a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/03/2018

Palavra Microssuave (proponho)

O meu teclado sem fios, sem A, sem S, sem E e quase sem D por esta ordem cronológica revelou-se um informador fiável sobre quais as letras que mais utilizo em minha incessante escrita que é também por aquela ordem, decrescente, a par com o desafio de não esquecer onde estavam antes pintadas as letras sumidas: a ver até quando aguentarei usá-lo sem perda do saber. Quando há tempos o meu sobrinho Miguel me visitou - tia precisava de ajuda para escrever uma carta de apresentação, posso ir aí? Logo ele puxou uma cadeira para se sentar ao meu lado e, antes que nada, lançou um sorriso lateral ao teclado e divertido, todo moreno e bonito, o meu sobrinho confirma faltam aí letras, tia (não disse?). Nesta Páscoa vai levar com um ovo de chocolate que nem sabe lá ele, aliás ele, os irmãos dele e os primos dele, tudo sobrinhos que a vida boa deu p'ra mim.

Há pouco lembrei-me que o termo “Palavra Microssuave” ia suar a nada e a gente tanto o usa. Soar soar, que suar vem do trabalho. Ou vê-se logo? (alguém?)

29/03/2018

Vamos voltar à tasca?

Tenho um candidato a genro (ou parecido). Sportinguista até aos ossos (Salo Minho, então gostas do Jorge Jesus?) e de bom garfo (coisinhas sem glúten e folhinhas de alface não são comida), é rapaz de pouca conversa (gosto, responde apenas). Não terá porém isto problema, dado que Muzi, a minha filha dos olhos de azeitona nos quais tanto deleito os meus, fala por dois ou mesmo três se quiser. Já assim era enquanto eu lhe dava banho e a secava e a vestia ouvindo as suas conjeturas de muito tenra idade pontuadas aqui e ali por não é mãe? e eu sim é, filha, marcando pronta participação no diálogo desequilibrado mas fundamental. Se o meu sim é, filha tardava um segundo, ela toda logo: então, mãe, não falas?! De forma que Salo Minho não terá muitas oportunidades para botar longo discurso e parecem estar bem assim. Mas eu puxo por ele, evidentemente. Há dias, ao almoço, estávamos só os três (e um repasto mais caprichado) e achei de bem contar-lhe a minha experiência naquilo a que denominei tasca há meia dúzia de posts atrás mas melhor teria denominado espelunca só que na altura não me lembrei. Foi lugar em que incorporei três valentes febras de seguida e tanto me admirei que até o casaco lá deixei (a rima quer ficar). Pareceu-me tema para pôr Salo Minho na disposição de conversar mais longamente, motivado pela curiosidade do lugar tasca-aliás-espelunca e eu lá a enfardar três febras naquilo. Fui então contando em partes.
- É uma tasca com a churrasqueira à porta?... – vai Salo Minho.
Era, mas muitos serão os casos. Portanto continuo a contar descrevendo a sujidade, por exemplo. Salo Minho não poderia conhecer, e o lugar é longe.
- Sei, tem a casa de banho ao fundo, à esquerda…
Tem, mas vamos que há muitas parecidas e esta era mesmo uma tasca em modo espelunca, hã? - eu vou acertando as pontas ao discurso, na senda de o impressionar com a comezaina que lá vim a fazer.
- E tem uns degrauzinhos para a casa de banho, não tem?...
Mau. Assim já é coincidência a mais... Apurei a descrição da esquina, da rua e do estacionamento, é longe, é longe. Mas batia tudo certo e eis que Salo Minho em tempos foi freguês assíduo da tasca (fica tasca, então).
- Comeu as febras – remata ele – são muito boas, pois são, mas olhe que a entremeada ainda é melhor!

E agora que já ouvimos Salo Minho conversar neste post inaugural e nada podemos dizer quanto à entremeada, falta fechar o casaco. O meu casaco inspirador da rima supra que lá ficou esquecido na espel… tasca, e que fui apanhar ao final do dia das febras. Foi depois lavado com muito jeitinho no programa das lãs e roupa delicada, o qual, mesmo assim, lhe deixou um botão pendente sem ninguém ver. Cumpridor da gravidade, o botão foi cair ao chão logo pela manhã seguinte e, num perfeito estado vertical, metaestável, rolar definitivamente para debaixo de um carro estacionado.


(pode continuar)

27/03/2018

Amorzinho

Sabes-te desviada da rota. A cada minuto, mais um metro ao lado. Amortecido, o pulsar desse mundo que não te quer afunda-se num futuro paralelo. Levantas os olhos enquanto cumpres a espera e vês o miúdo robusto tentando trepar o vidro convexo, polido, do balcão dos bolos. Ignora as recomendações da mãe para ter cuidados com a senhora, amorzinho. O amorzinho de sua mãe. Demoras um tempo denso, lateral, a compreender que a senhora és tu, modo metálico de te constatares visível. Sem sorrir, preconizas ali um homem forte, fisicamente forte, em formação. Um homem que pertence.
De manhã, as obras do telhado contíguo invadem o fluido branco e espesso para onde aquele pulsar do mundo de que sobras te empurrou. E tu acreditas que, em princípio, está certo assim.

18/03/2018

As notas e a música é mesmo um fluido

E desejas, como desejas, ter um dia de descanso, um todo, um em que não trabalhes nem uma letra nem um copo sujo, uma espinha de peixe caída ao chão, uma toalha por dobrar, nada. Pensas que aí podias mitigar isto, este aperto na garganta que vais reprimir outra vez, claro. Lágrimas não as queres por causa de ver, que com elas caindo não vês o trabalho e a verdade tem de middle name "who cares?" incluindo o ponto de interrogação, tal como já sabias. Manténs os olhos secos que é uma beleza, pega no lencinho, pega, aperta-os bem que eles aguentam-se. E então vais e pelo sim pelo não tomas um intervalo para chá. No armário encontras a caixa do sabor a maçã e canela e é nessa que pegas. Depois, enquanto o saquinho se ajeita na água que ferveu num instante, olhas os jacintos que já floriram. São os jacintos do vasinho que cuidaste comprar para ti, nem sabias a cor deles por virem fechados num verde imberbe mas uns dias depois oh! são rosa os jacintos! Portanto enquanto o chá se solve e não solve vais dar uma cheiradinha neles, não vais? são teus, hum! que odor estes jacintos!
E de volta ao trabalho de chá na mão, estás de novo rija que nem um pero, mas eis que notas a música. Pousas o chá. Não, isto é notas que não escolheste. A música aspira-te qualquer coisa e já esqueceste o rija que nem um pero e o lenço que aperta os olhos em cima da mesa, já amoleces por partes. A música ganha. Tu perdes e finalmente choras também.



(Stephen Hawking experimentou morrer, em tempos, deixando de respirar. Não conseguiu porque o reflexo da respiração foi mais forte. Ainda bem.)

16/03/2018

Receber a gasolina por bluetooth é que era bom

Há especialmente duas coisas da vida atual civilizada nas quais eu não encontro encanto algum. Uma é ser abordada nos centros comerciais ou aeroportos para me venderem porcarias que preciso de continuar não tendo, a outra é ter absolutamente de parar para meter gasolina no carro especialmente se for nas gasolineiras que exigem pré-pagamento que é, na verdade, quase todas. Mas hoje ia a certa altura precisar de passar a ponte 25 de abril e então pensei: é mais sensato pré-meter gasolina no carro do que deixar o apito avisador do painel de instrumentos que já deve estar todo cansado concretizar-se numa paragem forçada em cima do tabuleiro, o que ainda para mais, ouvi dizer, é completamente proibido.

Então vamos meter gasolina, ok? Parei na estação de serviço e claro que a bomba está em pré-pagamento. Vou então primeiro lá dentro pagar o valor que estimo servir para quase atestar sem transbordar e já estou com a agulheta a encher o depósito do combustível necessário quando sinto alguém aproximar-se por trás de mim e fazer um tsc arham para se anunciar. Finjo que não ouço nada porque não-acredito-que-logo-quando-estou-a-fazer-esta-coisa-entediante-venha-a-outra-coisa-entediante que é #quereremvender-meporcariasnarua.com (para variar dos tracinhos, pode também optar por hashtags). Mas como me ocorreu que podia ser algo de que eu iria ter de me defender com uma esguichadela de gasolina em alguém, por exemplo, numa bomba em pré-pagamento nunca se sabe o que pode suceder, virei-me, ou melhor, torci-me 30 minutos para a direita enquanto mantenho o aperto do manípulo com imensa força que às vezes até me fica a doer o pulso e depois afinal é um senhor de cabelo todo branco. Ar distinto, um jeito britânico de quem não me vai fazer esguichar-lhe gasolina nenhuma ou seja posso aproveitá-la toda, parece este senhor ter acabado de tomar um banhinho e pentear o cabelinho. Pergunta-me então devagar e em inglês como se faz para encher o depósito do carro – as bombas em pré-pagamento têm um bloqueio lá delas, não têm? – e o senhor estava sem saber como dar a volta à questão apenas tendo dado a volta à linha de mangueiras uma das quais já vimos que está na minha mão em apertos uma vez que eu ainda não acabei. O senhor, disse eu torcida, tem de ir lá dentro, pede para lhe desbloquearem a bomba e depois já pode encher. Ele foi. E eu mal terminei o serviço da estação devolvi a agulheta mais ou menos ao seu sítio, fechei bem a tampinha do depósito e entrei no carro ainda melhor.

(o próximo vai ser elétrico, vai vai)

14/03/2018

Também andei à Gisele

À hora de almoço disse às minhas duas filhas que quando daí a pouco chegasse ao Segundo Cliente, o António, ao receber-me, ia perguntar-me queres um café ao que eu iria responder que nunca digo não a essa pergunta específica. Depois disse-lhes que talvez ele já saiba, a tantas páginas, que é sem açúcar o meu café, mas disso não estava eu certa à hora de almoço.

Cheguei ao Segundo Cliente a escorrer chuvas da Gisele que me apanharam pelo caminho entre o estacionamento e o edifício, aquilo deve rondar uns compridos cem metros, sem chapéu-de-chuva. Hoje ninguém andou sem chapéu-de-chuva, mas o meu foi roubado (há dias), por uma das duas protagonistas do parágrafo acima, só não se sabe é qual.

Então o António aproxima-se e começa a cumprir-se
- Queres um café?
Eu sem tempo de dizer palavra, meio sacudo o cabelo, meio disfarço, ele logo continua
- Já sei, a esta pergunta não dizes que não.
E ainda, bem de seguida, eu toda calada atentando
- É sem açúcar, não é?

Quando saí, muitas horas depois, já não chovia a Gisele.

Stephen Hawking

Hoje de manhã, ao ver o nome de Stephen Hawking no título do jornal inglês, o meu coração disse não, numa fração de segundo, não - ele não morreu... Mas a notícia não era sobre mais algum desenvolvimento relativo ao Universo, aos misteriosos Buracos Negros, não era mais uma aposta falhada, ou ganha, uma das suas singularidades. Era mesmo a sua morte.
Vai-nos fazer falta um homem assim, um homem que conseguiu sobreviver 55 anos e não apenas os dois que os médicos lhe prognosticaram, vencendo uma doença que tanto o tentou travar. Estou-lhe grata. E estou-lhe grata não só por ele ter conseguido continuar a construir a sua teoria, a tentar descobrir as loucuras em que andamos metidos neste nosso caprichoso Universo, mas também por ser um modelo de persistência, de luta ganha, de muita vontade de viver. Um daqueles homens que aponto às minhas filhas e digo, vejam, aprendam.

Talvez Stephen Hawking possa encontrar uma outra paz fora do corpo limitado em que viveu tanto tempo e, quem sabe, consiga ainda visitar um Buraco Negro para o cumprimentar.

10/03/2018

Mais um bocado e era Dalí

A máquina é volumosa, tem quase a minha altura e muito mais que a minha largura. Na estrutura superior faz girar um sapato de cor clara e atacador, colocado na vertical, a uma frequência constante. A norte do sapato gira também um carrinho de linhas que me dá a impressão de saber do ofício. Abro a portinhola de cima e verto dentro algumas ervilhas congeladas. Apressado, aproxima-se de mim o Manuel pingando água da chuva, agarrado aos papéis onde faz revisões e revisões de contas. Os papéis também pingam água da chuva e ele diz-me que o atraso se deveu à turbulência, que o voo tinha sido dificílimo. Fecho a portinhola onde deitei as ervilhas e enquanto Manuel passa a mão no cabelo tentando recuperar, estou certa, a compostura, o alarme de um carro estacionado na rua arranca-me ao sono.

E depois ocorreu-me que mais um bocado e isto era Dalí. Mas é evidente que é daqui. Daqui, aliás.

06/03/2018

Há muito tempo que não havia post com café (e tão lindo)

Entre um troço do meu trabalho e o troço seguinte, faço uma pausa preenchida com diversas atividades que vão desde tomar um café com ou sem uma coisa até por exemplo passar roupa a ferro, caso este em que dou descanso adequado à parte de mim sobre a qual me sento. Ora desta vez o intervalo no trabalho incluiu um café com uma coisa. A uma coisa é sobra do Natal passado e era não a última bolacha do pacote mas a última coisa do pacote. Eu não sei como se chama a coisa, isso já se percebeu, mas que é doce é e arredondada e branca também, aliás era. Antigamente quando não havia facilidades eletrónicas prontas a corrigir erros próprios, fazia-se uso da palavra aliás e de vírgulas indicadoras e não se rasurava o erro, tão engraçado isso. Mas a minha pausa deu origem então, dizíamos, a um pacote vazio sem nenhuma das coisas dentro, que eu deixei inadvertidamente em cima da bancada da cozinha antes de o segregar muito bem (depois). E por me ter posto a jeito também inadvertidamente vi o efeito que um fez com a outra sob a luz do sol que a janela deixava passar, efeito que mereceu ou não mereceu uma fotografia e respetivo post dedicado, aliás muito lindo?