24/10/2020

Aspirador(a)

Ainda por causa desse mistério enervante que é a poesia: já sei! É ao ser depositada, desenrolada ou assentada em torno de um objeto funcional, completamente desprovido de alma, liso como um decreto-lei, cinzentinho qual declaração para as finanças, ainda que absolutamente indispensável, é nessa altura, dizia-se, largura ou comprimento que a poesia mais descansa, respira e rejubila. Porque aí ela pode, então, deixar o seu papel de exceder tudo, todos, o espaço, o tempo, a soberba canseira, aí pode a poesia descansar, repetimos, respirar e rejubilar, também. Se, por outro lado, a obrigarmos a ladear uma doce beira-mar, a pôr-se com o sol, cintilar com a lua ou ainda dançar ao vento primaveril, ou, coitada, a fazer parcerias de fusão com o amor, que amor, ela terá de duramente lutar para não se ofuscar. Nem mesmo quando é servida em rimas tipo isto assim.

Quarenta e nove horas

No refeitório do Cliente Grande deixei o porco no prato quase todo. Estando ali, naquele são lugar, cercada de gente boa, rolos industriais de papel de limpeza e garrafas de pulverizar desinfetante nas superfícies, calculei segura a investida nas fatias de lombo de porco assado. Fatia, na verdade implorei uma, por favor só uma! (mas é próprio da gente boa exceder pedidos - recebi duas). O agrupamento de quartos de batatinhas assadas ali ao lado também prometia elevar o lombo de porco a tolerável por talvez passar despercebido e isso ajudou-me a dar o passo. Portanto, logo depois, já sentada à mesa, as conversas em volta bem lançadas, temperadas de risos, ornadas pelos sorrisos libertos de máscaras, autorização enfim para enquanto se come, dediquei-me a um pequeno pedaço de fatia de lombo de porco. Com o espírito aberto e respirando como deve ser, elevando a circunstância um pouco mais e tudo, abocanhei com jeitinho (mantendo o olhar atento). Mas foi ineficaz a empreitada, o desgosto confirmou-se. E o porco acabou por isso devolvido no prato quase todo (ainda que envergonhadamente). 
Dias depois, no mesmo refeitório, agora sobre um almoço adequado, seguro, e até com algumas delícias, aludi, como quem não quer a coisa mas sim tirar nabos da púcara, ao lombo do porco de segunda feira (era uma segunda feira)! A minha companheira de mesa - ela e eu colocadas em diagonal para fintar qualquer carga viral que alguma de nós pudesse emitir em frente - também havia comido o mesmo lombo de porco fatiado, e eu precisava de saber, de tentar calibrar-me. Ora ela:
- Não estava nada mau o lombo de porco! 

Pronto, já passou. Bem vistas as coisas, chegamos à manhã de sábado do mais longo fim de semana do ano (uma alegria). 

15/10/2020

O prato, ainda

Como o almoço no prato único, desprovido do estampado há muito pelos ciclos da máquina de lavar. Como no prato que não encaixa nos demais, na prateleira, guardando espaços esconsos acima e abaixo dele. Como o almoço na luz da cozinha deitada ao rio do costume, se bem que mais a norte, aproveitando agora com rugas nas minhas mãos, sim, o molho da caldeirada que inventei da mãe e uma fatia do pão de mafra. Como sobre os azuis desenhos adivinhados deste prato de outrora, roubando-te por um instante à eternidade com a memória da tua sopa que dava o aroma às manhãs na minha pequena existência cozinhada ao teu lume, avó.

13/10/2020

Dá até medo a poesia

Se, na maior parte das vezes sigo andando, falando, ouvindo, comendo, respirando sem sofrer do poema a mínima perturbação, outras há em que, apanhada desprevenida, quebro toda, fico espalhada, desfeita, líquida cobrindo o chão e, depois, quando passado um sopro completo, volto a erguer-me para continuar o meu caminho, sacudo a dor da roupa tentando não reparar que fiquei foi mais inteira.

12/10/2020

Parvo outono triste

Caminho pela sombra do prédio que me fica bem à direita de quem vai a descer. Levo o cuidado único de guardar largura de passeio do outro meu lado para quem quiser ir à vontade; não direi que vou cosida à parede mas é por poucos centímetros. Subitamente sinto um cheiro forte a roupa lavada. Um cheiro tão lindo a sábado de manhã como se a caminho de tomar um café e ler o jornal na esplanada ao sol a gente fosse. Um cheiro metidinho que me desacelerou o passo, que é de uma segunda feira, e me levantou a cabeça cheia deste parvo outono triste. Por cima de mim, nas cordas para o efeito, está uma velhota à janela estendendo roupa lavada de confirmação. Um lençol está sendo ajeitado, dependurando já bastante, as mãos que saem das mangas de um robe de chambre cor-de-rosa vigorosas na tarefa. Não ameaçada de levar com uma dobra de lençol molhado na cara, que para alguma coisa há de servir não ser altíssima, devolvo o olhar ao chão mesmo a tempo de bater os olhos numa fronha da mesma família deste lençol, muito caída, em baixo, bem aninhada no canto do prédio como se quisesse esconder-se por não saber trepar a parede de volta à janela de origem. Paro, então. Olho de novo para cima e digo à velhota que deixou cair uma fronha. Ela sorri-me toda experiente daquilo e confirma, deixei, eu sei. Não fosse a imposição vigente neste outono que já disse triste, e parvo, e eu seria pessoa de se oferecer para lhe levar a fronha caída a casa. Portanto, queridos, apetece-me dizer queridos, retomei o caminho sem nunca saber se a velhota descia à rua de robe de chambre cor-de-rosa vestido ou quê.