a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

28/08/2021

Há que estudar os mercados, okay?

Para aceder aos conteúdos penso eu necessários, tomo o caminho mais conhecido e portanto mais rápido para as consultas. Já são muitos anos nisto de clicar em ecrãs e outras interfaces, como se sabe. Porém, sou incapaz de desviar o trajeto da informação insinuosa e apta a dar-me, a sério, a volta completa ao estômago e não só um dia destes. Prefiro lavar janelas. Esfregar panelas. Pôr elásticos em calças de pijama a irem para velhas, varrer a entrada, despejar o lixo. Descascar batatas, arrancar ervas do pátio ou mesmo ir às finanças. É que estou aqui estou a pagar quantias para não me aparecer nunca mais, a caminho de uma consulta, no ecrã que é totalmente meu, a cara da Cristina Ferreira, dados relativos ao filho da Rita Pereira (ela diz que não sabe lidar com o miúdo) ou assuntos referentes ao bebé da Carolina Deslandes. 

Pondero mudar-me para a caixa da costura, pondero pondero. 

Ainda o verão, em princípio (a vírgula é fundamental)

Tentando manter a calma, declaro independência à insónia e mergulho no acolhedor silêncio de toda a cozinha. Dela extravio um copo de parede perfeitamente vertical cheio de saúde especialmente por dentro. Um líquido espesso, muito branco e frio, vê-se a explorar-lhe o conteúdo. Mais: à boca da caixa de bolachas comprada na loja de antiguidades que me quer muito bem, convido uma a sair pela mão. Pode resultar. A triste cena é acompanhada de dor nas costas, aquela que veio cá passar duas semaninhas. O dia aparece aqui choroso, a clarear a custo e principalmente lá fora, oferecendo o grasnar de uma ou duas gralhas mais frontais. Não me posso queixar.

07/08/2021

Franeker

Franeker tem um planetário de fabrico caseiro. Caseiro e já de certa idade para um planetário: é de um tempo em que o povo acreditava que determinado alinhamento de planetas do sistema solar previsto para breve seria o fim do mundo. Esta crença acabou gerando tal pânico à época que um certo homem mais avisado, por mais estudioso, decidiu construir um planetário de fabrico caseiro em sua própria casa, daí o nome, para mostrar aos seus compatriotas que os planetas, com regularidade calculável, por obra de um acerto preciso entre as voltas que a vida planetária dá, se punham celestialmente em linha e, se isso não tinha acabado com o mundo antes, também não ia acabar agora. Agora que é como quem diz, ia o século dezoito bastante avançado. 

Abrandou este homem o seu ofício de produtor de lã também caseira para se dedicar ao belíssimo empreendimento que ainda hoje funciona com perfeição.

Construir planetários caseiros pode até não parecer algo por aí além, mas construir planetários caseiros sem outro fito que não acalmar um povo em pânico é que já não.
(www.planetarium-friesland.nl)
Ao lado tem um café com bolos muito mais modernos mas igualmente recomendáveis. 

05/08/2021

Alguns pontos

Achando já suficiente o tempo que passei em pé a fingir interesse pelos produtos da loja do aeroporto por não ter nem lugar sentado à vista nem nada melhor com que me entreter nem o telemóvel eu queria mais devido a já ter passado todos os limites de manuseamento por hoje cá para os meus gostos, já se punha aqui uma virgulazinha. Ponto. Para além deste ponto, pertinente, será de referir que quando tornei a perscrutar o espaço em busca de um assento sem fita a dizer que ali não por causa agora de repente não me lembro o quê, encontrei dois e consecutivos assentos vagos dos disponíveis (sem a tal fita proibitiva). Fui, pois, ocupar um. O outro ocupou-se ao mesmo tempo do traseiro de uma senhora visivelmente chateada por eu me ter depositado no primeiro. Inclinou-se então para mim toda expedita e disse numa espécie de francês que estava alguém com ela para vir ocupar o meu recém lugar e portanto eu que saísse. Eu disse-lhe que se a pessoa estava com ela podia sentar-se no lugar da fita do outro lado dela, não havia problema. A seguir a esse, ainda se contava uma cadeira livre mas a fazer a função Garantir Distância ponto PT. Portanto interdita. É uma confusão encaixar pares de pessoas em cadeiras uma sim uma não e por conseguinte dá-se estes desaguizados ainda que mornos.
Bem, a senhora francófona zangada comigo lá encolheu os ombros e, quando a sua companheira, suponho que filha, chegou, bem lhe ralhou, reclamou, e o meu lugar, não guardaste, nha nha nha, mas em francês. A já não zangada comigo senhora explicou à zangada filha a minha mensagem maravilhosa e esclarecedora. Tudo então se apaziguou. A outra sentou-se, portanto, na cadeira da fita proibitiva, mas sem infração neste caso, como já se percebeu, que eu gosto de explicar tudo direitinho. Então ficaram as duas francesas, lado a lado como queriam, totalmente dedicadas a dedilhar nos respetivos telefones móveis e eu a voz não mais lhes ouvi. 
Que lindo.