Ainda por causa desse mistério enervante que é a poesia: já sei! É ao ser depositada, desenrolada ou assentada em torno de um objeto funcional, completamente desprovido de alma, liso como um decreto-lei, cinzentinho qual declaração para as finanças, ainda que absolutamente indispensável, é nessa altura, dizia-se, largura ou comprimento que a poesia mais descansa, respira e rejubila. Porque aí ela pode, então, deixar o seu papel de exceder tudo, todos, o espaço, o tempo, a soberba canseira, aí pode a poesia descansar, repetimos, respirar e rejubilar, também. Se, por outro lado, a obrigarmos a ladear uma doce beira-mar, a pôr-se com o sol, cintilar com a lua ou ainda dançar ao vento primaveril, ou, coitada, a fazer parcerias de fusão com o amor, que amor, ela terá de duramente lutar para não se ofuscar. Nem mesmo quando é servida em rimas tipo isto assim.
a voz à solta
24/10/2020
Quarenta e nove horas
15/10/2020
O prato, ainda
13/10/2020
Dá até medo a poesia
12/10/2020
Parvo outono triste
Caminho pela sombra do prédio que me fica bem à direita de quem vai a descer. Levo o cuidado único de guardar largura de passeio do outro meu lado para quem quiser ir à vontade; não direi que vou cosida à parede mas é por poucos centímetros. Subitamente sinto um cheiro forte a roupa lavada. Um cheiro tão lindo a sábado de manhã como se a caminho de tomar um café e ler o jornal na esplanada ao sol a gente fosse. Um cheiro metidinho que me desacelerou o passo, que é de uma segunda feira, e me levantou a cabeça cheia deste parvo outono triste. Por cima de mim, nas cordas para o efeito, está uma velhota à janela estendendo roupa lavada de confirmação. Um lençol está sendo ajeitado, dependurando já bastante, as mãos que saem das mangas de um robe de chambre cor-de-rosa vigorosas na tarefa. Não ameaçada de levar com uma dobra de lençol molhado na cara, que para alguma coisa há de servir não ser altíssima, devolvo o olhar ao chão mesmo a tempo de bater os olhos numa fronha da mesma família deste lençol, muito caída, em baixo, bem aninhada no canto do prédio como se quisesse esconder-se por não saber trepar a parede de volta à janela de origem. Paro, então. Olho de novo para cima e digo à velhota que deixou cair uma fronha. Ela sorri-me toda experiente daquilo e confirma, deixei, eu sei. Não fosse a imposição vigente neste outono que já disse triste, e parvo, e eu seria pessoa de se oferecer para lhe levar a fronha caída a casa. Portanto, queridos, apetece-me dizer queridos, retomei o caminho sem nunca saber se a velhota descia à rua de robe de chambre cor-de-rosa vestido ou quê.