a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

20/11/2021

No princípio da serra (obrigada, Adília Lopes)

Comecei o sábado a ler o Expresso ao café até meio do texto do Pedro Mexia. Depois fechei o ecrã e reservei o vidrinho plano para mais tarde. Peguei no livro da Adília Lopes e comi-lhe um pedaço de bolo que me encheu a cabeça de esperança. Mas Sophia faz parte dele inesperadamente. Para mim, Sophia escreveu peças de mármore polido, granitos frios por brilho artificial. Os textos de Sophia não me são nada. Para a Adília sim e isso alivia-me a culpa de não conseguir estremecer um cabelo com Sophia. Gostava muito de conhecer a casa da Adília Lopes, tomar chá na loiça que suponho de porcelana inglesa (certamente anunciando-se chinesa para distinção, os ingleses são very british) e olhar em redor na sua companhia. Tomar também nota de como o sol se deleita ali, nos espaços, as portas altas de bandeiras do passado, presente em silêncio. Como ela, também eu sou de casa. Mais que das viagens. Vou outra vez a Cabo Verde e isso preocupa-me, tudo me preocupa, no entanto o trabalho vai ser doce e morno, algo luminoso, tranquilo, como as cores de chocolate da pele nesse cabo muito pouco verde. Mas por ora ainda tomo chá em casa da Adília Lopes, deixo-me observando as florinhas do bule, repetindo-as devagarinho no perímetro dos pratos, depois no das chávenas, emoldurando-as com as mãos no bordado da toalha branca que me entrega tanta paz. 

13/11/2021

Intercidades circula sem matemática

Acabo o telefonema a tempo de ver, muito atenta, o comboio entrar na estação. No meu bilhete eletrónico, recebido por mensagem no telemóvel, está indicada a carruagem 81. Muito atenta porque sei perfeitamente que o intercidades não tem 81 carruagens nem pouco mais ou menos. O sistema de numeração das referidas é um mistério que há anos não desvendo e ainda por cima desta vez vou inaugurar a primeira classe. A carruagem que lidera a composição passa ainda veloz por mim, exibindo um grande 1 de primeira, é nitidamente a 11. Começa bem. Colada a ela vem outra vestida de igual, também é de primeira, mas com o número a querer desaparecer, gasto que está das intempéries nacionais, não percebo. Depois seguem-se carruagens com um grande 2 a indicar, não segunda classe, mas classe turística, que sempre parece mais bonito a quem lê. O comboio pára. Da carruagem colada à 11, a tal de número exaurido, saem três homens vestidos. Envergam o uniforme dos comboios de Portugal e eu chamei-lhes um figo. Escolho um e abordo-o na plataforma de um entendimento de que preciso, o senhor desculpe, mas esta carruagem será a 81?
- Bom dia, minha senhora.
Realmente, eu nem os bons dias dei. 
- Bom dia, sim, esta carruagem é a 81, por favor?
- É a 81, é.
Confirma - se. A composição entra na estação com a carruagem 11 seguida da 81. Entrei nesta e dirigi-me ao lugar indicado no bilhete. A poltrona de primeira classe dá gosto de se ver, acolhe-me em toda a minha largura, casaco e pequena bagagem incluídos, faz-me até esquecer o mistério da numeração das carruagens. Instalo - me muito bem ali toda, tiro o casaco. Os primeiros metros do caminho acompanham-me o almoço que trago embrulhado em papel pardo. Uma carcaça com ovo mexido e alface, outra com queijo e compota de tomate, a minha preferida compota. Depois de comer, verifico a ausência de migalhas em redor, arrumo os resíduos e abro o computador.
É então que aparece, proveniente da carruagem 11, uma mulher jovem vestida. De cor de rosa, puxando uma malinha com rodas no mesmo tom e procurando, com sotaque brasileiro, um lugar tresmalhado onde deveria sentar - se, de acordo com o seu bilhete. Carruagem 24, diz ela, confusa.
Minha senhora, explica - lhe um homem que vai para a Golegã, essa carruagem é para aquele lado, e aponta na direção da classe turística.
Continuando a puxar a malinha com rodas e olhando para todos os lados, ela foi. Nitidamente confusa, repetimos, e não seria para menos. O número 24 costuma vir entre o 11 e o 81, mas não no intercidades, composição de material circulante sem matemática. Tão fofos.

10/11/2021

Os cinco e a hora da sesta

A Lili teve cinco bebés desta última assentada, bem me parecia que em julho ela andava grávida. Segundo o vizinho do lado nascente da rua sem nome, os bebés nasceram no carro cor-de-rosa, o Smart sem rodas ainda exibindo, na sua capota anteriormente amovível, sinais evidentes de maus tratos. Alguém não gosta da sua dona, a vizinha inglesa do lado norte, aquela que raramente traz o botox à rua, está em teletrabalho. Para andar o carro já não serve, as ervas tomaram conta dele e dentro em pouco passará a escultura oculta com o inútil volante à direita. A natureza nunca deixa as expectativas goradas quanto ao seu imparável desarranjo da ordem, também conhecido por aumento da entropia, que contempla condições para a maternidade animal. Eu adoro muito o tema, apesar de, se não fosse a metidinha dessa entropia, nem os soalhos ganhavam pó nem as aranhas se esgueiravam por baixo de portas fechadas a sete chaves para fazerem as suas teias no sossego de um lar mais ou menos abandonado. No entanto, é este andar do mundo que não se nota e que me lembra, em dias mais luminosos, quão linda é a vida. Mas voltemos à Lili. Teve cinco gatinhos, a valente. Com estes faz onze filhos que lhe conheço, dos quais uma levei para Lisboa para me fazer a vida ainda mais linda: ela faz. Ora abaixo apresenta-se a prole. Porém muita atenção, esta imagem pode impressionar espíritos mais sensíveis que tenham uma sopa ao lume ou estejam parados num semáforo vermelho a matar o tempo.


(a sesta interrompida para a foto)