É domingo e estou em casa a arrumar coisas velhas. A janela está ligeiramente aberta, a cortina branca, translúcida, esvoaça um pouco com a brisa da tarde e oiço o amolador das facas.
As minhas mãos imobilizam-se e fecho os olhos. Sei que este silvo me leva para longe e eu deixo-me ir, como sempre faço.
Aterro, então, na cadeira baixa onde me sento ao lado da minha avó, que me ensina pacientemente a coser botões e me diz avia-te, filha, quando eu demoro muito a enfiar a linha na agulha. Gosto tanto de a ouvir dizer avia-te, filha. E eu, que ainda estou de olhos fechados e tenho as mãos, as minhas mãos de hoje, imobilizadas, avio-me. Pico-me no dedo quando falho o buraco do botão, chupo a gota de sangue e continuo, dou as voltas que me parecem suficientes para o botão não mais daqui sair e depois, antes de rematar, está bem assim, avó?
No rádio mal sintonizado está no ar o programa "Quando o telefone toca" e eu fico toda contente porque alguém pediu a minha canção preferida, a "Tourada" do Fernando Tordo.
- Anda aí o amolador - diz a minha avó - isto quer dizer que vem chuva, filha. Mostra lá. Está bem, agora remata com duas voltas e cose outro mais pequenino ao lado para treinares melhor. E usa a linha mais curta, anda, avia-te.
E eu, que me aviava, abro agora os olhos. O amolador continua a anunciar chuva lá fora e, do molho de desenhos antigos das minhas crianças, que já cresceram, separo alguns para deitar fora.
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