, talvez eu ali também)
O centauro no jardim - Moacyr Scliar (vixe maria, que delicinha!)

(o título é impercetível, mesmo, favor desculpar)

07/08/2019

Carcaças feitas à mão (não mantêm a forma)

Na Holanda tudo se planeia. Se agenda, se regula. O nível de organização bate aos pontos aquele que se pode observar em Portugal, por exemplo (isto é uma constatação).

Tal é a amplitude do fenómeno da organização neste país, que inevitavelmente já se transformou em normalização em alguns aspetos. Ora bem, certas marcas de queijo quando vendido fatiado, embalado, apresentam as suas fatias com o tamanho e o formato da generalidade do pão que se come. É pão parecido com o que para nós seria "de forma", e também ele já vem fatiado. Pode até diferir na cor da farinha, mais clara, mais escura, e na quantidade de sementes que encerra, mas mantém a forma, o danado.

(Se pensarmos bem, sempre se poupa tempo de manhã, ao pequeno almoço, a preencher a fatia de pão com o queijo, não é?)

Há dias, Erik, cidadão deste país, segurava, em cada mão, uma carcaça de pão português, comprado na serra beirã a um padeiro dos antigos e, observando com atenção as carcaças, diz-me: estes pães são de tipos diferentes, olha.
- Não, são exatamente do mesmo tipo.
- Não são nada! - ele estava com certezas na sua conclusão - então não vês que um é mais gordinho e o outro assim mais estreito?!...

É isto que eu digo.

05/08/2019

Tesouros

Em cima da mesa do café, na esplanada da praça para a qual deita o Hotel de Ville em Hendaye, os cubos de açúcar de cana, embalados individualmente, sobram, indiferentes, dos cafés tomados em paz. Lembram-me, em oposição, a vida no gueto de Varsóvia cujo pedaço de história terminei há pouco de ler.
Aqui, neste princípio de tarde de verão, húmido e quente, farto, pardais gordos debicando pelas mesas migalhas demais, aqui onde estacionam carros potentes e as crianças se vestem de igual, onde se afixam cartazes anunciando concertos de verão e os menus escritos a giz se impõem num estar pitoresco, aqui quatro cubos de açúcar são nada. Lá, num ido inverno polaco igual ao inferno, criogenado, o ódio por menu do dia, a morte por certa, há quase oitenta anos, lá, foram os cubos de açúcar tesouros.

03/08/2019

Robalo escalado

Este post tem tudo para sair pequeno, e tem tudo para sair.

Estou a trabalhar dentro de casa, na serra (devido à minha mobilidade extrema, há que precisar o local da cena), a porta para o terraço estando aberta e deixando entrar o piar dos melros, o zangar dos gaios, os quais andam muito à bulha mas são lindos de não se aguentar e eu queria apanhar uma pena das azuis, riscadas, para enfeitar-me com ela, e um ou outro avião que lá vai. Dentro de casa voam, evidentemente, umas duas ou três moscas, também elas contribuindo (por enquanto sem número*).
De súbito, oiço uma cabra muito chateada, mas muito chateada. Continuo, pensando que o vizinho inglês está a tratar delas, das cabras, e pisou uma sem querer ou sei lá que coisa parecida. O meu trabalho versa sobre assuntos tão díspares de cabras, que dá graça o contraste.
Mas a cabra parece estar a aproximar-se num crescente de reclamação, bé que eu sei lá, bé bé bé, e a minha concentração perturba-se.

Levanto-me, então, para ir lá fora tentar ver o que se passa. Já vou de coração enfraquecido, que as cabras conquistam-me só por existirem e estas aqui do lado considero-as livres de perigos, tendo em conta que o vizinho afiançou servirem só para dar leite e não para comer.
A cena ao alcance da minha vista: a cabra está a ser convencida, à força, puxada por uma corda ao pescoço, pelo vizinho inglês e mais dois homens que chegaram num carro branco, a sair da área vedada que lhe tem servido de lar.

Volto a entrar em casa, tiro o robalo escalado do frigorífico e salgo-o para o almoço.

* uma piada.

02/08/2019

#SoFaltamDois

Interesso-me mais por assuntos mofentos ao olhar das pessoas modernas e tal e semelhante isso (para avisar). Mas vá lá que de vez em quando ainda encontro um pouco de eco no mundo de consumo superficial que é o nosso. Consumo superficial, julgamento fácil ou intolerância apressada relativa a nada, por exemplo. Imenso barulho. Lamento.

Foi no bar do comboio serviço Alfa Pendular destino Santa Apolónia proveniente de Porto Campanhã que não pude resistir.
- Este comboio é novo, não é? - eu perguntei ao empregado que me vendia o café sem número de contribuinte, numa de variar.
- Não.
- Não é?! - tipo eu insisto. (tipo vem das minhas filhas)
- Não. Tem vinte anos, o comboio é de 1999.
Redundante o numeral, que a conta é fácil de fazer, mas eu adoro exatidão, sou dessas.
E logo acrescentou.
- O comboio foi todo renovado. Tem cadeiras novas, por dentro é tudo novo, mas é o mesmo comboio.
Notei certo orgulho? Notei.
- Ficou muito bem, parece outro, novinho!
E, para meu deleite de pessoa de exatidão, ainda me deu de bandeja, juntamente com o café.
- Ao todo são dez comboios que fazem este serviço, sabe. Oito já foram renovados, só faltam dois.

Toma. (não sabia)

(e aposto que tu também não)

29/07/2019

Botox, que potencialidades futuras?

Faço o caminho de descida da serra com cuidados redobrados. O sol brilha maneirinho: segundo o mostrador no meu carro está o verão a valer vinte e dois graus. Nas curvas, estico o pescoço para ver quanto antes se lá vem o carro, que eu suponho desvairado por aí acima, ocupando grande fatia da magrinha faixa de rodagem. A condutora seria a minha vizinha inglesa, mulher do vizinho inglês que já conhecemos deste blogue, ela é que ainda não. Imaginei-a regressando a casa, ao volante do lado contrário do seu carro que continua assim, como de origem. Estaria a regressar da sua intervenção de botox, de acordo com a informação do vizinho inglês, esta manhã, tendo deixado escapar, a seguir à informação: um dinheirão custa aquilo do botox!
Então vou a descer a serra, contorno as curvas com muita cautela, pescoço esticado. Sei de conversas anteriores que esta condutora tem tido algumas batidas nestas curvas, sempre, segundo a própria, culpa desaforada de outros. Mas tive sorte, nada de vizinha inglesa serra abaixo (eu), serra acima (ela).
Fui apanhar nos serviços competentes o novo cartão de cidadão da minha filha Saminhas, logo depois de estacionar o carro mesmo em frente à porta e - já agora que estou a ser assim esquisitinha - de graça. Ao entrar na secção dos serviços, sou reconhecida e tenho direito a bons dias personalizados. Não deu para aquecer a cadeira em que me sentei, logo fui despachada com prontidão e simpatia. Assim, sem menos.
No regresso a casa faço a subida que há pouco desci ainda pensando na vizinha inglesa e no seu botox. Juntei ao pensamento a colherada de azedume que ela serviu há dias ao senhor Valério. Ele tinha vindo prestar-nos um serviço de jardinagem para o qual precisou de encostar a carrinha de caixa aberta à lateral da nossa cerca. Quando a vizinha inglesa chegou de qualquer outra situação lá dela, estacionou o seu carro que já sabemos ter o volante no lado errado de forma a tapar a passagem à carrinha do senhor Valério. Acrescentei ao meu pensamento (ainda não acabei de subir a serra, hã?) o pedido deste senhor à vizinha, que eu ouvi de dentro de casa como soando cortês, para ela por favor tirar o carro dali, era só um bocadinho, etc. Ela respondeu-lhe que isto é tudo dela e se ele quisesse que passasse por cima.
E estou a chegar à nossa rua, povoada de ruínas. Vejo que o carro inglês já está de volta ao seu lugar, estacionado com as rodas viradas, como sempre ela faz, tanta irritação a caracteriza.
Será o botox, esteja lá ele onde estiver (não fomos informados sobre o local de aplicação) capaz de suavizar, com o tempo, o ódio que vai naquele pobre coração?

25/07/2019

Fatia de manhã

Saio de casa com os sapatos novos comprados no âmbito de uma estratégia especial não abrangida por este post, e vou à farmácia. Lá, espero um minuto com a senha de vez na mão. O farmacêutico já me conhece desde ontem e responde à pergunta sem eu a fazer. O medicamento havia chegado de acordo com as previsões mais otimistas, para variar. Poupo-me, assim, de ir à farmácia por um tempo suficiente que faça este farmacêutico - e os outros que me cumprimentam, olá como está - esquecerem-se de mim.
No regresso a casa fiz um desvio para comprar pão e venho com este a pensar no que vou dizer à polícia mais logo, acerca de um assunto de desaparecimentos misteriosos em minha casa. Quase esbarro com a querida vizinha do terceiro, personagem já habitual deste blogue, que está a conversar com outra, do mesmo nosso prédio. A primeira avisa-me que vou com uma cara tão fechada, mas o que vem a ser isto? A outra aproveitou para se despedir que ia com pressa e ficou a vizinha do terceiro a adivinhar o que eu levava dentro da cara, fechando-a assim. Dissertei poucochinho sobre o tema, que tem desdobramentos dolorosos que nunca mais acabam, e eis que aparece também o pai da família triste do prédio. Vinha sozinho e deu os bons dias a sorrir. A sorrir! Ele, que tem uma carga às costas incomparavelmente mais pesada que muitas, incluindo a minha. Continuou. Nós também, ali paradas, a manhã a desenvolver-se em redor, o verão, o chilrear dos melros e das rolas, ocupadas com o tema meu a ser o ponto central, que agora me pareceu de uma desimportância atroz perante o senhor da família que é tão triste, isto apesar de me fazer doer a todas as horas, há muitos meses.

22/07/2019

Isso e o politicamente correto

Vou dizer. Eu, profundamente, desde sempre, detesto exercício físico. Mas, por causa de me estar a metamorfosear numa pessoa nova, velha, mais pequena por cada vez mais incompleta, inseri no escorvar de cada dia os sete minutos de exercício físico clássico orientados por uma app da especialidade perto de mim. Há outras versões disponíveis, porém o clássico encabeça a lista, quer dizer, insinua-se o mais leve do catálogo (aliás repito-me). Vem antecedido de um anúncio e acaba sucedido por outro, mas isso já se sabe, não somos nada. De qualquer modo, haverá alguém que presta atenção a publicidade? Óbvio que não.
Creio que nunca, em toda a minha vida, precisei tão desesperadamente de férias. Férias de ser. De ter. De ouvir. De falar. De atender. De compreender. De explicar. De conduzir. Férias de existir.

17/07/2019

A raposa, o cartão do cidadão e o espetro do fofinho (é escolher)

Sento-me no terraço ao sol, uma vez que o nevoeiro já fez a gentileza de se retirar e dou conta do cheiro das cabras do vizinho inglês que o vento me traz. Elas cheiram ao próprio queijo, mas em mais levezinho. As galinhas da família destas cabras foram todas roubadas, uma a uma, por uma raposa, disse o vizinho para explicar por que razão já não nos dá ovos. As cabras é que a raposa ou não as conseguiu convencer ou não se interessa por elas, agora não sei.
A minha filha Saminhas estava com o cartão de cidadão para renovar, e como os lugares de culto para o efeito em Lisboa só se fossemos para lá de véspera e passássemos o dia todo seguinte a olhar para o quadro dos números de chamada uma vez que não tivemos jogo de cintura pela Páscoa, no máximo, para marcar vez no sistema, viemos para a quietude da serra tratar do assunto. Ficámos despachadas em vinte minutos e ainda tivemos tratamento personalizado no espetro do fofinho, se quisermos usar as suas palavras.

14/07/2019

Dia de folga

Vou, pela terceira vez hoje, espetar uma agulha de ponta esterilizada na chama de um fósforo numa bolha do pé. Nesta bolha é a segunda espetada. Uma autotarefa que não me agrada fazer, mas se quero andar mais ligeira, pago o preço. De manhã correu bem, a bolha de então esvaziou, desinfetei-a completamente e pus um penso por cima, calcei os ténis, fui. O rio estava tão próprio, a encher, tranquilo, a brilhar. Uma garça real a molhar nele os pés, ali toda toda, eu a passar-lhe ao lado.
Duas horas depois, quando voltei a casa, já se notava o mundo mais agreste no pisar, mais acutilante, traduzindo-se, ao retirar as meias, em mais uma bolha ali, afinal. No outro pé! E portanto vamos lá, agulha, fósforo, chama, espetada, desinfeção, penso por cima. Mas não resultou. Horas de arrumação depois, gavetas, caixas, mais gavetas, capas dos sofás, aspirador, closet, idas ao lixo, à arrecadação, carro a arrumar na garagem (de caminho) para os vizinhos que têm três carros ou quatro poderem arrumar lá fora e eu que tenho só um carro ocupar um lugar fora deixando o meu lugar vazio na garagem não é fofinho da minha parte e ontem esqueci-me dele, a bolha, era aí que íamos chegar, a bolha está de volta!
Mas gostei imenso do meu dia. Especialmente porque não trabalhei uma única linha, uma única letra, um numerozinho, zero. Sabe tão bem uma folga.

13/07/2019

A sério

A festa das crianças tem insuflável com um motor para o enchimento com ar que trabalha em permanência fazendo um ruído em conformidade. Em concorrência, há música de palhaços com batida quadrada mesmo ao lado do motor em permanência incluindo não se perceber a cantiga devido à distorção. Um homem adulto, jovem, está vestido como se fosse um mágico e tenta animar as crianças fazendo-lhes perguntas extremamente entusiasmadas e recebendo respostas do tipo tiradas a ferros, como se costuma dizer. Há também uma mulher adulta, jovem, com metade da cara pintada, que se debruça incentivando as crianças a divertir-se no insuflável, ora as puxa para escorregarem ora as instiga a pular. Alguns pais e mães bebem cerveja pela garrafa nas laterais do recinto e olham para telemóveis na outra mão. As crianças estão relativamente paradas. Sentada na beira de uma cadeira, aguardando pacientemente que outra mulher jovem termine uma pintura no seu pequeno rosto, está uma menina. Nenhuma criança ri, salta, corre ou brinca por iniciativa própria.

No final da festa, sobrou o chão do pátio polvilhado de papelinhos coloridos. Alguns, no canto, rodopiam num tufãozinho de vento que ali se deixou ficar a brincar.

A sério.

11/07/2019

Estupe, por favor

Houve uma hora em que pus a cabeça descansando nas mãos, os cotovelos apoiados na mesa nova, tão bonita, e senti que agora era estupe, quero estupe.

***
- Rodrigo, o que diz ali naquelas letras pretas?
- Diz... en...tra...da. Entrada!

O meu sobrinho mais novo passou para o segundo ano e já sabe ler muito bem, segundo o próprio, embora não tudo tudo. Há palavras difíceis, tia!

Fizemos o percurso de ida e volta na telecabine. Vimos uma alforreca deitada na água. Vimos cardumes de peixes. Pretos, disse a Maria. Uns grandes, outros pequenos. Cinzentos, corrigiu o Rodrigo. Os peixes são cinzentos! Vimos as árvores de cima e as casinhas dos gelados. Vimos um fumo a subir, ao fundo. Seria talvez fogo. Falámos sobre o nome deste rio, o Tejo, e de outros dois, o Douro e o Mondego.

No fim da volta, a telecabine devolvendo-nos a terra firme, tornei

- E ali naquelas letras o que diz?
- Saí...da. Primeiro era entrada e agora saída!

Ao subirmos no elevador do prédio, já recolhendo a casa, não precisei de lhe perguntar o que podia ler ali, o Rodrigo adiantou-se: estupe, leu, junto ao botão de stop do elevador.

***
Então, tirei a cabeça das mãos sacudindo a vergonha e fui abrir a porta ao pequeno novo probleminha.

Estupe, realmente, não existe. Não está nas minhas mãos.

10/07/2019

#azapes

Estou em meio de dois mil e dezanove a incluir apps nos meus hábitos. Não sei se finalmente ou se isso não interessa a ninguém (tipo). Apps dos horários dos comboios já as trato por tu, ora pour toi ora door jij, consoante. A última, então, é perfeita, toda facilzinha, espertíssima, dou-me lindamente.
Em segundo lugar estão as apps de dicionários, mais paradinhas e menos urgentes, é verdade, um pouco menos exatas, ok, mas também valeu. Alinham-se na segunda fila do ecrã principal à direita de quem vai, tipo.
Mas aquela que verdadeiramente me traz aqui hoje é a belezinha da última aquisição. Capaz, a danada, de me pôr feita num oito. É a app de 7 - sete! - minutos de exercício diário! Tipo como quem não quer a coisa. Eu vou e dou-lhe um toque, aciono a modalidade básica, na boa, e começo a obedecer aos comandos. Faça o exercício, no belo português do Brasil. Sete minutos de arraso, saio dali (da app que, no finzinho, me dá os parabéns, hã?) e vou direta para o chuveiro, posso dizer, bastante necessitada. Não parece, mas é. Ai esta appezinha!

Próxima app desejável (por favor): descarregável para as lentes de contacto que dê para ver bem tudo, focado, legível, tá?, a lente ajustada para a necessidade em tempo real, mudando à velocidade da luz o ajuste, chovesse ou fizesse sol, para visão ao perto, ao meio e ao longe.

E ainda esta outra, muito querida app (lembrei-me de tarde e já agora vai): descarregável para as rodas do carro diretamente, estacionando-o ela direitinho enquanto eu já me ocupava, na livraria, de pedir o livro de Stephen King que a minha sobrinha de doze anos agora ensaiou de ler e querer mais. Doze! (e não é a única, pois o referido livro já só havia em armazém todo ali a querer esgotar-se o maluco)

(Tipo adoro.)

E tu, com que nova app sonhas?

05/07/2019

Cinquenta e três (vírgula trinta e sete, precisamente)

Os dois homens que vieram substituir o vidro defeituoso são pai e filho.
- E parecem-se um pouco um com o outro - isto disse eu, que tenho uma impossibilidade de não procurar parecenças familiares, assinatura tão intrigante da mãe natureza.
Um pouco. O pai é mais alto, o filho mais gordinho.
Apertamos as mãos e eu, que nunca os tinha visto, digo o meu nome. Os deles não pude reter.
A colocação do vidro novo faz uma barulheira infernal que eu diria capaz de partir o material, mas claro que não e conclui-se em menos de meia hora.
Depois tomamos café. Sentamo-nos à mesa do jardim os quatro e conversamos. Neste país não há serviço deste tipo que não seja acompanhado de momento para café ou chá, bolachas e uma pitada de conversa. Eu digo que está frio, por causa do vento que esta manhã se pôs, juntamente com nuvens. O filho comenta que em Portugal costuma estar sempre mais calor, não é? Não tanto no último mês, digo eu, não tanto no último mês (às vezes repito).
O tempo é costume ser tema proliferante entre os holandeses e hoje não foi exceção.
Aproveitou então Erik para contar sobre o passeio de bicicleta que ontem fizemos, o tempo não podia estar mais de feição e nem sequer fomos atacados pelas lagartas dos carvalhos, cujos pelos já incomodaram muita gente e são capazes de matar um cão. Eles ficaram admirados e contaram de alguém seu conhecido que apanhou com os pelos das bichas e se viu aflito. Cinquenta e três quilómetros foi a contagem do aparelhinho montado na minha bicicleta. Mas eles não se mostraram impressionados. Os restantes doze quilómetros foi o comboio que fez connosco, o queridinho tem um espaço aberto especial para as biclas; eu para lá de agradecidissima. É que não aguentava mais, evidentemente.
- Em Portugal o terreno é acentuado, nem toda a gente se habitua a fazer muitos quilómetros de bicicleta - expliquei o que não era preciso explicar.
Mas o pai e o filho não puderam deixar de sorrir condescendentes, especialmente na parte do abençoado comboio como recurso para o regresso a casa.
Muito engraçado, sim senhor. Muito engraçado.

02/07/2019

Gatinho

Nos raros momentos em que reengreno o fluir do meu tempo com as rédeas mais a jeito nas minhas mãos engelhadas e dou ordem ao meu próprio norte - se existir, mas é possível que sim - equipo-me das ferramentas mais completas e mergulho na floresta da escrita de Agustina, na qual ainda só hesitante gatinho. Não é por falsa modéstia que digo isto, é por ser verdade que necessito de firmeza na base. De joelhos não há que me suster, já que, em todo o caso, cambaleante não irei. Avanço lentamente para não perder um crepitar, uma teia de aranha, uma pedra na iminência de rolar. Quando me sento para dar descanso aos joelhos, às mãos, à Terra de tanto girar, nem noto que avancei centímetros. Mas, como já levo a barriga cheia, ergo-me, sacudo a saia, componho o cabelo e sigo achando-me real outra vez.

(Ontem à tarde, o vento levou o guardanapo de papel que estava na mesa da esplanada rodeada de janelas de vidro, abertas para a ocasião do calor; quando logo depois me levanto para sair, procuro o guardanapo no chão intentando apanhá-lo, e vejo-o debaixo do sofá de verga ornamentado com almofadas muito bonitas, uma de cada padrão, à minha frente. Fiz o gesto rápido e necessário para apanhar o fugitivo de papel e recuperá-lo de se tornar poluição antes de a próxima rajada de vento ter outras ideias e espetei com a cabeça a todo o vapor na quina da janela aberta, perpendicular ao meu olhar e por isso materializada numa linha quase invisível. Pareceu ali toda a cidade ressaltar da investida que empreendi, involuntária. Enfim, não morri.)

28/06/2019

Sardinhas a mais

Desta vez não correu tão bem. O comboio número dois atrasou-se cinquenta e três minutos por causa de um problema na linha francesa, acho que um animal, coitadinho. Um calor tremendo e eu a correr por Paris afora, por baixo. Por baixo e a furar mares de gente, com licença. No metro fiquei esmagada entre um malão semirrígido que só conseguia caber em pé e quatro pessoas, viajando e pedindo desculpa uns aos outros a cada travagem do comboio, aliás metro, tipo calor humano concentradíssimo. Quem quisesse sair tinha de começar a anunciar com duas paragens de antecedência por causa da compactação. Mas na boa, uma das senhoras que saiu junto com um passageiro lá dela até disse assim para a gente, no geral, "deux sardines à moins!", por isso já dá para ver.
Perdi, então, o comboio seguinte, mas já estou a dar a volta. À Europa, parece.

27/06/2019

Catorze horas

A minha companheira de compartimento deve estar a ver uma série. Há um tempo ali quieta na cama com um tablet à sua frente, estão em silêncio. Ainda bem por esse lado.
Nota-se que muitas pessoas veem séries, tenho a impressão que cada vez mais pessoas veem séries.
As séries são diferentes das novelas na medida em que cada episódio tem, para além do fio condutor de base, um desarranjo que cresce e depois se extingue na própria resolução, devolvendo a paz ao ecrã mesmo antes de o episódio acabar e ser lançado o isco para o seguinte. Espertos são eles.
Também já vi algumas vezes uns episódios de séries. Por querer ou sem querer. Tentei o GoT por querer, mas tal como já esperava, odiei. Aliás tentei uma vez e meia, mas a outra meia já não consegui mesmo, fui ler um livro calminho.
Sem querer foi a Anatomia de Grey por causa das miúdas. Parece-me que ali as médicas principais fazem boquinhas a falar, de propósito, para se armarem em fofinhas irresistíveis. É artificial e chato. Mas vi alguns com as miúdas, elas adoravam e sabiam imenso das tramas.
Quando passaram a ver os cabeças mortas ou lá como se chamavam os meio-mortos-esverdeados, mudei de orientação posicional na sala, que eu tenho cá os meus limites, ou seja, como é que vocês gostam disso, meus amores? Ó mãe isto é para rir!
Bom, para rir eu tenho preferido outra coisa, nada a ver: episódios do Porta dos Fundos e sim! Gosto de aquilo quase tudo!
Entretanto estou a ficar enjoada de escrever este post comprido no teclado do telemóvel a chocalhar toda com o comboio. Está velho, este comboio, mas lá vai andado.
A minha companheira de compartimento entretanto interrompeu a série e está a escovar os dentes. Eu já tratei dos meus e estou aqui estou a ir dormir. Em princípio.
(Caso o leitor pretenda saber a duração da viagem, é consultar o título, por favor.)

22/06/2019

Verão inclinado


Quando me levantei, esta manhã, a nuvem estava toda inteira, una, metidinha no vale. Encaixada, ajustada, quieta, ela estava ao sol de um verão novo, sem saber. Acima, as encostas vingavam em verde orquestrado pelos eucaliptos de todos os lados (inclinados). Contudo, ou com pouco, os carvalhos e outras espécies, autóctones, com nome itálico alatinado (pois inclinado), desconhecido: também.
Uma hora volvida a nuvem estava levantando, devagar, toda em silêncio. Agora cresceu e subiu, verdade, subiu. 
Vestindo as encostas de branco e de frio.

(Tirou-lhes o sol de verão, verão.)

11/06/2019

Prós e Contras

Então fui e deixei-me estar a ver a televisão. Tudo ali em meu redor, aguardando: a pilha de livros comprados na Feira, a manta no sofá a descair de lado como agora se usa muito (vê-se nas revistas de decoração as mantas a descair dos sofás para o chão, das camas e das banquetas, completamente sem querer), e ainda os óculos de ver ao perto, o computador enviesado, aberto, quase ele também a descair do sofá que nem a manta, mas ele, cuidado, agora só tenho este desde que me roubaram o outro! Então vi televisão como deve ser e foi bom. Tão bom que fiquei até ao fim do programa sem sair do meu lugar para ouvir a Luísa Costa Gomes, o Onésimo, o Afonso Cruz, entre os outros (o Nuno Camarneiro, parecendo que não, fez o mesmo curso que eu, já desconfiava disso mas confirmei). Até aqui tudo bem. E depois daqui também: levantei-me sem deixar descair o computador para o chão, a manta não se mexeu, está habituada a conferir estilo estático aos sítios, enfiei-me na estante virada a norte e fui lá debaixo ressuscitar o único livro da Luísa Costa Gomes que vive cá em casa desde que a minha avó morreu, era dela e é de contos. Devo ter sido eu a oferecer-lho, ainda em escudos. Abri-o, explorei-o, pedi-lhe praticamente desculpa por não o ter feito antes. Depois coloquei-o em cima da pilha acabada de vir da Feira, uma pilha em euros, não muitos, apaguei as luzes e fui-me deitar uma vez que já era tarde.

08/06/2019

Vermelho-sangue


Agora mesmo, nesta manhã de sábado, enquanto me entrego ao trabalho, ao meu adorável trabalho, estou sendo atingida por uma outra vibração, toda subtil. Extraindo um dos derradeiros suspiros aos discos compactos, sobreviventes dos zeros e uns mais voláteis, hoje vencedores na propagação das ondas musicais, pus para tocar a Nina Simone. Puxa, que já não me lembrava de como esta voz quente, quase de homem, se espalha pelo soalho de madeira, se estende, espreguiça e liquefaz, depois sobe pelas paredes pintadas de novo, bem devagar e pastosa, entretanto pastosa, lambuza-se nas cores também elas quentes dos quadros pendurados em silêncio, observando tudo, e só então faz-se entrar-me na circulação vermelho-sangue, uma das cores mais belas que já ouvi.

06/06/2019

A perninha

O teclado do meu computador, já conhecido protagonista de perda de cor nas teclas, vem dar notícias da sua graça (tem alguma). Perdeu uma perninha. Uma das duas que vêm com ele e que, em posição de abertas (hum), dão uma elevaçãozinha ao plano teclado de toda a peça, no lado distal, não sei se se está a visualizar. Assim, para que não falhe a configuração a que me habituei completamente quando em ação, mesmo com teclas cegas (que é sem a letra pintada nelas), coloquei-lhe debaixo do ponto de apoio da perninha sucumbida dois manuaizitos de instruções de gadgets, agora quais é que não posso dizer, que aquilo só com óculos muito fortes ou mesmo microscópio é que dá para ler qualquer coisa neles e que, juntos, valem a altura do referido membro perdido.

Tenho. Tenho mais o que fazer. Mas também tenho um blogue (e tal e tal).

(O meu outro carro será, evidentemente, um avião.)

05/06/2019

Pas Mon(tparnasse)


Ultimamente, sempre que cruzo a estação de caminho-de-ferro de Montparnasse, sigo pela rota que tracei da primeira vez, apercebi-me. No alto, junto aos ferros organizados em estruturas firmes almejando beleza, desconfio, donde pingam fios de sujidade que os pombos fintam no seu voar velho, anda o meu pensamento. Vai longe, fora de mim, é isso que quero dizer. Traduz-se numa pergunta: haverá alguém, alguém com dia-a-dia, alguém de todo, que chame casa a esta estação de comboios? Ora vejamos, eu, supondo que sirvo para algo, procuro experimentar-me nisso. Subo, então, dos confins subterrâneos do metropolitano pelas mesmas escadas rolantes encimadas das inscrições que persigo: “Hall 1 & 2 Grandes Lignes”. Tento imaginar o tamanho das prensas aptas a imprimir um cartaz destes que, de área, deve dar dois do meu quarto em Lisboa. Certa lá subo, então, nesta escadaria andante e, outra vez, deito o olhar para a cobertura da loja de jornais que vai ficando abaixo de mim. Jornais, se não for de capas de telemóveis plásticas feitas na China e caixinhas de souvenirs; eu só me interesso pela cobertura. Esta a que, por ser plana, não chamarei telhado. A sujeira que lá descobri residente logo dessa primeira vez continua a atrair-me, mas não a tenho visto aumentar. Nem desaparecer, evidentemente. Ninguém limpa aquela cobertura. Levo quinze minutos no percurso a pé sempre dentro do estabelecimento “Gare Montparnasse”, edifício de estrutura fractal (e metálica), extraordinariamente particular. Entro, depois, na mesma loja onde compro o almoço todo invariável – preciso de fazer algo meu, um hábito, se puder ser, e olho as revistas. Mas deixo-as ficar a prometer. A cara da lojista já eu conheço, hum, asiática, possivelmente com mistura da américa do sul. Quis até perguntar “Ça va bien?” ou coisa assim, mas ela não me tinha registado, obviamente. E lá faz o que tem de ser: espreita torcida de trás do balcão a ver se na escolha da sanduíche que estou fazendo junto ao armário frigorífico, desvio algo para dentro do bolso e corro sem pagar. Uma ideia alheia. O seu pescoço esticado apressa-me o processo de seleção e corro mas é para ela, uma ideia mais caseira. Pago e saio dali ainda com tudo na mão, por arrumar, um smoothie com baunilha e a sanduíche vencedora, de formato triangular que nunca entra em algum espaço vazio de qualquer mala que seja, sinceramente. Os pombos lá continuam em voos cimeiros torneando as barras estruturantes, arquitetónicas e sei lá se bonitas: muito empoeiradas. Arrumo a mercadoria na mala como pode ser, o papelzinho que a lojista me deu e a carteira e, pelo canto do olho entra-me um pardal macho (os machos são mais lindos) à cata de migalhas naquele chão tremendo. Não sei como não morrem da sujeira estes pequenos bichos. Retomo o passo: ainda não foi desta que este lugar ficou qualquer coisa meu. Talvez quando a lojista me conhecer também a cara e deixar de me vigiar os gestos. Entretanto, perdoo-lhe a cena, fazer o quê?