a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/11/2022

A lata

Voltamos à emissão já o sol iniciou a sua descida para contar que há pouco, enquanto deitava colheres de café em pó para dentro do filtro do mesmo, vi através da janela a senhora que passeia o cão de bicicleta a passear o cão de bicicleta. Atenção que é ela na bicicleta e o cão a correr no chão coitadinho (acho que arfando). A senhora desta vez olhou diretamente para mim mas não acenou porque numa mão levava o guiador da bicicleta e na outra a trela do cão. Eu também não acenei porque numa mão tinha a colher do café e na outra a lata do mesmo. E não a lata da senhora. 

Acho aquilo uma preguiça no espectro do agudo mas quem sou eu.

26/11/2022

Um cêntimo

Esta cidade não é exceção no que ao cumprimento da tradição respeita. As pessoas vivem em casas ordenadas, com jardins geométricos, as bermas e os passeios recebendo aos dias certos a ordem dos caixotes do lixo, também nas cores certas, as pessoas saindo de casa às cinco da tarde nas suas bicicletas munidas das malas de compras e cumprimentando-se quando se cruzam. Vão buscar ao supermercado da pequena cidade os alimentos para a refeição quente do dia, o jantar. Se, uma hora depois, fora desses hábitos mais antigos, caminharmos pela rua, sente-se o cheiro de refeições preparadas em fogões modernos de cozinhas práticas e funcionais. Esta cidade não é exceção. Mas, como qualquer regra, pode aceitar um rasgo de doçura mais fundo, uma manifestação de intenções de criatividade inesperada, até mesmo uma linha de horizonte onde se lê o amor na língua mais universal, pode sim. 

O rapaz chamara-me a atenção logo quando passou por nós na sua altíssima bicicleta e, depois de a arrumar num dos lados da casa, o vi, com a sua mochila atirada ao ombro, a digitar no ecrã do telemóvel enquanto lançava passos enormes até à porta de casa. E agora, na fila do supermercado, reconheço-o. Enquanto vou metendo as nossas compras no saco, que não são muitas, vejo-o erguer o corpo espigado levantando os calcanhares, depois voltando a assentá-los, esfregando as mãos ao lado do corpo, nas calças, sorrindo enigmaticamente. Uma das suas grandes mãos sai da coreografia e vai acariciar o único produto que havia colocado no tapete da caixa: uma vagem de feijão verde, das pequenitas, com a etiqueta que a balança emitiu colada nela, sobrando por todos os lados, ostentando grandes números e um código de barras. Apurei a vista e li o preço da vagem pesada: 0,01 €. O rapaz exultava. O sorriso enigmático mais intenso, luminoso e profundo. Atravessava-lhe uma vaga tonalidade azul, ali parece que brincando com as madeixas de cabelo solto, caído sobre a testa em desordem. Segui o feixe que os seus olhos lançavam e aterrei os meus na rapariga loira, muito holandesa, que registava os produtos na caixa. Os nossos produtos. A vagenzinha de feijão verde aguardava debaixo da enorme etiqueta que apenas lhe deixava as extremidades de fora. Por momentos o conjunto de cabeça que ela usava, ou podemos dizer headset se quisermos, mas eu não quero, o conjunto de cabeça que ela usava, com o microfone a envolver-lhe a frente da boca, combinando com os seus gestos mecânicos e as perguntas que descarregava para os clientes de acordo com a formação que recebera, esse conjunto de cabeça havia escondido o seu rosto corado. A rapariga esforçava-se por parecer profissional, isenta, assética, limpa de emoções. Quase conseguiu. Quando ela nos perguntou se tínhamos selos de desconto e queríamos o papel da fatura, já eu estava imbuída daquele rasgo de doçura que ali esperneava para sair pelos poros de um menino muito alto, quase homem, em jorros de intensa alegria. O que é o amor senão uma estrondosa, insuportável, concentração de alegria?

19/11/2022

Já chegou o frio e a neve também quer

A vizinha da frente esquerda, a dos carros muito feinhos, era muito feinho o primeiro carro que ela tinha quando se mudou para aqui com a família o ano passado e é muito feinho o segundo carro, pelo qual trocou o primeiro, a diferença entre eles é o musgo muito sujo entranhado que o primeiro tinha e o segundo ainda não teve tempo de ganhar, mas como eu ia dizendo, a vizinha da frente esquerda tem uma pequena tabuleta feita à mão espetada na terra do seu jardim, junto ao passeio e virada para quem passa nele e para o tal seu muito feinho carro. A tabuleta mostra uma informação que, vista daqui, parece ter bonecos coloridos. A avaliar pela sua altura, estou em crer que se trata de uma espécie de “não faças cocó neste local”, mensagem obviamente destinada ao público-alvo canino da rua quando já vai aflitinho, mas tenho de me aproximar como quem não quer a coisa, para confirmar tudo. Quem sabe, a vizinha está assim a proteger a área circundante do seu novo e feinho carro. Pode ser que, deste modo, se acumulem nele menos camadas de musgo muito sujo.

(entretanto, comecei a ler o Carlos de Oliveira, “Casa na duna”, ah pois)