Estou mais uma vez mergulhada na luta das flores.
Está ali fora um montão delas, cresceram nas últimas semanas em direcção oposta à da acção da gravidade, como fazem sempre, coisa tão estranha e eu nem reparei.
Puseram-se em duas cores diferentes qual delas a mais bela e eu fico nisto, vou não vou.
A primavera andou por ali a cuidar das beldades, isso qualquer pessoa vê, mas esqueceu-se de varrer a chuva e o vento, de subir a temperatura ao ponto em que devia estar, de alindar o jardim para que a borboleta-sol possa poisar. As flores estão encolhidas de frio.
Não me aborreço com os esquecimentos da primavera, o tempo que faz lá fora não costuma atacar-me a disposição.
Mas esta luta.
Comprei uma jarra e tudo.
Ir ali abaixo, colher seis ou sete de cada cor, trazê-las para dentro e metê-las na jarra com meia altura de água para decorar a mesa, olhá-las de todos os lados e de longe e de perto, muito perto, até lhes distinguir a penugem das pétalas, depois sentar-me a admirá-las, deixá-las massajarem-me a vista até me saciarem a sede, é exactamente o que não vou fazer.
O que vou é agora mesmo fotografá-las lá onde estão. Para as eternizar.
Talvez assim nunca murchem.
(borboleta-sol é uma espécie que se não existe, devia)
a voz à solta
30/03/2014
27/03/2014
Oitocentos metros
- Por aqui só se eu fosse um javali.
O técnico da empresa de comunicações diz que por ali só se ele fosse um javali.
Está escuro como breu, o sol já se pôs há horas e a chuva miudinha, que embora arranje algum brilho à noite, não ajuda nada ao caso.
Pela quarta vez estou na casa da serra, de combinação com mais um dos muitos técnicos capazes de ligar o serviço de internet que não está pelos ajustes para se chegar cá acima. Daqui toda a gente partiu há décadas quando a internet estava por nascer e a família de fios telefónicos que cá ficou a passar de poste em poste entrou em pré-reforma devido a falta de trabalho.
- Os meus colegas não ligaram os fios e é preciso subir ao poste, está a perceber?
O técnico das comunicações não estava feliz por ter de subir ao poste telefónico que se situa uma dezena de metros mais abaixo no monte, mal se vê daqui, coberto até um terço da sua altura por silvas e arbustos indefinidos nesta noite chuvosa de um março irritante.
Balbuciei um pedido de desculpa, afirmei que estava em crer que o serviço era mesmo só ligar os fios dentro de casa desta vez, se eu soubesse não teria combinado a uma hora destas.
Ele estudou a berma desta estrada artesanal, procurou-lhe um acesso, andou para a esquerda e para a direita até que encontrou uma entrada, por aqui deve dar, com o pé calcou o chão a ver se tem firmeza que chegue, parece que sim.
- Tem uma lanterna, a senhora?
- Não... não tenho uma lanterna... e agora?
- Agora vai com a luz do telemóvel, se a bateria aguentar!
Aprovada a abertura para o caminho de silvas altas até ao poste, o técnico da empresa de comunicações regressou à carrinha branca estacionada na rua de paralelepípedos adormecidos pelo tempo.
De lá retirou um fato de correntes e correias que começou a vestir à chuva, pegou no que parecia um martelo e caminhou outra vez rua abaixo com aquele arsenal a fazer uma barulheira que deve ter acordado finalmente as pedras do chão. Depois deixei de o ver.
Em cuidados com este rapaz, corro ao terraço da minha casa, que deita para a encosta, e posiciono-me de vigia ao poste.
Lá está o vulto no topo, a martelar e a emitir barulhos metálicos. Barulhos essenciais, que alguns minutos depois a internet chegou à aldeia em ruínas e entrou-me em casa a cheirar tudo, a ver que tal, a dar turras nas paredes, a internet anda aqui pelos ares, já fora dos fios que a trouxeram, anda satisfeita.
E eu cheguei uma garrafa de vinho das que cá tinha a este rapaz, muito obrigada pelo seu esforço.
Isto passou-se exactamente assim, desta vez não inventei nem um bocado.
Hoje, numa reunião de trabalho, a propósito da necessidade de percorrer uma distância de oitocentos metros, repito, oitocentos metros, entre dois edifícios de uma rua de Lisboa toda jeitosinha para se caminhar a pé, oiço três pessoas declarar que é muito complicado, que não há viatura para a deslocação e que é necessário autorizações, abanam as cabeças, muito complicado. E mais coisas que já não ouvi porque saí a correr para ir vomitar.
Só me lembrei do rapaz que se transformou em javali naquela noite.
O técnico da empresa de comunicações diz que por ali só se ele fosse um javali.
Está escuro como breu, o sol já se pôs há horas e a chuva miudinha, que embora arranje algum brilho à noite, não ajuda nada ao caso.
Pela quarta vez estou na casa da serra, de combinação com mais um dos muitos técnicos capazes de ligar o serviço de internet que não está pelos ajustes para se chegar cá acima. Daqui toda a gente partiu há décadas quando a internet estava por nascer e a família de fios telefónicos que cá ficou a passar de poste em poste entrou em pré-reforma devido a falta de trabalho.
- Os meus colegas não ligaram os fios e é preciso subir ao poste, está a perceber?
O técnico das comunicações não estava feliz por ter de subir ao poste telefónico que se situa uma dezena de metros mais abaixo no monte, mal se vê daqui, coberto até um terço da sua altura por silvas e arbustos indefinidos nesta noite chuvosa de um março irritante.
Balbuciei um pedido de desculpa, afirmei que estava em crer que o serviço era mesmo só ligar os fios dentro de casa desta vez, se eu soubesse não teria combinado a uma hora destas.
Ele estudou a berma desta estrada artesanal, procurou-lhe um acesso, andou para a esquerda e para a direita até que encontrou uma entrada, por aqui deve dar, com o pé calcou o chão a ver se tem firmeza que chegue, parece que sim.
- Tem uma lanterna, a senhora?
- Não... não tenho uma lanterna... e agora?
- Agora vai com a luz do telemóvel, se a bateria aguentar!
Aprovada a abertura para o caminho de silvas altas até ao poste, o técnico da empresa de comunicações regressou à carrinha branca estacionada na rua de paralelepípedos adormecidos pelo tempo.
De lá retirou um fato de correntes e correias que começou a vestir à chuva, pegou no que parecia um martelo e caminhou outra vez rua abaixo com aquele arsenal a fazer uma barulheira que deve ter acordado finalmente as pedras do chão. Depois deixei de o ver.
Em cuidados com este rapaz, corro ao terraço da minha casa, que deita para a encosta, e posiciono-me de vigia ao poste.
Lá está o vulto no topo, a martelar e a emitir barulhos metálicos. Barulhos essenciais, que alguns minutos depois a internet chegou à aldeia em ruínas e entrou-me em casa a cheirar tudo, a ver que tal, a dar turras nas paredes, a internet anda aqui pelos ares, já fora dos fios que a trouxeram, anda satisfeita.
E eu cheguei uma garrafa de vinho das que cá tinha a este rapaz, muito obrigada pelo seu esforço.
Isto passou-se exactamente assim, desta vez não inventei nem um bocado.
Hoje, numa reunião de trabalho, a propósito da necessidade de percorrer uma distância de oitocentos metros, repito, oitocentos metros, entre dois edifícios de uma rua de Lisboa toda jeitosinha para se caminhar a pé, oiço três pessoas declarar que é muito complicado, que não há viatura para a deslocação e que é necessário autorizações, abanam as cabeças, muito complicado. E mais coisas que já não ouvi porque saí a correr para ir vomitar.
Só me lembrei do rapaz que se transformou em javali naquela noite.
26/03/2014
Esmagado até ao zero
Foi preciso pôr-me a ouvir uma música tirada das listas do Youtube, uma música de relaxamento em que se ouve água a cair em pedras equilibradas numa torre que se mantém estável devido à forma achatada das pedras e também, penso eu, devido à sua cor cinzento-rato com uma lista branca aqui e ali, cenário que encerra uma dose inegável de paz e quietude.
Dizia eu que foi preciso esta música de chuvinha acompanhada de teclares encantadores e algo repetitivos de piano, e está o meu cérebro preparado para um momento economicista, totalmente fora da área de estudo que segui há algumas décadas atrás (não muitas, poucas).
Sugere a Teodora Cardoso que havíamos de pagar impostos sobre os levantamentos bancários que fazemos, numa de incentivo à poupança. A Teodora Cardoso deve saber o que diz, é senhora de respeito, não agita o braço no ar enquanto fala nem grita nem se dá ares de agressiva nem nada, por isso não lhe viro as costas e fico a apreciar a seriedade das suas palavras.
Isto passa-se hoje pela manhã. Meia dúzia de raios de sol entram pela janela da minha cozinha, lá ao fundo vislumbro uma nesga de rio Tejo, observo os automóveis na rua lá em baixo, passam também dois homens a correr, isso é que eu admiro homens que correm e, enquanto faço o café e espero que o pão salte na torradeira, oiço as notícias.
A Teodora Cardoso (que nome, Teodora, que nome) apareceu já a torrada ia a meio. A sua ideia inovadora, como ela própria classificou, faz-me quedar suspensa com a torrada na mão e a boca aberta para ouvir melhor esta teoria enquanto aguardo a reacção, a minha, que não está aqui mais ninguém.
E a taxa? Se ao levantar o dinheiro pagamos um imposto, então extingue-se o iva com a ponta do sapato, esmagado até ao zero, é isso? Até podia parecer coisa a cair que nem ginjas não fora o iva ter vários escalões e nós estarmos já todos mesmo a ver que ah-e-tal-o-escalão-para-a-taxa-inovadora-é-o-de-cima, não é?
Ou seja, tenho cinco euros para comprar pão, leite, manteiga, laranjas e chega que o dinheiro acabou. Em vez de pagar os seis por cento do iva de hoje dos produtos que não podemos dispensar, não. Pago nada.
Pago nada porque paguei antes, no levantamento taxado. Paguei aquilo a que se havia de chamar taxa única, na onda do simplex, de, pensemos um pouco, vinte e três por cento, não é?! Não, deixe lá isso, Teodora, deixe lá isso.
Vai um cafézinho?
(o detalhe de abrir a boca para ouvir melhor que menciono acima não tem propriamente explicação científica, mas é autêntico, tanto como eu não me chamar Teodora Cardoso)
Dizia eu que foi preciso esta música de chuvinha acompanhada de teclares encantadores e algo repetitivos de piano, e está o meu cérebro preparado para um momento economicista, totalmente fora da área de estudo que segui há algumas décadas atrás (não muitas, poucas).
Sugere a Teodora Cardoso que havíamos de pagar impostos sobre os levantamentos bancários que fazemos, numa de incentivo à poupança. A Teodora Cardoso deve saber o que diz, é senhora de respeito, não agita o braço no ar enquanto fala nem grita nem se dá ares de agressiva nem nada, por isso não lhe viro as costas e fico a apreciar a seriedade das suas palavras.
Isto passa-se hoje pela manhã. Meia dúzia de raios de sol entram pela janela da minha cozinha, lá ao fundo vislumbro uma nesga de rio Tejo, observo os automóveis na rua lá em baixo, passam também dois homens a correr, isso é que eu admiro homens que correm e, enquanto faço o café e espero que o pão salte na torradeira, oiço as notícias.
A Teodora Cardoso (que nome, Teodora, que nome) apareceu já a torrada ia a meio. A sua ideia inovadora, como ela própria classificou, faz-me quedar suspensa com a torrada na mão e a boca aberta para ouvir melhor esta teoria enquanto aguardo a reacção, a minha, que não está aqui mais ninguém.
E a taxa? Se ao levantar o dinheiro pagamos um imposto, então extingue-se o iva com a ponta do sapato, esmagado até ao zero, é isso? Até podia parecer coisa a cair que nem ginjas não fora o iva ter vários escalões e nós estarmos já todos mesmo a ver que ah-e-tal-o-escalão-para-a-taxa-inovadora-é-o-de-cima, não é?
Ou seja, tenho cinco euros para comprar pão, leite, manteiga, laranjas e chega que o dinheiro acabou. Em vez de pagar os seis por cento do iva de hoje dos produtos que não podemos dispensar, não. Pago nada.
Pago nada porque paguei antes, no levantamento taxado. Paguei aquilo a que se havia de chamar taxa única, na onda do simplex, de, pensemos um pouco, vinte e três por cento, não é?! Não, deixe lá isso, Teodora, deixe lá isso.
Vai um cafézinho?
(o detalhe de abrir a boca para ouvir melhor que menciono acima não tem propriamente explicação científica, mas é autêntico, tanto como eu não me chamar Teodora Cardoso)
22/03/2014
A creditar
Não sou pessoa de me preocupar facilmente, as coisas são como são e como há males que vêm por bem, o que será será, é aceitar que o mundo não é feito à medida de cada um. Valha-nos um belo copo de vinho à lareira se chover e um bom livro na esplanada do café se fizer sol.
Mas a RTP está a trazer-me preocupada. Anda a mostrar vigarices como se fossem verdades e chama-lhes "Acreditar".
O que querem eles? Outra gripe A, mais manifestações, mais greves, um tsunami, uma doençazita das vacas loucas, por exemplo, há tanto tempo que não se ouve falar das vacas, é isso que querem é?
Até parece que não têm um avião desaparecido para fazer notícia, que uma Crimeia não anda de mão em mão, que uma Ucrânia não está caótica, até parece que os cientistas não ouviram a radiação de fundo do Universo, até parece que o Alberto João Jardim não anda a brincar com o povo e que não há cidadãos chineses a comprar mansões em Cascais para dourar a estadia por cá, até parece.
É eu ler nos blogues outra vez que esta idiotice de mau gosto continua e dessintonizo a RTP do meu aparelho de televisão um dia destes quando, ao limpar-lhe o pó, o ligar sem querer.
Devido ao pouquíssimo interesse que este tema tem, o meu post ficou, finalmente, pequenino.
A creditar na RTP, se faz favor.
Mas a RTP está a trazer-me preocupada. Anda a mostrar vigarices como se fossem verdades e chama-lhes "Acreditar".
O que querem eles? Outra gripe A, mais manifestações, mais greves, um tsunami, uma doençazita das vacas loucas, por exemplo, há tanto tempo que não se ouve falar das vacas, é isso que querem é?
Até parece que não têm um avião desaparecido para fazer notícia, que uma Crimeia não anda de mão em mão, que uma Ucrânia não está caótica, até parece que os cientistas não ouviram a radiação de fundo do Universo, até parece que o Alberto João Jardim não anda a brincar com o povo e que não há cidadãos chineses a comprar mansões em Cascais para dourar a estadia por cá, até parece.
É eu ler nos blogues outra vez que esta idiotice de mau gosto continua e dessintonizo a RTP do meu aparelho de televisão um dia destes quando, ao limpar-lhe o pó, o ligar sem querer.
Devido ao pouquíssimo interesse que este tema tem, o meu post ficou, finalmente, pequenino.
A creditar na RTP, se faz favor.
18/03/2014
Cálculos extenuantes
Jantei à pressa para vir contar isto.
Estou que não me aguento de tão maravilhada comigo.
Comprei um saquinho de amêndoas torradas no supermercado do bairro onde moro. O saquinho tem a data de validade marcada com aquelas máquinas que os empregados dos supermercados dos bairros onde as pessoas moram seguram na mão e fazem tsc tsc e colam a etiqueta com a data impressa a sair por um dos lados e do outro lado vão devolvendo a fita que acomodou as etiquetas.
As amêndoas torradas não têm adição de sal ou de açúcar e portanto convêm a qualquer um independentemente do índice de massa corporal ou do nível de colesterol, o óleo de amêndoa diz que faz bem a muitas partes do corpo e a mim fez-me bem ao ego, já vou contar, que nem acabei de jantar como deve ser para isto.
Compro saquinhos de amêndoas torradas porque me lembram o meu avô João e isto tem que ser dito. Ele tinha sempre uma caixa oval de plástico muito brilhante e muito anterior à existência da Tupperware, com dois clips nas extremidades se é que uma oval tem extremidades, e dentro estavam as amêndoas torradas. A caixa vi-a sempre cheia e eu gostava de observar o meu avô enquanto ele trincava as amêndoas, aquilo via-se mesmo que lhe fazia gosto.
Mas as amêndoas são traiçoeiras, e é aqui que reside o busílis. A cada dez boas vem uma que faz trepar as paredes de horrível que é, que incentiva os olhos de quem a mastiga a darem uma volta ao bilhar grande em todas as direcções, que fazem libertar arrepios pelas costas abaixo, que lançam sacudidelas violentas aos pobres ombros já descaídos de dor e que deitam por terra todas as regras adquiridas da boa educação, enquanto a pessoa não cospe aquilo não se liberta da tortura. Eu teria preferido provar pastilha elástica de cinza de vulcão extinto ou assim.
Portanto o que me traz aqui é isto: descobri que estas amêndoas que são tão más quanto as outras são boas, consistem nem mais nem menos do que naquela entidade esquiva que ninguém nunca viu mas que se sabe que anda por aí, aquela coisa que apareceu no universo bebé, aquela matéria que, que é, que é...
...anti-matéria! As amêndoas que atacam o desgraçado que as mete na boca são as acabadas de denominar anti-amêndoas. São capazes de encerrar toda a anti-matéria do universo e fui eu quem descobriu! Daí este orgulho.
Ora entre a teoria da anti-amêndoa descrita acima e aquilo de uns cientistas terem captado a radiação de fundo do universo bebé, o som dos primeiros milionésimos de nano pico do milisegundo, aquilo que lhes custou imensos recursos em equipamentos caríssimos e cálculos extenuantes, para além de terem demorado treze vírgula oito mil milhões de anos a descobrir essa radiação que já devia estar cansada de avisar, estou aqui! estou aqui!, entre um e outro, um de nós há-de ganhar o Nobel.
E está-se mesmo a ver quem.
Estou que não me aguento de tão maravilhada comigo.
Comprei um saquinho de amêndoas torradas no supermercado do bairro onde moro. O saquinho tem a data de validade marcada com aquelas máquinas que os empregados dos supermercados dos bairros onde as pessoas moram seguram na mão e fazem tsc tsc e colam a etiqueta com a data impressa a sair por um dos lados e do outro lado vão devolvendo a fita que acomodou as etiquetas.
As amêndoas torradas não têm adição de sal ou de açúcar e portanto convêm a qualquer um independentemente do índice de massa corporal ou do nível de colesterol, o óleo de amêndoa diz que faz bem a muitas partes do corpo e a mim fez-me bem ao ego, já vou contar, que nem acabei de jantar como deve ser para isto.
Compro saquinhos de amêndoas torradas porque me lembram o meu avô João e isto tem que ser dito. Ele tinha sempre uma caixa oval de plástico muito brilhante e muito anterior à existência da Tupperware, com dois clips nas extremidades se é que uma oval tem extremidades, e dentro estavam as amêndoas torradas. A caixa vi-a sempre cheia e eu gostava de observar o meu avô enquanto ele trincava as amêndoas, aquilo via-se mesmo que lhe fazia gosto.
Mas as amêndoas são traiçoeiras, e é aqui que reside o busílis. A cada dez boas vem uma que faz trepar as paredes de horrível que é, que incentiva os olhos de quem a mastiga a darem uma volta ao bilhar grande em todas as direcções, que fazem libertar arrepios pelas costas abaixo, que lançam sacudidelas violentas aos pobres ombros já descaídos de dor e que deitam por terra todas as regras adquiridas da boa educação, enquanto a pessoa não cospe aquilo não se liberta da tortura. Eu teria preferido provar pastilha elástica de cinza de vulcão extinto ou assim.
Portanto o que me traz aqui é isto: descobri que estas amêndoas que são tão más quanto as outras são boas, consistem nem mais nem menos do que naquela entidade esquiva que ninguém nunca viu mas que se sabe que anda por aí, aquela coisa que apareceu no universo bebé, aquela matéria que, que é, que é...
...anti-matéria! As amêndoas que atacam o desgraçado que as mete na boca são as acabadas de denominar anti-amêndoas. São capazes de encerrar toda a anti-matéria do universo e fui eu quem descobriu! Daí este orgulho.
Ora entre a teoria da anti-amêndoa descrita acima e aquilo de uns cientistas terem captado a radiação de fundo do universo bebé, o som dos primeiros milionésimos de nano pico do milisegundo, aquilo que lhes custou imensos recursos em equipamentos caríssimos e cálculos extenuantes, para além de terem demorado treze vírgula oito mil milhões de anos a descobrir essa radiação que já devia estar cansada de avisar, estou aqui! estou aqui!, entre um e outro, um de nós há-de ganhar o Nobel.
E está-se mesmo a ver quem.
15/03/2014
Intervalo
O quê, as salas de cinema em Portugal tiveram uma quebra de alto lá com ela nas receitas?!
Afinal o golpe de marketing mais recente no sector, que consistiu em tornar a abrir o filme ao meio metendo-lhe nas entranhas um intervalo com imensos incentivos à compra de pipocas, bebidas, gomas e outros víveres indispensáveis à visualização de qualquer filme que se preze, que fez tornar bem claro o vá-que-ainda-tem-tempo com os minutos a descontar muito devagarinho no ecrã gigante, a ver se as três ou quatro pessoas que estão na sala correm a comprar três ou quatro baldes de pipocas que mal podem transportar a menos que tenham as mãozorras daquele jogador de basquetebol cujo nome me escapou e a mesma quantidade de bebidas, não esqueçamos que as pipocas dão uma sede tremenda, que coincidência, bebidas a cinco euros cada e não sei quê, afinal não deu em nada esse golpe de marketing?!
Este parágrafo ficou um bocado esticado, verdade, e até lhe devem faltar umas poucas de vírgulas, a razão é eu me encontrar a ouvir a Moonlight Sonata do Beethoven, isto é música que me faz esquecer muita coisa e se não me ponho a pau, varre-se-me o que ia a dizer.
O que eu ia a dizer é que se as salas de cinema promovem o consumo de alguidares de pipocas, bebidas, gomas e companhia com tanto empenho, até retomaram da tradição anterior a existência de intervalo, como penso já ter referido alguns acordes desta sonata atrás, se as salas de cinema promovem isto que normalmente evolui para um sentimento de bem estar tão completo que os espectadores se agarram ao telemóvel em sessão contínua de chat enquanto mastigam como se estivessem em casa, se é assim, se as salas de cinema é isto que fazem, então não deviam chamar-se salas de cinema.
Ora experimentem lá, senhores do mundo cinematográfico, chamar os bois pelos nomes que é o mesmo que dizer chamar a estas salas restaurantes de degustação de pipocas em quantidades altamente nutritivas (até podemos pôr aqui gourmet que fica a matar), pipocas em quantidades gourmet altamente nutritivas, aumentem-lhes a variedade, deixem as luzes acesas para que o chat saia com mais afinco e sem esforço ocular por parte dos estimados clientes que, entre duas mensagens e duas trincadelas de pipoca com pepitas de morango, ora cá vai uma ideia, pepitas de morango, possam dar uma olhadela ao filmezito que passa no ecrã e os senhores já não precisam de se preocupar com o intervalo.
Aposto que as receitas aumentam logo.
Afinal o golpe de marketing mais recente no sector, que consistiu em tornar a abrir o filme ao meio metendo-lhe nas entranhas um intervalo com imensos incentivos à compra de pipocas, bebidas, gomas e outros víveres indispensáveis à visualização de qualquer filme que se preze, que fez tornar bem claro o vá-que-ainda-tem-tempo com os minutos a descontar muito devagarinho no ecrã gigante, a ver se as três ou quatro pessoas que estão na sala correm a comprar três ou quatro baldes de pipocas que mal podem transportar a menos que tenham as mãozorras daquele jogador de basquetebol cujo nome me escapou e a mesma quantidade de bebidas, não esqueçamos que as pipocas dão uma sede tremenda, que coincidência, bebidas a cinco euros cada e não sei quê, afinal não deu em nada esse golpe de marketing?!
Este parágrafo ficou um bocado esticado, verdade, e até lhe devem faltar umas poucas de vírgulas, a razão é eu me encontrar a ouvir a Moonlight Sonata do Beethoven, isto é música que me faz esquecer muita coisa e se não me ponho a pau, varre-se-me o que ia a dizer.
O que eu ia a dizer é que se as salas de cinema promovem o consumo de alguidares de pipocas, bebidas, gomas e companhia com tanto empenho, até retomaram da tradição anterior a existência de intervalo, como penso já ter referido alguns acordes desta sonata atrás, se as salas de cinema promovem isto que normalmente evolui para um sentimento de bem estar tão completo que os espectadores se agarram ao telemóvel em sessão contínua de chat enquanto mastigam como se estivessem em casa, se é assim, se as salas de cinema é isto que fazem, então não deviam chamar-se salas de cinema.
Ora experimentem lá, senhores do mundo cinematográfico, chamar os bois pelos nomes que é o mesmo que dizer chamar a estas salas restaurantes de degustação de pipocas em quantidades altamente nutritivas (até podemos pôr aqui gourmet que fica a matar), pipocas em quantidades gourmet altamente nutritivas, aumentem-lhes a variedade, deixem as luzes acesas para que o chat saia com mais afinco e sem esforço ocular por parte dos estimados clientes que, entre duas mensagens e duas trincadelas de pipoca com pepitas de morango, ora cá vai uma ideia, pepitas de morango, possam dar uma olhadela ao filmezito que passa no ecrã e os senhores já não precisam de se preocupar com o intervalo.
Aposto que as receitas aumentam logo.
12/03/2014
Livro de gordos
Tenho um problema.
Não sei escrever um post pequenino, ajeitadinho, um post que caiba na palma de uma mão, que se meta no bolso ao fim da tarde e se leve para casa para reler no comboio e dizer ao jantar. Um post que se consuma em dois ou três segundos e que não consuma nada.
Coisa assim havia de me deixar à porta com o nariz a bater, os pés no capacho, sem chave para entrar e eu quero entrar. Enlaçar-me nos torneados das palavras, deitar-me na profundidade do seu significado, entrar noutra dimensão, de olhos fechados, adormecer, reduzir-me a um espaço sem tempo até conseguir penetrar no interior do momento. É aí que ele estica, o tempo, se torna profundo. Envolve-me, é à vez, na palma da sua mão e mete-me no bolso de um minuto ou dois do qual só saio depois de nascer outra vez.
Eu sou aborrecida. Não gosto de ir às compras, de parques de diversões nem de casinos, de festivais de rock, de conversas sobre moda, não frequento locais com muita gente sempre que posso escolher, não fiz festas de aniversário às minhas filhas nos restaurantes McDonald's junto de bombas de gasolina (o cheiro que ali habita far-me-ia vomitar, o da gasolina mesmo assim abre mais o apetite), não vejo novelas americanas, não uso malas a condizer com os sapatos, ou o cinto com o relógio, eu nem uso relógio.
E depois enleio-me nisto, solto as palavras que se formam cá dentro e às quais não sei dar sentido, que elas é que o encontram. Casam-se umas com as outras alinham-se em formatura e entregam estes molhos de brócolos de cor indefinida.
E não é que ando a pensar há tempos o que quererá a Clara Ferreira Alves dizer com "dar espessura às personagens"?! A Clara Ferreira Alves é das mulheres que sabe sempre tudo e dúvidas nem vê-las, determinada até sei lá onde que não a conheço pessoalmente e pessoalmente ela mete-me medo. Escrever um livro de gordos não deve ser. Mas se pergunto a alguém à mesa do almoço, desculpa lá interromper ó Zé, no trânsito depois de abrir a janela, o senhor sabe dizer-me, no comboio, ó se faz favor, no aeroporto, will you excuse me, ou no supermercado, ora diga-me lá, não me parece. Até já pensei telefonar ao dentista que tem lá tantas revistas na sala de espera e talvez soubessem, mas não. É capaz de não. É que sou aborrecida.
Será por isso que fico quase sempre sozinha?
Não sei escrever um post pequenino, ajeitadinho, um post que caiba na palma de uma mão, que se meta no bolso ao fim da tarde e se leve para casa para reler no comboio e dizer ao jantar. Um post que se consuma em dois ou três segundos e que não consuma nada.
Coisa assim havia de me deixar à porta com o nariz a bater, os pés no capacho, sem chave para entrar e eu quero entrar. Enlaçar-me nos torneados das palavras, deitar-me na profundidade do seu significado, entrar noutra dimensão, de olhos fechados, adormecer, reduzir-me a um espaço sem tempo até conseguir penetrar no interior do momento. É aí que ele estica, o tempo, se torna profundo. Envolve-me, é à vez, na palma da sua mão e mete-me no bolso de um minuto ou dois do qual só saio depois de nascer outra vez.
Eu sou aborrecida. Não gosto de ir às compras, de parques de diversões nem de casinos, de festivais de rock, de conversas sobre moda, não frequento locais com muita gente sempre que posso escolher, não fiz festas de aniversário às minhas filhas nos restaurantes McDonald's junto de bombas de gasolina (o cheiro que ali habita far-me-ia vomitar, o da gasolina mesmo assim abre mais o apetite), não vejo novelas americanas, não uso malas a condizer com os sapatos, ou o cinto com o relógio, eu nem uso relógio.
E depois enleio-me nisto, solto as palavras que se formam cá dentro e às quais não sei dar sentido, que elas é que o encontram. Casam-se umas com as outras alinham-se em formatura e entregam estes molhos de brócolos de cor indefinida.
E não é que ando a pensar há tempos o que quererá a Clara Ferreira Alves dizer com "dar espessura às personagens"?! A Clara Ferreira Alves é das mulheres que sabe sempre tudo e dúvidas nem vê-las, determinada até sei lá onde que não a conheço pessoalmente e pessoalmente ela mete-me medo. Escrever um livro de gordos não deve ser. Mas se pergunto a alguém à mesa do almoço, desculpa lá interromper ó Zé, no trânsito depois de abrir a janela, o senhor sabe dizer-me, no comboio, ó se faz favor, no aeroporto, will you excuse me, ou no supermercado, ora diga-me lá, não me parece. Até já pensei telefonar ao dentista que tem lá tantas revistas na sala de espera e talvez soubessem, mas não. É capaz de não. É que sou aborrecida.
Será por isso que fico quase sempre sozinha?
10/03/2014
Barak
Nasceu em Amesterdão há noventa e três anos. Quando tinha vinte foi chamado pelos alemães, em plena segunda guerra mundial, para trabalhos numa fábrica em Frankfurt.
Não obedeceu, fingiu não ter lido a carta.
Veio nova carta. O mesmo conteúdo. E outra e mais outra. Para ele e para todos os holandeses da sua idade. Uns fugiram do país, tentando escapar. Alguns tiveram sorte, alguns.
Ele não fugiu e quando não pôde resistir mais, foi.
A fábrica maquinava peças metálicas. Trabalhava-se doze horas por dia seis dias por semana. Uma semana das seis da manhã às seis da tarde. Na outra semana o período inverso, turno nocturno, e assim sucessivamente.
Eu estou toda esticada para o ouvir melhor, entre neerlandês e inglês a história vai saindo, ele com gestos ajuda e eu vou-me espantando mais e mais, E mais?, quero saber. Qual era o seu trabalho exactamente?
Ele sorri, juro, ele sorri, este homem é lindo, e esclarece, torneava peças metálicas para os aviões, estava em pé o tempo todo a tornear, assim assim, a mão direita enrosca o ar em espirais do tamanho da peça do avião. Era muito aborrecido.
E não faziam uma pausa?, eu, que vivi tão ao largo de qualquer guerra a sério, tenho sede de saber mais.
Sim, meia hora. Parávamos meia hora. E comíamos na fábrica, de graça. Às vezes era massa!, outra vez um sorriso, porque massa era o que de melhor se comia lá.
Mas ao domingo estava livre e ia visitar um primo que casou com uma mulher alemã e estava a trabalhar, também obrigado, numa quinta. Aí bebia o leite das vacas e comia queijo, alimentava-me bem, compensava.
E onde dormiam?
Havia uma barak (barraca) de madeira perto da fábrica e era aí que dormíamos. Havia prateleiras, ele faz o gesto com a mão paralela ao chão a marcar o ar às postas, e dormíamos aí, nas prateleiras. Não havia colchões, dormíamos em cima de palha. Quando me deitava era um alívio poder descansar. Mas nem sempre conseguia dormir por causa dos parasitas que nos vinham morder a pele, agora ilustra beliscando com os próprios dedos a barriga e o peito, por cima da camisa branca que usa. Foram dois anos maus, concluiu. E fez um gesto com a mão como que a fechar o capítulo.
Mas eu, que não queria ainda acabar, pedi para ele contar da bomba.
Ah, a bomba! (riu um pouco, o riso deste homem é tão bonito) Isso foi uma noite quando soaram as sirenes. As sirenes soavam quase todos os dias e quase todas as noites quando vinham os aviões bombardeiros das forças aliadas. Podiam ser os americanos ou os ingleses. Bem, nessa noite tocaram as sirenes e nós tínhamos de sair da barak e ir para um edifício de pedra para nos protegermos das bombas. Mas quando saímos, tínhamos ainda que atravessar a área descampada até ao edifício em pedra, já os aviões vinham a lançar bombas e uma delas caiu ao meu lado. E não explodiu, ficou ali.
Ontem, quando saímos de casa dele já era tarde. A rodar pelas ruas da noite holandesa deste março quente a anunciar a primavera, eu vinha a pensar nisto.
E a recriminar-me pelas queixas que me ouvi fazer da vida em certos momentos e que à luz deste relato se vestem de ridículo e me envergonham.
A guerra teve (todas as guerras têm) horrores muito mais obscenos, incomparavelmente mais monstruosos, mas esta história também é valiosa para mim.
E é valioso cada canto de cada pássaro que a minha vida pacífica me permite escutar.
Não obedeceu, fingiu não ter lido a carta.
Veio nova carta. O mesmo conteúdo. E outra e mais outra. Para ele e para todos os holandeses da sua idade. Uns fugiram do país, tentando escapar. Alguns tiveram sorte, alguns.
Ele não fugiu e quando não pôde resistir mais, foi.
A fábrica maquinava peças metálicas. Trabalhava-se doze horas por dia seis dias por semana. Uma semana das seis da manhã às seis da tarde. Na outra semana o período inverso, turno nocturno, e assim sucessivamente.
Eu estou toda esticada para o ouvir melhor, entre neerlandês e inglês a história vai saindo, ele com gestos ajuda e eu vou-me espantando mais e mais, E mais?, quero saber. Qual era o seu trabalho exactamente?
Ele sorri, juro, ele sorri, este homem é lindo, e esclarece, torneava peças metálicas para os aviões, estava em pé o tempo todo a tornear, assim assim, a mão direita enrosca o ar em espirais do tamanho da peça do avião. Era muito aborrecido.
E não faziam uma pausa?, eu, que vivi tão ao largo de qualquer guerra a sério, tenho sede de saber mais.
Sim, meia hora. Parávamos meia hora. E comíamos na fábrica, de graça. Às vezes era massa!, outra vez um sorriso, porque massa era o que de melhor se comia lá.
Mas ao domingo estava livre e ia visitar um primo que casou com uma mulher alemã e estava a trabalhar, também obrigado, numa quinta. Aí bebia o leite das vacas e comia queijo, alimentava-me bem, compensava.
E onde dormiam?
Havia uma barak (barraca) de madeira perto da fábrica e era aí que dormíamos. Havia prateleiras, ele faz o gesto com a mão paralela ao chão a marcar o ar às postas, e dormíamos aí, nas prateleiras. Não havia colchões, dormíamos em cima de palha. Quando me deitava era um alívio poder descansar. Mas nem sempre conseguia dormir por causa dos parasitas que nos vinham morder a pele, agora ilustra beliscando com os próprios dedos a barriga e o peito, por cima da camisa branca que usa. Foram dois anos maus, concluiu. E fez um gesto com a mão como que a fechar o capítulo.
Mas eu, que não queria ainda acabar, pedi para ele contar da bomba.
Ah, a bomba! (riu um pouco, o riso deste homem é tão bonito) Isso foi uma noite quando soaram as sirenes. As sirenes soavam quase todos os dias e quase todas as noites quando vinham os aviões bombardeiros das forças aliadas. Podiam ser os americanos ou os ingleses. Bem, nessa noite tocaram as sirenes e nós tínhamos de sair da barak e ir para um edifício de pedra para nos protegermos das bombas. Mas quando saímos, tínhamos ainda que atravessar a área descampada até ao edifício em pedra, já os aviões vinham a lançar bombas e uma delas caiu ao meu lado. E não explodiu, ficou ali.
Ontem, quando saímos de casa dele já era tarde. A rodar pelas ruas da noite holandesa deste março quente a anunciar a primavera, eu vinha a pensar nisto.
E a recriminar-me pelas queixas que me ouvi fazer da vida em certos momentos e que à luz deste relato se vestem de ridículo e me envergonham.
A guerra teve (todas as guerras têm) horrores muito mais obscenos, incomparavelmente mais monstruosos, mas esta história também é valiosa para mim.
E é valioso cada canto de cada pássaro que a minha vida pacífica me permite escutar.
06/03/2014
A fervilhar
- Crónicas, mãe. O que tu escreves são crónicas.
A minha filha tem o livro de Português na mão e aponta para a prova que ilustra a afirmação,
- Vês? Há os ensaios, há os contos, e os teus são crónicas.
O que eu escrevo, minha filha, vem dos restos que ficam por digerir do que me entra pelos sentidos no dia-a-dia. Mas só sei escrever sobre o que está do lado iluminado da Lua. Sou ao contrário dos Pink Floyd, lembras-te do título do álbum de que gostas tanto?
Por exemplo, nunca escrevi sobre as reuniões de trabalho que me fazem arrepender de não ter tomado um comprimido para o enjoo meia hora antes. Não trago para este espaço a constatação da mediocridade que anda por perto de mim, gosto de manter isto por aqui limpo.
Não contei que na semana passada, lá na serra, vi aquela mancha, pincelada nova, numa das serigrafias que tão airosamente pendurámos na parede. E que me aproximei, que afastei a moldura e que espreitei para a parte de trás. Não contei da colónia de um azul esverdeado seco de fungos em formação género esfiapado que foi apanhada em flagrante pela minha cara de espanto que prefiro não imaginar e que estava, a colónia, instalada ali mesmo. E também não tenciono dizer, meu amor, que a seguir virámos os quadros todos e a colónia verde azulada tinha trazido a família toda e nos obrigaram a dar uma esfrega nas costas das nossas modestas obras de arte, a ver se se safavam.
(será esfiapado uma palavra aprovada pelo Acordo Ortográfico?)
Também não contei que quando entrámos na loja de rações para animais e perguntámos se por acaso tinham um saquito de lenha para nos aquecermos com o seu calor crepitante, o Erik encostou-se à porta de vidro deslizante que separava as duas secções da loja, fez a porta entrar com estrondo no caixilho receptor e a dona da loja saltar um pouco e fazer um sorriso amarelo, e não contei que depois, ao sairmos da loja, ele desencostou a porta de vidro, esta de charneira, para verificar o material de que são feitos os baldes que ali estão atrás e deitou abaixo um estendal de roupa daqueles grandes, fazendo o estardalhaço devido e a senhora saltar outra vez, mas eu gritei lá para dentro que está tudo bem, é ele que é muito distraído, esclareci.
São crónicas, filha, que arranco aos minutos que não sobram no final do dia e que me levam para a cama sempre tão depois da hora certa. São estes temas por digerir que me andam a fervilhar o dia todo, que me levam a escrever uns tópicos no livrinho com capa às flores que tu conheces, não vá esquecer-me de nada, e que só quando me saem pelos dedos e entram pelo teclado me deixam ver de que se revestem de uma ponta à outra.
Portanto como vês, é só o lado iluminado da Lua que aqui se lê.
Também não disse, ainda, absolutamente nada sobre o facto híbrido de utilizar algumas coisas do novo e polémico Acordo Ortográfico e não utilizar outras. E por conseguinte não esclareci, como fazem os blogues que se prezam, que raio de notação é a minha, se de antes ou depois do Acordo, a ver se ninguém nota que eu gosto de todas as eliminações de maiúsculas e de alguns acentos, mas detesto ter de tirar o c de ação e o p de receção, que neste segundo caso fica com a tónica de um falar afectado (c volta, estás perdoado).
(por conseguinte dizia muitas vezes o teu bisavô João)
Ando com vontade de escrever sobre pull-over's tricotados à mão e telefonemas a saber do almoço. Vou meter esta caldeirada que é enternecedora numa nova crónica um destes dias, hoje já não embora me ande aqui o pimento às voltas. Tanto, mas tanto, que gosto de pimento, seja ele de que cor for! De-que-cor-for não é bom de pronunciar mas tinha de ser.
Crónicas, dizes tu.
Hoje Acordei assim, toda Ortográfica, e não me saiu crónica nenhuma.
A minha filha tem o livro de Português na mão e aponta para a prova que ilustra a afirmação,
- Vês? Há os ensaios, há os contos, e os teus são crónicas.
O que eu escrevo, minha filha, vem dos restos que ficam por digerir do que me entra pelos sentidos no dia-a-dia. Mas só sei escrever sobre o que está do lado iluminado da Lua. Sou ao contrário dos Pink Floyd, lembras-te do título do álbum de que gostas tanto?
Por exemplo, nunca escrevi sobre as reuniões de trabalho que me fazem arrepender de não ter tomado um comprimido para o enjoo meia hora antes. Não trago para este espaço a constatação da mediocridade que anda por perto de mim, gosto de manter isto por aqui limpo.
Não contei que na semana passada, lá na serra, vi aquela mancha, pincelada nova, numa das serigrafias que tão airosamente pendurámos na parede. E que me aproximei, que afastei a moldura e que espreitei para a parte de trás. Não contei da colónia de um azul esverdeado seco de fungos em formação género esfiapado que foi apanhada em flagrante pela minha cara de espanto que prefiro não imaginar e que estava, a colónia, instalada ali mesmo. E também não tenciono dizer, meu amor, que a seguir virámos os quadros todos e a colónia verde azulada tinha trazido a família toda e nos obrigaram a dar uma esfrega nas costas das nossas modestas obras de arte, a ver se se safavam.
(será esfiapado uma palavra aprovada pelo Acordo Ortográfico?)
Também não contei que quando entrámos na loja de rações para animais e perguntámos se por acaso tinham um saquito de lenha para nos aquecermos com o seu calor crepitante, o Erik encostou-se à porta de vidro deslizante que separava as duas secções da loja, fez a porta entrar com estrondo no caixilho receptor e a dona da loja saltar um pouco e fazer um sorriso amarelo, e não contei que depois, ao sairmos da loja, ele desencostou a porta de vidro, esta de charneira, para verificar o material de que são feitos os baldes que ali estão atrás e deitou abaixo um estendal de roupa daqueles grandes, fazendo o estardalhaço devido e a senhora saltar outra vez, mas eu gritei lá para dentro que está tudo bem, é ele que é muito distraído, esclareci.
São crónicas, filha, que arranco aos minutos que não sobram no final do dia e que me levam para a cama sempre tão depois da hora certa. São estes temas por digerir que me andam a fervilhar o dia todo, que me levam a escrever uns tópicos no livrinho com capa às flores que tu conheces, não vá esquecer-me de nada, e que só quando me saem pelos dedos e entram pelo teclado me deixam ver de que se revestem de uma ponta à outra.
Portanto como vês, é só o lado iluminado da Lua que aqui se lê.
Também não disse, ainda, absolutamente nada sobre o facto híbrido de utilizar algumas coisas do novo e polémico Acordo Ortográfico e não utilizar outras. E por conseguinte não esclareci, como fazem os blogues que se prezam, que raio de notação é a minha, se de antes ou depois do Acordo, a ver se ninguém nota que eu gosto de todas as eliminações de maiúsculas e de alguns acentos, mas detesto ter de tirar o c de ação e o p de receção, que neste segundo caso fica com a tónica de um falar afectado (c volta, estás perdoado).
(por conseguinte dizia muitas vezes o teu bisavô João)
Ando com vontade de escrever sobre pull-over's tricotados à mão e telefonemas a saber do almoço. Vou meter esta caldeirada que é enternecedora numa nova crónica um destes dias, hoje já não embora me ande aqui o pimento às voltas. Tanto, mas tanto, que gosto de pimento, seja ele de que cor for! De-que-cor-for não é bom de pronunciar mas tinha de ser.
Crónicas, dizes tu.
Hoje Acordei assim, toda Ortográfica, e não me saiu crónica nenhuma.
02/03/2014
Zirquinho
Apetece-me
escrever zircão.
Quatro mil e
quatrocentos milhões de anos de espera e finalmente alguém vai a passar, ah mas
que coisa é esta?!, olha é um bocadito de zircão!, é obra e merece registo.
O zircão
cativa-me, gosto da palavra e também gosto de gluão, de grão ou de alçapão, mas
foi zircão que ouvi nas notícias e que se colou do lado de dentro do meu
cérebro a germinar perguntas que crescem como num ventre fértil.
Perguntas
solteiras, que não há respostas que cheguem, zircão, zircão, porque não te chamas
zirquinho e metia-te na letra de um fado, arrumava-te na guitarra, havias de trazer-nos o junho para seres cantado à mesa das sardinhas sobre toalhas aos quadrados, mas Lisboa já não é assim, parece que se casou com o inverno.
E tu não és zirquinho, és zircão. Penso nisto enquanto conduzo pela avenida, hoje temos sorte, há raios de
sol de um dourado pálido ainda a erguer o declive da aurora, razantes, tímidos. Cruzam, por entre
os prédios, as árvores despidas sem se deterem nelas, deitam-se no chão a fazer
intervalos aos edifícios, um destes raios de luz é nas minhas mãos que se vem deitar, fica aí, fica que está tanto frio.
São oito e meia
da manhã e a cor rubra do semáforo detém-me a observar o movimento da cidade
que está toda lá fora.
No rádio a
publicidade é sobre uma oficina que está a fazer descontos impossíveis na
mudança dos pneus, esta oficina combate a crise e eu detesto publicidade. A voz
grita o número de eurós que o serviço merece e a cidade sob tensão, de repente, está feia, a pressa estrangula o ar, é espartilho feito de urgências diluídas por este sol tímido que
hoje venceu a chuva por um momento, que frio que aqui está e os eurós aos gritos.
A luz passa a
verde, arranco, o rádio muda de ideias e oiço os primeiros acordes de uma
ária de Bach que vem transformar a cidade. O espartilho esfuma-se, as árvores
nuas começam a bailar, os edifícios parecem inteligentes, ninguém leva pressa, os transeuntes bailarinos também, marcam todos o mesmo ritmo com os
passos, que harmonia, se Bach visse havia de sorrir.
Lentamente, o rádio dá lugar aos uivos do vento e à chuva que bate com força nas vidraças e se ri de nós, de ti zircão e de mim e que frio está.
Abro os olhos, a lareira apagou-se. Lá fora não é Lisboa, é a serra e está em pranto.
Quer verão, zircão, quer verão. Ah, se fosses zirquinho!
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