a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

31/07/2014

Uma espécie de mota

O Professor tem, agora, o dobro da minha idade.

Costumávamos, duas vezes por ano, ou três, almoçar.
Eu, muito direita na cadeira com as pernas firmemente posicionadas para que o guardanapo não me escorregasse do colo, mantinha o trato formal que a ocasião pedia. Mas, ao mesmo tempo, não escondia completamente uma dose de deslumbramento enquanto ouvia as suas histórias.

Certa vez contou-me como tentou levar uma embarcação de Peniche à praia da Consolação, ou vice versa, e quase morreu afogado naquele mar revolto, tendo terminado a viagem na praia de onde tinha saído, muitas horas e muitos mergulhos depois.

Por vezes esquecia-se de comer, ou talvez comesse as recordações que lhe iluminavam as histórias, os novos não se interessam por estas coisas, dizia-me, sabe qual é a diferença entre um país desenvolvido e um país subdesenvolvido como o nosso? É que num país desenvolvido, se a tarefa não foi realizada, apresenta-se alternativa, as pessoas buscam soluções, num país subdesenvolvido justifica-se o incumprimento com desculpas e ficamos assim. Disse-me isto tudo a olhar-me por cima dos óculos, como se avaliasse em qual dos lados eu me encaixo.

De uma outra vez, no restaurante do Museu do Azulejo, local eleito para os almoços, com a carta das sobremesas na mão, fruta da época, mousse de chocolate não, pudim, hum, doce da avó, não, pausa, e depois, outra vez por cima dos óculos, quase em surdina, sabe o que me apetece mesmo? E eu a arregalar os olhos, o Professor vai-me dizer o que lhe apetece mesmo, vai?, pensei. Vai: era outro prato de tostas fininhas com manteiga, daquelas que serviram no couvert.

- Parece-lhe despropositado?

Ora eu, para quem a vida é com as cores todas que se vive e o mais intensamente possível, chamei de imediato o empregado e fiz o pedido, acenando com a cabeça para confirmar, quando vi os olhos do rapaz abrirem-se mais, interrogativos.

- Só isto? - perguntou o Professor perante o pratinho parco de fatias fininhas de pão tostado que lhe puseram à frente.

- Mais, traga mais, se faz favor.

- Muito mais! - corrigiu ele, com um sorriso que eu não lhe conhecia.

Deixámos de almoçar depois do engasgo. O arroz de bacalhau não quis descer, nem a água que ele bebeu ajudou a empurrar, voltou o arroz para trás, o bacalhau e a água, o guardanapo fez as honras da casa, recebeu tudo, ele correu à casa de banho e eu apanhei um grande susto.

Quando saiu trazia os dentes na mão, um sorriso de menino envergonhado, a cabeça curvada, parecia mais baixo. Na minha garganta formou-se um nó mas guardei as lágrimas para depois.

Primeiro, conduzi-o a casa no carro dele.

Hoje, passados um par de anos, telefonou-me. Disse-me que os engasgos passaram por completo porque foi ao médico e o médico tirou-lhe os bloqueios. Que está velho, que não lhe renovaram a carta de condução, que a vista piorou muito.

- Mas comprei um veículo com quatro rodas e cinto de segurança, uma espécie de mota, sabe?

- Uma mota?!

- Uma espécie, não é bem uma mota, tem quatro rodas - repetiu. Mas para irmos almoçar eu apanho um táxi. Está cá para a semana ou vai de férias?

29/07/2014

Monumental

Hoje ao fim da tarde atravessei algumas ruas no centro de Lisboa com os devidos tempos de espera pelo sinal verde para os peões, e quase me esqueci que estamos praticamente todos de férias.

O vento que soprava pelos interstícios dos prédios ao Saldanha, veio despentear-me e ainda tentou arrancar-me os braços, um agarrei à mala o outro meti dentro do bolso, dão muito jeito os bolsos. Enquanto fui sacudida assim e aguardava permissão para atravessar ao lado de outras pessoas, poucas, talvez não de férias com eu também não, senti saudades de uma noite de verão e senti frio.

De uma noite de verão daquelas em que nunca mais se esquece a música que tocava, o aroma adocicado que pairava no ar, os grilos que compunham uma sinfonia diferente de outros estios, as estrelas que contavam histórias mágicas a cintilar lá em cima e talvez um arrepio na espinha. Que não de frio.

Depois lá caiu o verde e eu, a cortar o vento, entrei no edifício do Monumental e fui à Bertrand comprar dois livros para a minha sobrinha Marta.

26/07/2014

Sempre na pele

Nesse tempo lembro-me que ainda não existia, embora já observasse.

Já seria capaz, por exemplo, de descrever as tardes soalheiras de verão passadas a ler Agatha Christie à beira da piscina e a buzina do padeiro que anunciava a sua chegada, mas isso era de manhã, pelas dez horas, e nós a correr de chinelos pela rampa abaixo até ao portão, uma de nós com o saco do pão bordado à minhota, que a avó gostava muito daquilo, à minhota, meninas o Minho é muito bonito, e depois o dia começava. Às vezes não corríamos ao padeiro, íamos nas bicicletas a ver quem chegava primeiro, éramos quatro, as minhas irmãs e eu.

No entanto isto que vem já a seguir passou-se muito mais tarde, eu estacionada a meio da casa dos vinte, cheia de multas por pagar não fosse ainda não existir.

Observei, comecei por dizer que então já observava, observei, nessa noite de verão, nem tarde nem manhã, noite, que os festivais de rock sem tecto, aqueles que hoje em dia pululam por todo o lado, ensaiavam o seu escorvamento.

O meu companheiro de então e de inexistência, numa noite quente de julho, levou-me lá. Vamos ao festival, tinha ele dito, vai lá estar muita gente, e eu fui. Nessa noite, porém, foi connosco o vizinho que tinha quatro ou cinco filhos, uma mulher com cara de enjoada que eu duvidava saber quantos eram os filhos, uma empregada interna que ganhava muito mais do que eu e uma tendência atroz para conversas sobre acções de empresas e senhores engenheiros e senhores doutores, conversas muito boas para eu bocejar.

Levei então uma blusa de um tecido vaporoso, azul escuro com bolas brancas e um laço de um dos lados, que eu achava não destoar das conversas sobre as acções das empresas. Na mão tinha metido uma bolsa de palha pintada de verde que a minha irmã mais velha me oferecera num incentivo a que eu passasse, de uma vez por todas, sua parva, a existir.

Dentro da bolsa tinha metido uma nota capaz de pagar um táxi para casa, as chaves, um lenço de papel e a minha alma, para o caso eventual de precisar dela (normalmente deixava a alma em casa).

Numa pausa sobre a conversa das acções das empresas, dos senhores engenheiros e dos senhores doutores, decidi ensaiar uma forma de existência para não deixar a minha blusa destoar, fazer finalmente o que a minha irmã estimulara, sua parva, e disse uma coisa qualquer. Quando me calei, o vizinho que tem quatro ou cinco filhos, uma mulher com cara de enjoada que eu duvidava saber quantos eram os filhos, uma empregada interna que ganhava muito mais do que eu, estica-se na minha direcção e dá-me um beijo na testa.

Então abri a bolsa de palha pintada de verde e deixei a minha alma sair.

Desde aí trago-a sempre na pele.

23/07/2014

Mundo atómico

Ao almoço comi meia batata cozida de cor acinzentada em certas partes, um pedaço de frango seco, duas meias cenouras também cozidas, um bocado de nabo do tamanho de um caramelo, e duas colheres bem servidas de couve lombarda fria. Era o prato da dieta intitulado cozido simples.

A parte de que mais gostei do cozido simples foi a do caramelo. Depois de comer, saí da cantina e fui a casa colher a minha flor mais nova, que é como quem diz a minha jovem filha, para irmos aos registos e notariado, que interessante é escrever isto, registos e notariado, renovar o cartão de cidadão dela.

À chegada estava uma ventania desgraçada que varria tudo no belo campus de justiça, que se atira para o rio, de forma que difícil foi atravessar com graciosidade aquele pátio central com o chão cheio de fendas que tenho a certeza têm origem bem assente nos mais conceituados designs da época moderna e se estendem até ao edifício dos registos. E do notariado.

Sessenta e seis pessoas à nossa frente não nos demoveram, instalámo-nos. Pensei que pena foi não ter trazido o livro para me entreter, mas a força de juventude ao meu lado tratou do assunto nos primeiros minutos. Oiço, então, mais uma vez, o relato daquela parte do concerto de sábado no coliseu em que o James Arthur pergunta se há por ali alguém in love na assistência. O meu rebento, que segue a narrar, esperou que a histeria reagente à pergunta acalmasse para se elevar acima de todas as vozes e com toda a potência torácica disponível, num I am in love with you ao que ele, o próprio James Arthur, o James, vá, terá respondido, as mãos enroscam-se uma na outra, abrem e fecham, os olhos chamejantes fixados em mim, ai mãe ouve lá o que ele me disse, ouve lá outra vez, eu ouvi o que já tinha ouvido, algumas vezes, ouve lá mãe, disse-me a mim, a mim, I am in love with you too.

Depois regressou ao mundo atómico do seu ipod comprado em segunda mão no olx e eu adormeci.

Penso que foi do acinzentado da batata.

21/07/2014

Tourada

É domingo e estou em casa a arrumar coisas velhas. A janela está ligeiramente aberta, a cortina branca, translúcida, esvoaça um pouco com a brisa da tarde e oiço o amolador das facas.

As minhas mãos imobilizam-se e fecho os olhos. Sei que este silvo me leva para longe e eu deixo-me ir, como sempre faço.

Aterro, então, na cadeira baixa onde me sento ao lado da minha avó, que me ensina pacientemente a coser botões e me diz avia-te, filha, quando eu demoro muito a enfiar a linha na agulha. Gosto tanto de a ouvir dizer avia-te, filha. E eu, que ainda estou de olhos fechados e tenho as mãos, as minhas mãos de hoje, imobilizadas, avio-me. Pico-me no dedo quando falho o buraco do botão, chupo a gota de sangue e continuo, dou as voltas que me parecem suficientes para o botão não mais daqui sair e depois, antes de rematar, está bem assim, avó?

No rádio mal sintonizado está no ar o programa "Quando o telefone toca" e eu fico toda contente porque alguém pediu a minha canção preferida, a "Tourada" do Fernando Tordo.

- Anda aí o amolador - diz a minha avó - isto quer dizer que vem chuva, filha. Mostra lá. Está bem, agora remata com duas voltas e cose outro mais pequenino ao lado para treinares melhor. E usa a linha mais curta, anda, avia-te.

E eu, que me aviava, abro agora os olhos. O amolador continua a anunciar chuva lá fora e, do molho de desenhos antigos das minhas crianças, que já cresceram, separo alguns para deitar fora.

19/07/2014

Unhas de gel

Se aprender a dançar o kuduro se enquadra graciosamente dentro da zona do meu conforto, que é assim que se fala das coisas, compreender as razões que levam as gentes das superfícies comerciais a colar hordas de etiquetas nas maçãs já está fora do meu melhor alcance intelectual.

Todas as manhãs, a meio caminho entre o sair de casa para trabalhar e o sentar-me a almoçar, procedo à ingestão de uma maçã, operação que se desenrola em simultâneo com o fazer de relatórios e outras coisas assaz interessantes; a possibilidade de teclar a duas mãos enquanto numa se equilibra o fruto de Adão é pura realidade.

Há anos que é assim e há anos que venho tomando medidas.

Tentei um curso de física quântica em plataforma online, leio sempre o jornal que me dão nos semáforos, estudo a parte de trás dos frascos de champô, de vez em quando decoro palavras do dicionário, faço um sudokuzito ou outro nas viagens de avião, abro a caixa de fósforos do lado certo, mantenho a casa arrumada, nunca passo à frente nas filas, controlo-me quando entro numa livraria, pago as minhas contas praticamente todas dentro do prazo e já não sei onde ia, que às vezes me perco, estou é farta de andar a comer cola sem ver razão para isso.

Portanto era assim, faziam o favor de parar com essa porcaria de pôr autocolantes nas maçãs, faziam? Não tem mesmo graça nenhuma, nem vale a pena tentar com coraçõezinhos a chamar ao sentimento, a gente não gosta de estragar as unhas a raspar com toda a força a cola que fica na casca. É que não sai. Mesmo para quem não tem nem nunca teve unhas de gel.

Há outras ideias, giras, para as maçãs, vou já dizer, por exemplo, deixá-las vir com uma folha agarrada ao pauzinho. É natural, é verde, ecológico e vai indexar a mente dos compradores aos pomares em tardes de sol com passarinhos a esvoaçar no céu azul e eles a correr com os filhos pela mão e o cão atrás, e nem dão por isso. Boa?


(ouvi dizer que qualquer peça de decoração que se quer repetir para conferir harmonia ao lar ou por se gostar muito dela, o número mágico é o três)

16/07/2014

Uma ópera inteira

É evidente que ao entrar num carro preto estacionado ao sol em julho, qualquer pessoa que não pretenda fritar nos trinta minutos que se seguem, liga o ar condicionado, caso este não seja já completamente automático e se anime sozinho.

E depois é desfrutar da aragem libertadora soprada das condutazinhas, não é?

Não. Há opiniões diferentes e é agora mesmo que vai sair uma, está na altura de assumir as coisas como elas são.

Ter ar condicionado no carro pode ser o caminho mais curto para travar conhecimento íntimo com gerações antigas de bactérias podres que cheiram a gerações antigas de bactérias podres.

Ora toda a gente sabe que a nanotecnologia é muito aplicável, útil, tem futuro, tão pequenina e já tão prodigiosa, ninguém contraria isto. Com ela pode-se, deixa ver, tricotar perninhas de ácido desoxirribonucleico do olho de uma mosca e bordá-las na franja de um fio de lã de ovelha para fazer um novo animal que servirá para espantar gafanhotos no verão e deixar o milho e o trigo crescer sossegados. A mim isto dava-me um jeito bestial que eu fico louca com gafanhotos no verão, mas não, não é esse o meu ponto, o meu ponto é que a nanotecnologia tem prioridades muito mais práticas e urgentes, coisa ao nível da saúde pública de um país que já anda triste há muito tempo e vai-se a ver é isto. Por conseguinte é favor tomar aí nota, senhores cientistas.

Era fazer nanofiltros.

Consistência de rede nanofechada, os filtros instalam-se por detrás das ripas dos tabliers das viaturas pretas. Está-se mesmo a ver que a nanorede, que até se pode já dizer inteligente, nanorede inteligente, porque é, ia capturar que era uma beleza as gerações antigas de bactérias podres. E o sistema respiratório dos ocupantes das viaturas pretas haveria de assumir potência para entoar uma ópera inteira sem pigarrear desde Lisboa ao Porto.

Mas não nos fiquemos por aqui, continuar a tomar aí nota se faz favor; depois, era aproveitar a captura dos nanofiltros para a reciclagem, matéria prima para produzir tampas de garrafas de água, por exemplo, que estão muito na moda, toda a gente que eu conheço com mais de seis anos de idade as colecciona de todas as cores.

(e depois, ia-se a ver que resulta, instalavam-se os nanofiltros também nos carros azuis)

15/07/2014

Cinderela

Depois do almoço, saí do edifício onde trabalho para ir entregar à Teresa o queijo que trouxe da Holanda. Embora seja perto, levei o carro; hoje não podia ir a pé porque calcei os sapatos elegantes.

Estacionei fora do portão. Ao entrar cumprimentei o segurança, que já me conhece, venho cá tantas vezes. Normalmente um aceno é o suficiente, mas hoje saiu da casinha onde vê televisão, lê o jornal record e descasca maçãs amarelas ao fim da tarde, e veio estender-me a mão.

- Como está.

Não perguntou, afirmou.

- Bem, muito obrigada - sorri.

Ao atravessar o pátio central, avisto o Gaspar e o Costa. Também me acenam, então na sexta? Nada de faltar à festa, hã?

Nada. Desta vez não vou faltar, prometi-lhes.

Subo as escadas que dão para o edifício onde a Teresa trabalha, está sol e está calor mas já não há flores, o verão não tem a candura da primavera, a poesia do outono, ou mesmo a doce melancolia do inverno. O verão seca-me um bocado a alma.

A Teresa ainda não chegou, tiro o queijo da mala e coloco-o na mesa dela.

Depois fui para a janela, olhar para o rio. Daqui vê-se o telhado da tua escola primária.

E lembrei-me daquele dia em que te fui buscar para almoçarmos, como fazia todas as terças feiras, tinhas então oito ou nove anos, e me disseste, enquanto subíamos a rampa, a tua mão pequenina na minha,

- Estes almoços são o melhor alimento para o meu coração, mãe.

Enquanto a Teresa não vem, ficamos a ouvir a canção que cantávamos no carro, ainda te lembras dela?

12/07/2014

Dois golos

Quero água.

Na porta de embarque há uma máquina de venda automática de bebidas que tem dentro garrafas de água Serra da Estrela.

Meti na ranhura uma moeda de dois euros, cada garrafa custa um euro e trinta, informa a etiqueta. Segui as instruções e recebi o troco. Mas só o troco.

De todas as vezes que me servi de produtos em máquinas de venda automática, assaltou-me o mesmo pensamento imbecil. O que farei se a máquina não me entregar o produto.

Hoje é o dia.

Saquei do telefone e procurei um número nas diversas etiquetas que esta máquina tem. Encontrei, digitei-o. Mantenho, na mão, os setenta cêntimos do troco; se os guardo na carteira misturam-se com as outras moedas e lá se vai a minha fraca evidência, a única que tenho.

Enquanto oiço chamar, pressinto que o meu pensamento imbecil anotado acima ocorre a mais pessoas, vários pares de olhos estão postos em mim, seguem-me os movimentos, vêem que tal. Sinto-me, até, um pouco ruborizada.

- Boa tarde, ora diga, se faz favor.

- Boa tarde. Olhe, eu estou na porta vinte e dois e tentei comprar uma garrafa de água, mas a máquina que aqui está só dá troco, a garrafa não saiu.

Não gosto muito de admitir que digo "olhe" ao telefone, normalmente não o faço, mas por causa destes espectadores que me estão a atrapalhar, saiu.

- Disse porta vinte e dois? Já aí vou, menina, é só o tempo de ir buscar as chaves, está com pressa?

- Pressa? Não, o embarque ainda não começou.

Não passaram nem cinco minutos quando vejo aproximar-se o maior molho de chaves que jamais vi, atrás do qual surge um homem baixo, cabelo todo branco, voz grave, já lhe vamos ouvir a voz, mãos grandes, sorridente.

- Foi a menina que ligou?

A menina sou eu. Não corrigi.

- Sim, fui eu, ainda tenho o troco na mão, veja, a máquina deu-me o troco - mostrei-lhe as moedas coladas à palma da minha mão que vai ficar a cheirar a metal e eu não gosto de ter as mãos a cheirar a metal.

- Vamos lá ver, menina, antes de abrir a máquina.

Tirou do bolso uma moeda igual à minha e seguiu o procedimento. Recebeu o troco, apenas o troco.

- Vê? Foi exactamente isso que me aconteceu.

- Ora deixe cá ver o número da máquina, é que tenho de encontrar a chave certa.

Remexeu nas chaves que deviam ser mais de cem. Encontrou, confirmou o número, abriu a máquina.

Retirou uma garrafa de água Serra da Estrela e estendeu-ma.

- Já sabe, sempre que acontecer, é só ligar e eu venho logo.

Agradeci, admirada com a facilidade com que se resolveu, certa de que o pensamento imbecil não mais me importunará. Os meus espectadores, entretanto, regressaram aos respectivos dispositivos electrónicos onde mergulham a concentração, perderam o interesse em mim; são, portanto, um bocado parvos.

Aproximo-me do vidro onde posso admirar de perto os aviões, abro a garrafa de água gelada, a água assim não é do meu agrado mas a sede está cega, tomo dois golos e ao terceiro anunciam o embarque.

09/07/2014

Bem passada

Estou cá desconfiada que hoje vou escrever poucochinho.

Chego do ginásio em termos que não vou dissecar aqui, não há que temer, mas antes do banho de que estou necessitada, mantenho-me cativa para a tarefa planeada: coloração do cabelo. 

Enquanto espero que o químico actue, diz lá quinze minutos mas eu vou aos vinte, sei lá se aquilo funciona com quinze, armei o escadote e mudei duas lâmpadas do tecto da casa de banho que andavam fundidas. Andavam, claro, é forma de falar.

Em consequência da fraca luz aqui instalada há dias, estou em crer que o meu cabelo não estava a sair de casa em condições, que hoje dei conta de certos olhares quando entrei muito fresca no meu local de trabalho. 

No entanto, não estou certa se foi do cabelo ou de ter ouvido o Nuno Markl recordar o Nove Semanas e Meia na rádio e me ter deixado a pensar que afinal nunca tentei imitar aquelas ideias e fritar costeletas de porco na barriga, aproveitando as quenturas que haviam de se arranjar.

Ovos estrelados em cima do umbigo vi eu já não sei em que sátira a este clássico, pelo que também registei a ideia que se encontra a acompanhar a das costeletas numa produção fictícia empoeirada, bolorenta e coisa do género, dentro de uma gaveta. Enfim. 

E com a conversa descarrilei.

Mudei as lâmpadas. Ficou uma beleza a casa de banho inundada, felizmente só de luz.

Depois arrumei o escadote e fui à loiça. Tirar a lavada, devolvê-la aos armários, meter a suja. Já contei: demoro nove minutos a arrumar uma carga de loiça da máquina (mesmo assim, não há maneira de convencer as minhas gaiatas a fazê-lo de iniciativa própria). Seguidamente, minutos para que vos quero, vou à roupa; enchi a máquina e programei a lavagem para acertar em cheio na tarifa do vazio, que nos visita durante a noite. 

De regresso à casa de banho, deito um golpe de vista ao relógio, está na hora de concluir o processo químico. Quem me dera ficar linda de (alguns) cabelos brancos e não precisar disto.

Mas preciso, o meu cabelo até parece o que já foi e devolve-me na perfeição as ilusões.

Talvez até um dia destes me encha de brios e retome a ideia da costeletinha, em não sendo muito alta é capaz de ficar bem passada e sempre se poupam uns trocos em gás. Grande ideia, a do Nuno.

07/07/2014

Badajoz

Há tempos vi-a na televisão. Reconheci-a logo, apesar de terem passado mais de treze anos.

Estava a ser entrevistada numa reportagem sobre empresas que promovem a natalidade através das facilidades nos horários das mães trabalhadoras e ela, hoje directora de um grande departamento numa grande empresa, explicava aos jornalistas e a nós, os lá-em-casa, o que se faz naquela grande empresa para que crianças dali nascidas não saibam o que é uma mãe ausente, uma febre camuflada enfiada na escola, um crescer, em certa medida, aos tropeções dados em nome das exigências profissionais dos pais. Ali respirava-se toda uma louvável atitude, muito nutritiva para a tão importante unidade celular da sociedade, a família.


Ela, vou chamar-lhe Luísa, e eu estávamos por acaso no mesmo evento de empresas com colaboradores acompanhados das famílias; crianças havia muitas, bebés alguns, um dos quais era meu, ou melhor, minha, e outro, aliás outra, era dela.

As circunstâncias levaram-na a perguntar-me se a queria acompanhar nessa tarde numa viagem à cidade espanhola mais próxima, Badajoz, para uma sessão de compras.

As circunstâncias levaram-me a aceitar o convite não sem alguma hesitação, pois para mim a ideia de compras não é presságio de alegrias, no entanto impossível seria juntar-me às actividades radicais do resto do grupo, verdadeiramente inadequadas para as nossas bebés - a minha e a dela.

O Audi do marido da Luísa, que também não tinha aderido às actividades radicais e tinha em memória a posição de condução dela, a demonstração fê-la a Luísa na perfeição, vês que moderno é o carro do meu marido, claro que vejo, o Audi, era aqui que eu ia, levou-nos a Badajoz.

A viagem não durou mais de hora e meia, mas foi bastante informativa. A Luísa vai todos os fins de semana para fora com a família e começa a escolher o local à quarta feira. Perto da água é o requisito que permite ao marido pescar, perto de uma cidade é o outro que lhe permite a ela fazer compras. A bebé leva-a para as lojas, o rapaz, também havia um rapaz que aparenta uns nove anos de idade, ficava no carro junto à água a jogar gameboy enquanto o pai pescava. Tanto tempo no carro?, eu estranhei. Sim, ele adora, joga imenso, é óptimo nos níveis, informou a Luísa.

Mal chegámos, declarei que precisava de um local sossegado para dar de comer à minha filha. Mas como a Luísa estava impaciente para iniciar a ronda pelas lojas da calle não sei quê, ia andando e indicou-me vagamente onde eu a poderia encontrar mais tarde, nessa tal calle.

A pequena barriga de dez meses de idade que se passeava no carrinho empurrado por mim calles fuera já ia consolada com o lanche, quando encontrei a Luísa numa loja muito grande onde se ouvia uma espécie de música gravada num dia de obras em que se martelava muito, ou coisa do género. Encontrei-a na longa fila de pagamento com várias peças de roupa penduradas num braço, enquanto o outro segurava um biberão de leite que a sua filha bebia, sentada no carrinho. Notei o pequeno pescoço torcido para apanhar o jeito ao biberão, notei que os olhos da mãe pousavam nas maravilhas têxteis que ia adquirir, notei o empurrar do carrinho com um pé enquanto a fila avançava, notei que tentei oferecer ajuda com o biberão, não é preciso, ela está habituada, ria-se a Luísa, olha as coisas que eu comprei.

E depois notei que estava mesmo arrependida de ter vindo a Badajoz.


Nunca mais vi a Luísa a não ser há tempos, na televisão, a descrever as boas acções que pratica no exercício das suas funções profissionais e que ali acima se podem ler. Ainda estou incrédula.

Mas não em relação ao seu visível exemplar desempenho profissional, naturalmente.

04/07/2014

Alfa Pendular

É a terceira vez que me cai este botão. Das outras apanhei-o, devolvi-o ao sítio, prendi bem a linha, dei mais voltas e cortei com a tesoura, que fica melhor do que levar-lhe os dentes.

Mas desta perdeu-se.

(o Alfa Pendular percorre a lezíria, vamos a duzentos e vinte quilómetros por hora, noto)

Como não uso o casaco salmão tostado sem botão, quando terminei de arrumar a loiça dirigi-me ao armário onde está a minha velha caixa de costura.

Não arrasto os pés, não apanho o cabelo nem uso chapéus, não fumo e não me importo de coser botões. Na rua, alguém deposita garrafas no contentor do vidro no momento em que abro a caixa.

Dentro está um mundo de coisas pequenas e quase todas inúteis, desconfio que nunca darei uso à parafernália de dispositivos e ferramentas de que disponho. Mas preciso de um botão.

(o comboio vai cheio, está uma linda tarde de sol e o computador aquece-me imenso as pernas)

Nesta caixa há muitos botões independentes, fruto dos cuidados das marcas de roupa que pensam nestas coisas de a gente suspirar com o casaco fechado e lá vai o botão; servem, as marcas, peças sobressalentes com o prato principal que costuma ser um casaco, uma camisa ou mesmo uma calça.

(não ponho o computador na mesa basculante disponível no comboio, porque fica muito longe de mim e marreca perco a postura, é só isso)

Encontrei o botão que me vai servir a próxima temporada neste casaco, estava dentro de uma bolsinha de cartão que traz a inscrição “just in case”. E devido ao feliz caso de eu admirar a inteligência subtil das gentes que fazem estas coisas, esboço um sorriso e pego na agulha, vamos a isto.

(estou a ficar enjoada com os movimentos pendulares do Alfa aliados à verdade que vou dizer: o meu almoço foi parco)

Começo a coser o botão no local de onde retirei os restos de linha da vez anterior. Os primeiros movimentos que me levam o braço na diagonal orientada a sul são longos e lentos. O Tejo está lá em baixo a cuidar da cidade que mergulhou na paz logo a seguir à queda da última garrafa no vidrão e eu tenho vontade de ouvir um fado. Os alongamentos do braço a sul vão encurtando gradualmente com o comprimento da linha e o crescer da firmeza da união que estou a criar.

(vai uma miúda ali à frente a ler um livro do Tintim, nunca gostei do Tintim por causa do penacho)

Termino o trabalho dando ainda mais voltas ao remate a ver se desta o botão não se pôe na alheta por dá cá aquela palha e com a tesoura de pontas corto a linha.

(enjoada é favor e as minhas pernas a arder tanto!; talvez marreca ainda mantenha alguma elegância, afinal)

Arrumo a velha caixa de costura e de novo sem arrastar os pés, sem o cabelo apanhado, sem chapéu e sem fumar, vou pôr um fado a tocar na aparelhagem.

Este casaco salmão tostado assenta-me que nem uma luva ou, se dissermos cair, então é que nem ginjas que me cai, é muito bonito e amanhã vou vesti-lo.

(estamos a chegar ao meu destino, fecho o computador)

O comboio pára e a porta abre-se. Coimbra está sob um céu de nuvens.

Antes de me apear, aperto o casaco salmão tostado. Just in case.

01/07/2014

Sangue raro

Quatro agentes da autoridade e uma carrinha dentro da qual sei muito bem que posso manter-me em pé e ainda haver espaço se preciso fosse e eu transportasse uma panela cheia de sopa de grão com espinafres à cabeça, nunca se sabe, todos de azul escuro, os agentes e a carrinha, mandaram-me parar. Foi isto logo após a curva que fiz tão bem feitinha, à direita, no momento em que admirava o logótipo da SportTV já que não há flores por ali.

Caso os parágrafos fiquem de tirar o ar, não por serem maravilhosos pedaços de literatura mas pela extensão que atingem, é do meu nervosismo, só para avisar.

Não havia mais nenhum carro parado, portanto forçaram-me a chegar à frente e fiquei mesmo atrás da carrinha azul escura, com as janelas também todas dessa cor, sem gosto nenhum, mas eu neste momento aceito tudo desde que não se repita aquilo.

Travão de mão que acciono com o pé, o meu carro é assim mesmo, baixo o volume do som e abro o vidro.

- Bom dia, senhora condutora, os seus documentos e os da viatura, se faz favor.

- Com certeza - a voz saiu-me um fiozito vergonhoso.

Retiro da mala a carteira que precisa obviamente de perder peso, abro-a e vasculho os documentos solicitados. A minha mão treme ligeiramente e eu rebobino os últimos minutos que fiz, a rodar pela avenida, mas a que velocidade vinha eu, bolas, será que voltei a distrair-me, logo agora que preciso tanto de umas botas novas devido ao inverno que não sai.

- Aqui tem, senhor agente, este é o do carro - uma vez eu disse senhor guarda e ele corrigiu para agente, por isso agora é senhor agente.

- O do seguro e o da inspecção, tudo certinho, faça favor - estendi mais dois.

- A minha carta de condução, ora veja.

- E o que falta, senhor agente?

Todos estes travessões sou eu a falar, já com o fiozito menos vergonhoso, ligeiramente mais encorpado. O agente da autoridade não fala, apenas inclina a cabeça e vira os meus documentos ao contrário, que eu não lhos dou todos direitos, já disse que estou nervosa. E como ele não fala, eu não vou encher isto de travessões com reticências, tornar-se-ia aborrecido, se é que não se tornou já.

- O seu cartão de cidadão, senhora condutora - agora por acaso falou.

Não estou a adorar ser chamada de senhora condutora, mas em tratando-se de um agente vestido de azul escuro com metade da espessura da minha carteira na mão, aguento-me.

- Ah claro - riso estúpido e nervoso, mal pareço eu - aqui tem.

Passam minutos, acho. O meu coração bate forte e eu repenso na minha condução pela avenida fora, será que me estiquei, eu que tenho tanto cuidado? O agente dá a volta ao carro e vai espreitar os papeis colados no pára-brisas, o seu rosto sem expressão e eu espero.

- Está tudo bem, senhor agente?

- Por enquanto, sim - o homem está de regresso à minha janela.

Pelo retrovisor vejo que os dois carros que tinham sido parados depois de mim, estão a sair. Começo a pensar como vou fazer para pagar isto, agora estou nervosa a sério, os outros piraram-se num instante e eu ainda aqui.

- Isso é o seu grupo sanguíneo, senhor agente? - refiro-me ao A+ que está bordado no fardamento, pouco acima do nível dos meus olhos.

Uma pessoa faz o que pode para preencher silêncios constrangedores que podem acabar mal, ou seja, comigo dentro do estupor da carrinha a pagar uma conta de três dígitos gordos, e pareceu-me este um óptimo tema. Pareceu-me a mim, claramente só a mim.

- É.

Eu aguento tudo. Desde aquele dia de janeiro em que entrei numa carrinha desta cor sem janelas e paguei os trezentos euros do excesso de velocidade,

- Ou isso ou fica o carro, senhora condutora - tinha dito o agente de então que era sorridente e se divertia à minha custa.

Desde esse dia eu aguento os carros a apitar atrás de mim e os condutores a esbracejar ao ultrapassarem-me, eu sou positivamente a única a cumprir os cinquenta quilómetros por hora e não me refiro a esta avenida, nessa é fácil, os semáforos ajudam, refiro-me ao estupor da marechal gomes da costa que aí é que foi e é onde o limite dos cinquenta devia ser muito mais, parvalhões, e eu cumpro e sou gozada, insultada, já conheço imensas sonoridades de diferentes buzinas, mas cumpro.

- Senhor agente, acho muito interessante esse seu grupo sanguíneo, sabe? A+, muito interessante! - sim, é verdade, eu disse isto.

-  Muito obrigado e tenha um bom dia, senhora condutora - remata o agente estendendo-me a papelada que regressou cansada à minha mão radiante.

Portanto, safei-me.

E queria dizer que vou continuar a fazer a marechal gomes da costa a cinquenta à hora, mesmo que tenha de travar na descida, sou a única mas é assim que faço, e vou a partir de hoje, sempre sempre, para além de tentar encurtar os meus posts, prometo, mas isso tem de ser quando não estou nervosa, vou, dizia, gabar com veemência o grupo sanguíneo dos agentes (até sou capaz de acrescentar que se trata de um sangue raro).

É que nem precisei de lhe oferecer um pratinho de sopa de grão com espinafres.