a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

31/10/2017

Uma salva de palmas

O lançamento do novo livro de António Damásio na sua versão portuguesa - “A estranha ordem das coisas” - começou esta última manhã de outubro já o sol estava alto e o local do evento à pinha, como se costuma dizer. Gente em pé era aos molhos que os lugares sentados, sendo muitos, já não havia. Estimei oitocentas pessoas presentes, uma grande parte das quais alunos da escola secundária.
Durante o discurso esteve um silêncio contínuo na sala, a ouvir, todo igual. As palavras de António Damásio ligam os cérebros a que se dirige, o seu timbre de voz faz a massa de gente tornar-se uma, fruto de encaixes perfeitos das suas partículas, humanas. Terminou deixando-nos num transe uníssono, nem uma tosse se ouvia e, se os jovens não são de tossir nestas ocasiões, também os donos de cabelos brancos não o foram. Havia agora lugar para quatro perguntas de alunos da escola. A primeira foi posta e foi respondida. Foi pedida a segunda pergunta.
E é quando aquela senhora se levanta da assistência e começa a caminhar pela coxia que divide a plateia, dizendo urgências pouco percetíveis. Alguém da organização avançando para ela tentou detê-la mas a senhora desvia-se, continua a andar aproximando-se do palco, a senhora o que deseja, não pode, espere, pode esperar?, as perguntas são dos alunos…
- Não posso esperar, não – e para enfim, baixinha, cabelo curto, óculos quadrados, nenhum ornamento para além da urgência latente e, com voz suplicante mas firme, disse – professor António Damásio, o meu filho está no hospital entre a vida e a morte com um problema muito grave, eu já tentei de tudo, só faltava vir aqui para lhe perguntar, o professor deve saber, o que posso fazer mais por ele?

- Pode deixar aí o seu contacto e eu tratarei de encaminhar.

Estalou uma salva de palmas que se demorou a ecoar nas paredes altas do edifício. 

E deixo-a agora a ecoar aqui. Não podendo uma salva de palmas salvar o filho daquela senhora, salvou-a pelo menos a ela, naquele momento, de se sentir tão só na sua horrível dor. Tive a certeza.

24/10/2017

Um post e peras!

Continuamos na cozinha. Na cozinha há cores, cheiros, processos, químicos, mas quase sempre saudáveis, algum glúten contra o qual eu não sou, lactose fresca vinda de Espanha, lê-se na etiqueta, e peras. E peras é mesmo e peras. Uma pessoa apesar de ter lactose espanhola no frigorífico (a pessoa faz de conta que não sou eu) tem empenho em comprar fruta nacional, o que leva a pessoa a comprar sacos do tipo embalagem fechada que trazem muitas peras, mas que jeitosinhas. Pelo aspeto devem ser umas trinta. Mas tendo todas deitado pouco corpo, o otimismo trata do resto e a pessoa pensa – ah, isto comem-se duas de cada vez ou três.
Depois passam-se os dias, as semanas e as peras continuam no cesto a fazer vezes de fruteira em verde (as peras) adiando a hora de se darem a comer (o cesto, castanho). Sucede que veem as peras chegar e partir vários cachos de bananas e uvas pretas e brancas, comem-se muito bem, algumas demãos de laranjas de mesa, maçãs reinetas à grande (a pessoa adora maçãs reinetas) e várias batatas doces muito feias para a sopa (éne sopas). Até que um belo dia a pessoa chega à cozinha dando os bons dias às peras enquanto faz o café, já a pessoa conhecendo bem as da camada superior, olá peras, e eis que se nota perfeitamente que se passaram para o amarelo as peras. Todas (a pessoa inspeciona as camadas inferiores).

De modo que umas dezoito hão de atalhar para o lixo, uma vez que (1) a pessoa não teve sete filhas para dar conta da totalidade das peras em tempo útil, (2) os comensais residentes não se dispõem a arranjar uma indisposição de frutose mesmo sendo nacional e a pessoa gostava imenso de (3) saber como se viram as outras famílias não numerosas que também acolhem por tempos um saco de peras e peras!

19/10/2017

Creme (ilustrado) de beterraba e lentilhas vermelhas

- Então o que me querias mostrar, mãe?

Tirei o meu telefone esperto (embora não muito muito) de dentro da mala e busquei ecrã após ecrã, até ser exibido o texto pretendido: toma, lê isto.

Estamos sentadas junto à janela, frente a frente e frente aos nossos almoços, um de salada, o outro de hambúrguer com boa fama por isso ainda vá, batata doce e sumos naturais completamente vitaminados e coloridos. Olho o seu rosto sereno enquanto lê, as pestanas longas, os olhos grandes varrendo o texto no ecrã. A palavras tantas, solta uma risada. Depois retoma o ar sereno, que linda esta miúda, e continua. No fim da leitura, quando me devolve o telefone, pergunto:
- Então? Vamos fazer para o jantar?
- Vamos!
- O que te fez rir no texto, Saminhas, posso saber?
- Foi aquilo dos abusos físicos, mãe. Tu fazes exatamente o mesmo…

Ao cabo do almoço, antes de tornarmos a casa, passámos no supermercado: uma beterraba grande, escolho a maior para incentivo à intensidade do deguste, uma cebola do mesmo calibre, cenouras já lá temos, o molho de coentros frescos vai já este, falta a embalagem de lentilhas vermelhas, está ali.

À noite, encostamos ambas à cozinha. Eu atiro-me ao creme de beterraba e lentilhas vermelhas, nunca tinha eu ouvido o termo “estalar cebola”, mas segui o instinto quanto a isso, normalmente vou lá assim. A minha filha trata dos filetes de peixe espada preto. Os filetes beneficiam, por unanimidade, de parte do molho de coentros e levam tratamento à bulhão pato, ó mãe isto até cheira a conquilhas!

Quando mergulho a varinha mágica no caldo cozido depois dos quarenta minutos prescritos para passar o preparado a creme, oiço ao meu lado: ah, mas isso está muito líquido! Então não era para ficar puré?!...

- Não, filha, creme é espécie de sopa...

Mas estarei eu certa ou estará ela?



Para já confirma-se: é um belo creme, degusta o palato e degustam os olhos. Muito obrigada à Mãe Preocupada pela receita.

Quanto aos filetes à, tipo, bulhão pato, vamos lá dizer estalados em alho, azeite e coentros, adaptaram-se muito bem, eles, a batata cozida e, no meu caso, o copo de vinho branco.

14/10/2017

Ave Maria

Agora, na cauda da irritação que me elevou a ponto de gritar-te ao telefone, oiço Pink Floyd. As tonalidades desta música são para além do rosa, são para me ligar ao mundo urbano, e isso é tão real: acolhem-me as esperas nos semáforos, as luzes dos carros refletidas no asfalto da noite depois da chuva, acolhe-me o cheiro do monóxido de carbono dos autocarros que já viajam vazios a essa hora, o brilho do reclame luminoso por cima dos cafés ainda abertos na avenida, enternecem-me os nomes escolhidos sabe-se lá por que sonhos, e tu estás a milhas. Se me apetecer ponho-me já a caminho do São Carlos, simulo uma noite do próximo mês julho, é La Traviata, e a seguir claro que morrerei mais rica. Isto se morrer alguma vez.
Esqueces-te – tão cheio de ti te constróis – que te sei por dentro. Escusavas de vir para mim com a tua infinita fome de ti próprio, tamanha necessidade tens de te ouvires, encheres-te soberbamente - cuidado não rebentes; mas não o faças comigo. É inútil.
- Estás-me a falar assim porquê? – dizes, obtuso.
Ontem, ainda me lembro, entrei no dia ouvindo a Ave Maria de Bach no rádio velhinho. Um dos lugares mais belos do mundo, a Ave Maria de Bach. Desses onde nunca entrarás por causa do tamanho absurdo do teu ego. E Bach é um lugar em forma de música que me liga a mim à eternidade, que está para além do urbano, mas também isso não sabes o que é. Estar ligada à eternidade é ser mais forte, é, ouvindo Pink Floyd, escrever isto se morrer alguma vez.
Burro, continuas a deixar cair os teus dias em chão estéril.
Falo-te assim, grito-te, mas sei que não ouves nada para além do enorme vazio de que te vestes, achando que é esse o caminho da tua fama. Como é que ainda não viste que estás só. 

06/10/2017

The end (o post)

Brinquei para aí um minuto às casinhas com o blogue: pus-lhe um tema com figos para experimentar (do mostruário), o blogue ficou bem e a mim dá-me água na boca os figos, acontece-me há imenso tempo, mas depois nem pensar. É certo que o tema dos figos é de considerar para ao blogue aplicar, que lindo, ainda por cima cortados ao meio a deixar ver os veiozinhos rubros, ai jesus que lá vem o natal, mas não é que desapareciam os meus blogues da lista lateral nessa mudança e, mais, que eu vi muito bem: sumiam os seguidores! Os figos sim senhor mas de resto minimalista e eu olha olha, querias. Não chegámos a acordo. Portanto manter-nos-emos fiéis ao look out-of-fashion if you don’t mind and now, guys, what about going on in English, like, throughout the very post down to its very end, I do simply adore these very expressions and… all right, sure, this isn’t write, no, this isn’t right, let’s thus come back (happily ever after) to the cold cow, ou é aqui que a porca torce o rabo, eu ando é um bocado cansada. Hoje disse: sobrecansada. E apesar de a palavra não existir, há toda a verdade nela.
Entretanto fui arrancada ao processo criativo que se estende acima para ir apanhar jogadoras de vólei ao local do treino, que mudou, e eu preciso do meu telefonezinho esperto conectado à tecnologia que a gente já nem nota que traz no carro, os satélites ajudam-me a chegar ao sítio que fica por trás por trás por trás duns prédios, é dificílimo mas lá cheguei, e dizia que fui arrancada ao processo criativo para ir transportar as jogadoras e distribui-las por vários endereços diferentes, uma delas minha filha, está-se mesmo a ver, falam as jogadoras todas ao mesmo tempo no carro, e é alto que falam, olá mãe da Saminhas, como está, eu sou a mãe da Saminhas, nem elas sonham o que eu adoro aquele vibrar de vida, o bem que sabe ouvi-las discutir os mandos do treinador, mas que acabo com a cabeça em água, acabo, e se primeiro fui eu, agora é o post.

The end.

(o meu forte não são os títulos ou o meu forte não é os títulos - mesmo assim, este blogue não está nas últimas)