a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

24/02/2014

Fazer tijolo

O licor Beirão que tenho no armário da cozinha deve ter mais de vinte anos.

Herança da despensa dos meus avós e premiado em 1929, esta segunda afirmação é o rótulo que diz não sou eu, adquiriu uma cor de tijolo suspeita.

Decido tomar um copo enquanto me sento a este volante com teclas e deixo correr o que o meu cérebro esmagado pela ambiguidade das coisas, nunca satisfeito e acelerado pelo álcool encarniçado do Beirão (a foto mostra) vai debitando.


A pergunta que se põe é por que raio quis eu um blogue quando tenho um Beirão a envelhecer para lá dos tempos ao lado da água ardente, dos vinhos da Madeira (os do Porto já meteram golo) e dos wiskies, esta última bebida tremenda para sarar feridas da pele, quiçá da alma, que nunca me deitei a essas contas.

(o licor tem o sabor do tempo, dos boiões onde envelheceu, do meu armário da cozinha, está difícil de passar do meio campo)

Por que raio quis eu um blogue quando sou pessoa de acordar com uma qualquer estação de rádio que irrompe sempre mal sintonizada, me coça os neurónios em estado de sonolência atómica até me trazer em braços para a alvorada. 

E erguer-me então lentamente para o dia com o Pinto da Costa e o treinador do Porto, há ali qualquer coisa, não me interessa mesmo nada senhores, com todo o respeito, o Porto é lindo e o vinho já sabemos, e com isto foi hoje que acordei.

Ontem foi com a música que a minha filha diz ser a nossa música e então salto, endireito-me e irrompo eu, bem sintonizada, ainda que desgrenhada, pelo quarto da minha filha adentro, pespego um beijo capaz de fazer estremecer as balizas do relvado, seja ele qual fôr, meto golo na certa, na testa morna, doce, cheirosa e lhe digo, está a tocar a nossa música na rádio, amor.

Depois fico a ver os olhos que me mostram sempre o mundo inteiro abrirem-se, emergirem do fundo dos seus sonhos de menina, sorri-me, olá mãe.

(a cor de tijolo do Beirão não passa, não vai nem a penálti)

Talvez amanhã venha o Frank Sinatra cantar-me o My Way ao acordar, descoser-me os neurónios da almofada, arrancar-me à modorra que herdei do Beirão transposto do armário onde envelheceu para dentro deste projecto de me envelhecer a mim.

Envelhecer-me está bem, mas não, ainda é cedo, sim?, pôr-me a fazer tijolo.

É que ainda vou descobrir por que raio quis eu um blogue.

20/02/2014

Óleo do motor do carro

São opções que se fazem.

Ou se compra grão em saco, duro, mirrado, a pedir molho de salvo erro um dia inteiro para lhe dar tempo a inchar antes de ir parar ao tacho, ou se conhece os encantos de uma suculenta lata de grão que se compra já cozido, tenrinho, temperado ao gosto de qualquer um. Caso feliz em que uma pessoa tem tempo para ter um blogue onde conta histórias sem se preocupar com o banho do grão.

Mas nem tudo são rosas, a pausa que fiz hoje à tarde para o café, por exemplo, não correu bem. A minha já pobre reputação na cozinha desceu mais uns níveis.

Encontro na copa lá da empresa a Carla e a dona Esmeralda num forum de culinária no qual entrei sem cuidados nem caldos de galinha e do qual saí com a tal reputação nos mínimos.

A dona Esmeralda, já sabemos, é quem serve o almoço na cantina, a Carla é a primeira vez que entra aqui, é minha colega e desconfio que é um ás ao fogão.

Entro na conversa sem rede e vou dizendo que vejam bem, que o grão da lata dá bons resultados, garanti-lhes um certo tempo livre, e é bom o grão, é tenro, não custa nada, e elas ai não, não é, elas não sabem nem querem saber o que são latas de grão já cozido. Ou de feijão.

A dona Esmeralda, que tem sempre opinião:

- Ai menina! Da lata?! Nem pensar, de molho é que é, e o feijão frade também. Depois põe-lhe o ovinho cozido, junta-lhe atum, faz um rico almoço, está a ver?

(não perguntei de onde vem o atum, se da lata ou de algum banho prévio, lamento não poder informar)

- Estou, estou a ver, gosto muito desse prato - digo eu a tentar reconquistar alguma da simpatia que antes reunia neste forum.

- Mas o feijão também põe de molho, dona Esmeralda? - eu, sem nada melhor para dizer, enfio o nariz na chávena de café, tomo um golo, procuro escape.

- Ó menina! - e olha-me por cima dos óculos a mostrar incredulidade - de molho, sim senhor, então como havia de se fazer ao feijão?!

("Ó" não é mais do que um vocativo que antecede o momento em que nos dirigimos a alguém e que oiço toda a gente aqui nas terras lusas usar mas não encontro em mais nenhuma outra língua de entre as poucas que se me dá conhecer.)

Estou com o café na mão e observo-lhe a superfície espumosa com toda a atenção, tento ganhar tempo nesta batalha que já perdi.

A Carla, que tem estado reservada, faz coro agora com a dona Esmeralda. Também ela é feijão de molho e grão de molho e os da lata?! Bem, experimentei uma vez, mas tive de pôr tudo na sopa, aquilo não dava jeito, vinha cru...

(cru?...)

- Ó menina - a dona Esmeralda ataca-me outra vez - é que não é a mesma coisa. Se puser de molho fica mesmo bem, aquele saborzinho, aquele gostinho (e esfrega a cabeça do polegar nas cabeças dos dedos indicador e médio, gesto posicionado junto da sua bochecha rosada, a ilustrar o saborzinho), agora se fôr da lata... (e abana a cabeça em oscilação rápida, a cerrar os olhos como quem acabou de provar o óleo do motor do carro)

Salvou-me a minha chávena entretanto vazia e o relatório para acabar, adeus!, vou andando!

Ficaram lá as duas.

E eu fico aqui, que por hoje já chega.

17/02/2014

Meter medo ao drácula

Entro na estação de serviço da auto-estrada e sigo paralelamente aos alinhamentos das bombas de abastecimento, a área está deserta. Estaciono junto à loja, não é combustível que venho comprar, e saio do carro.

O crepúsculo deste sábado cheira a chuva aquecida pelo sol que finalmente apareceu. Inspiro mais devagar, sou mesmo a única pessoa aqui fora.

Ainda faltam oitenta e quatro quilómetros para Lisboa e eu dirijo-me primeiro aos sanitários, é dar a volta ao edifício e entrar na porta lateral. Estes por enquanto distinguem três tipos, homem, mulher e criança que precise de mudar a fralda, a avaliar pela sinalética.

O facebook parece que abriu a lista de escolha do sexo do utilizador a dez tipos diferentes, presumo que masculino, feminino, em trânsito de ser um ou outro, e vão quatro, quanto ao resto não chego lá. Eu acho bem, não me assistem as discriminações sexuais, ainda assim parece-me necessária uma dose de criatividade substancial para encontrar dez sexos diferentes na raça humana. Ou terei lido mal a notícia?

Quando a lei obrigar os estabelecimentos públicos a seguir o exemplo do facebook e ter instalações sanitárias a servir toda esta gente, dez categorias diferentes, a coisa vai complicar-se.

Estou a pensar nisto enquanto me sirvo destas que são fáceis de utilizar nos dias que ainda correm, muito embora tenha entrado sem hesitar na porta com o desenho de uma pessoa de saias, quando uso, agora e quase sempre, calças.

Atiro com o papel com que enxuguei as mãos para o recipiente de plástico branco encostado à parede e saio empurrando a porta pesada que me abre o caminho para a aura crepuscular.

A cor azulada que tudo assume a esta hora do dia faz-me lembrar o verdadeiro motivo que me fez sair da auto-estrada: o tubo de pastilhas mentoladas que vou comprar para enganar o ardor que se instalou na minha garganta.

Na loja está um rapaz a atender, só um, clientes mais ninguém.

Ponho o tubo das pastilhas que retirei do expositor em cima do balcão e ele pergunta-me se quero aderir à promoção dos chocolates, pelo preço de não sei quê levo uma data deles à borla ou coisa assim.

A rapaziada desta cadeia de estações de serviço está bem treinada, todos sem excepção fazem esta pergunta há pelo menos três meses.

- Não, só quero aderir às pastilhas, os chocolates não me aliviam a dor de garganta, obrigada.

O moço riu-se e acenou com a cabeça, paguei e saí.

De volta ao meu lugar atrás do volante, a rodar rumo a Lisboa com o crepúsculo a esconder-se debaixo do manto negro da noite, sinto-me um tanto vazia. Afinal, podia ter comprado os chocolates ao rapaz que não tinha outro cliente, que é sábado, que o pecado da gula que eu havia de cometer talvez até ajudasse à garganta e me aquecesse o corpo, está a ficar frio.

E hoje, segunda feira, quiçá não estaria aqui envolta em mantas e chás, com suores e a cabeça pesada, uma voz de meter medo ao drácula, e, entre espirros e arrepios, a sair-me o texto mais parvinho de sempre.

14/02/2014

Meninice

A sala de espera da clínica médica estava cheia e quente.

O ar que paira entre nós já terá entrado e saído de todos os pares de pulmões presentes, está exausto e resta-lhe pouco oxigénio na composição, pressinto-lhe antes um cocktail de microorganismos satisfeitos com o banquete. As janelas, há janelas, deixam-me daqui ver a rua e constatar que agora, coincidência, agora não chove, estão fechadas. As minhas mãos estão guardadas uma dentro da outra, ajudam-se mutuamente a conter os espasmos de vontade de se lançarem ao puxador mais próximo para deixar renovar o ar só um bocadinho.

Fico quieta, há aqui gente doente que não quer correntes de ar, disso sei eu.

A senhora idosa sentada à nossa direita veste um casaco verde bandeira, tem o cabelo arranjado, pintado de um tom laranja que está aos gritos com o verde da bandeira, não se conseguem entender, os lábios de batom vermelho vivo desenham o resto do quadro. De vez em quando a senhora tosse com fulgor para a cova da mão que retira previamente, vejo certa elegância?, de junto da outra, sim é elegância, vestígios mas elegância.

Fiquei atenta. Enternecem-me as mulheres que não aceitam por dá cá aquela palha a chegada da velhice, que a detêm à porta da vizinha e se possível a empurram lá para dentro, que a afogam no cabeleireiro em visitas cada vez mais frequentes, que a mascaram com batom vermelho desenhado a fininho porque a carne dos lábios consumiu-se nos credos da vida, batom vermelho que com sorte não se estica aos dentes, mulheres que penduram a elegância do andar nas roupas vistosas dentro das quais se metem, que se agarram à última centelha de juventude, que querem viver e viver.

Continuei atenta.

Uma menina avaliada em quatro anos de idade pela minha filha adolescente, está no campo de visão desta senhora. A criança joga num tablet de dimensões que me pareceram infantis um jogo de manobras rápidas com o dedo pequenino, sábio, sábio mas ainda não completamente, que oiço a vozinha aguda dizer à mãe, ai morri.

Mas neste jogo as vidas são muitas e o dedito ágil retomou os deslizes e os volteios que me fazem lembrar a patinagem artística que eu gostava de ver na televisão quando tinha dedos daquele tamanho.

Mas voltemos à senhora. A dos vestígios de elegância, a que afoga a chegada da velhice, a que se desenha de vermelho, voltemos a ela que é nela que a vida é mais intensa agora: enterneceu-se com esta criança de dedos ágeis que não se importa de morrer porque neste jogo a morte não é a sério, e sorriu.

Sorriu e ficou a sorrir. A cabeça armada de cabelo laranja esqueceu-se da velhice e inclinou-se ligeiramente, estou a ver outra vez a elegância, estou estou, inclinou-se para admirar melhor, será?, admirar a meninice à sua frente.

E foi um sorriso tão bonito que acredito ter eu sorrido também.

Tão bonito que tenho a impressão de ter renovado o ar.

E me ter curado a mim do medo de um dia também envelhecer.

12/02/2014

Colheres em pé

Hoje quero contar-te isto.

Depois do trabalho, passei no supermercado e trouxe para casa três cenouras grandes, uma courgette que me agradou, um molho de brócolos com uns quinze centímetros de diâmetro, um nabo sem baixos relevos, os nabos sem baixos relevos são muito bonitos, um paralelepípedo de abóbora embrulhado no celofane, material que devia ser proibido de tão irritante, cola-se a tudo menos ao que queremos embrulhar, café também trouxe, um frasco de champô e a determinação de fazer uma sopa a tempo do jantar.

Já em casa, descasco tudo o mais depressa de que sou capaz, a courgette ajuda, é estratégica, substitui batatas que têm mais casca para tirar e, compreendes, nem sempre se consegue encaixar os afazeres todos no tempo de que se dispõe.

Mesmo com a intrusa da courgette e a porção reduzida de batatas, esmerei-me a sério. Enquanto parto os brócolos em metades e em metades das metades, penso nos fractais e nesta particularidade de se auto repetirem infinitamente na forma, por mais que os parta ao meio e ao meio e ao meio ficam sempre com a mesma cara, a couve-flor também serve de exemplo, mas tu não fazes ideia do que são fractais e eu pouco faço também, o que gosto é de fazer misturas com a conversa.

Deixei a sopa cozer, espetei um garfo nas cenouras a verificar o progresso do empreendimento, já sei que estas são os ossos mais duros de roer, engraçado escrever isto porque ossos não são para aqui chamados, mas tu entendes, talvez até que esta prosa desajeitada te faça sorrir.

As miúdas é o costume, ai mãe que sopa é esta e espreitam para dentro da panela a antecipar a luta, mas eu aprendi em todos os manuais que li quando elas nasceram, e antes e depois, e sei bem os poderes da sopa.

É que até lhe dei um nome, desta vez. Lembrei-me do autor do livro que ando a ler e que me ensinou sobre o efeito subliminar das coisas, diz que se lermos uma receita em letra difícil achamo-la também difícil de confeccionar, mas se a lermos em letra direita e fácil de ler, o nosso cérebro faz colagem ao conceito e acha-se capaz do cozinhado, mas adiante, que isto não te interessa nada, pois não?

Dei nome à sopa.

E perante a pergunta do ai mãe que sopa é esta, olha o que lhes disse, aveludado de abóbora gourmet com guarnição às dez horas. Gourmet usa-se agora para tudo o que se possa comer e queira parecer sofisticado. E as dez horas onde as fui buscar? Escuta, já conto.

Obtive um silêncio respeitoso das garotas, servi-lhes os pratos com o creme alaranjado com pontilhados verdes e posicionei uma folhinha de basílico fresco a meio do raio do prato (raio no sentido de metade do diâmetro, estás a imaginar?) e orientei os pratos de forma a deixar o basílico às dez horas de um relógio que não estava ali.

Resultou, comeram tudo e o nome caiu bem, para a próxima queremos às duas horas, disseram, então é só rodar o prato. E rimos. E tu também te ias rir.

Achas esquisito contar-te isto agora, calculo.

Podia dizer-te que o meu creme aveludado de abóbora gourmet não segura colheres em pé nem espalha aromas inesquecíveis pela casa, essas magias são tuas.

Mas escrevo-te isto para enganar a saudade e te sentir aqui ao meu lado a ouvir a minha história tola e a rir dela comigo, avó.

10/02/2014

Beijos esborrachados

Nove de fevereiro de dois mil e catorze, vinte horas e trinta minutos.

É domingo e eu podia estar noutro lado qualquer, mas é no aeroporto de Amesterdão que estou, chama-se ssrrripôl este aeroporto, se fôr à holandesa, e não xipól como apetece ler, à portuguesa.

Atravesso o enorme hall que tem lojas de um lado e do outro tem uma fileira de assentos novos com acessos à internet para quem precisa muito de comunicar. Quem não precisa muito continua, como eu, a pensar se não fosse o café daqui tão caro, parava e sentava-me a tomar um.

Sinto-me zonza como quase sempre acontece neste espaço que me engole e os brilhos do chão confundem a profundidade que os meus olhos focam, abaixo dos meus pés.

Caminho em direcção às portas da ala C, o voo para Lisboa vai partir da C18 a fazer fé na indicação do meu papel de embarque dobrado em três para ficar elegante.

O painel de informação à boca do acesso desta ala lista alguns voos mas nenhum se destina a Lisboa. Olha, olha, querem lá ver isto agora? Volto atrás, atravesso de novo o átrio de brilhos e gente, até chegar ao ecrã de informação que sabe sobre todas as alas. O voo para Lisboa fugiu para a ala D, está explicado, e eu subo no elevador, o acesso à escada está em obras, depois mais obras e um corredor infinito, escadas agora para baixo, estas sem obras, porta D73.

O voo vai combinado com uma companhia aérea chinesa e os passageiros que já aqui estão não escondem o facto. Sento-me, finalmente. À minha frente uma mulher jovem com um menino que não tem mais de oito anos. Observo este menino que tem olhos tão bonitos, com as pálpebras sem curvatura, as pestanas em escovinha fina e curta, o cabelo espetado, os sapatos de ténis com luzes verdes a piscar a cada salto, pirueta, correria, o miúdo não sossega e eu não tiro os olhos dos dele quando se viram para cá. Aprendi há muito tempo que não é preciso desviar os olhos dos de uma criança, ela aguenta o nosso olhar sem constrangimento. E muitas das vezes devolve-o com um sorriso. Não foi o caso, este menino chinês dos sapatos de luzes verdes não me sorriu. A mãe dá-lhe, agora, uma ordem, o menino não obedece, continua. Ela repete e ele repete. Ela levanta-lhe a mão e serve o gesto com um torcer de boca que nem a mim, que nasci caucasiana, me deixa dúvidas. Ele levanta-lhe a mão também. Ela torna a levantar a mão, retorce mais a boca, solta um guincho e o menino começa a bater na mãe, uma palmada, duas, três, a rir. A mãe pestaneja, encolhe-se para trás, vira a cara para não apanhar mais e o menino pára de lhe bater, regressa às tropelias.

Estão a chamar para o embarque e toda a gente se põe de pé em formação humana mais ou menos alinhada, em direcção a Lisboa.

Três horas depois de muito ler e algum dormir, iniciamos a descida para a capital lusa e o comandante avisa-nos que há ventos fortes de oeste, ventos desagradáveis num aterrar em pista orientada a norte-sul, como é esta. Senhores passageiros, diz ele, a aterragem vai ser difícil.

O avião continua a descer e vejo à minha esquerda, estou à janela, a linha de costa que vai terminar no joelho de Cascais. Volta alargada, curva a contornar a praia, se tivesse uma valsa nos ouvidos, saber-me-ia este volteado a passo de dança. Endireitou-se a máquina, sobrevoou a ponte com trânsito condicionado àquela hora mas isso só vim a saber depois, e então sim, começou um rock bem dançado, asa abaixo asa acima, e abaixo e acima. Lisboa já tinha anoitecido há muito, não lhe vejo o semblante acolhedor com que normalmente me dá as boas vindas, Lisboa está inquieta, o avião salta, ginga e a cidade mais perto e depois mais longe e mais perto e mais longe. E então oiço os outros passageiros a fazer barulho, são quase gritos?, esta dança acompanhada em coro de aflição, terei eu entoado o medo também?

Passamos por cima da segunda circular e o edifício novo da ZON veio cumprimentar-me à janela, para se afastar logo a seguir, ficou lá em baixo, já não o vejo, está quase, não está?

O avião acelera, vai levantar outra vez? Não, é uma roda no chão e depois a outra, a travagem põe toda a gente a dar beijos esborrachados no lugar da frente, eu segurei o meu com as duas mãos, que beijoca tão grande, agora o último passo da valsa, guinada à esquerda, os travões a rugir em fúria e todos a fazer a festa final, bravo!, bravo!, diziam, como na ópera se diz, as palmas, essas, duraram o resto da pista.

O comandante veio ao micro, os últimos minutos foram duros, hein? e agradece a ovação e deseja uma boa noite a todos.

Já estamos imóveis à porta e vejo a minha mão tremer enquanto retira o telefone da mala, tenho mensagens de toda a família, agora toca, já aterraste?

E depois soube que o Benfica e o Sporting ficaram adiados e que nem a Luz escapou ao vento.

Nós escapámos.

Já dentro do edifício, enquanto caminho atordoada atrás dos outros, agora não é dos néons de ssrrripôl que estou assim, vislumbro, entre os muitos passos à minha frente, as luzes verdes dos sapatos do menino chinês que bate na mãe.

E nessa altura desejo que ele também escape. Ele, mas só se ela quiser.

07/02/2014

Umas bofetadas

Toca um telemóvel na sala.

- 'Tou? Sim? Ah olá! Está tudo bem, e vocês?

É o final da tarde de ontem e estou na sessão de informação sobre os perigos que a internet e as redes sociais podem trazer aos nossos filhos, uma sessão para pais oferecida por voluntários de uma empresa de comunicações que se empenham em trazer este bem à comunidade e andam a fazer estas sessões por diversos agrupamentos escolares.

Está, portanto, uma mãe a atender uma chamada. Uma chamada que continua e continua, enquanto sentada na assistência. Virei-me para trás duas vezes a confirmar se não me enganava eu, e confirmei que não, não me engano eu. Depois olhei para a oradora na expectativa de reacção e nada, continuou a orar.

Inquietei-me, mexi-me na cadeira, isto é de um atrevimento atroz, senhores voluntários das comunicações, há que ter em consideração as necessidades das pessoas da assistência.

Ora uma pobre mãe tem o telefone a tocar e atende-o a meio de uma sessão e a oradora continua a falar como se nada fosse?!? Não interrompeu o discurso e não pediu silêncio a todos, para que a senhora pudesse manter a conversa com melhores condições acústicas?! Não.

Havia de interromper, de colaborar, deixemos a senhora terminar a sua chamadinha em paz, pobrezinha, pois isto foi uma maçada vir o telefonema enquanto tanta gente aqui, a incomodar, a querer discutir outras coisas, é preciso ter azar, vamos todos ajudar (como faço isto para não rimar?).

Pois meus senhores a sessão continuou com todo o desplante e sem registo de perturbação, ausência total de solidariedade com esta senhora, cuja chamada lá continua.

Ou vejamos, em tendo havido a interrupção devida no discurso da oradora para dar lugar à chamadinha desta pobre mãe, tinha eu pegado nas batatas que jaziam no chão ao meu lado dentro do saco de plástico do supermercado, visitado por mim em modo de aceleração máxima mas sem ultrapassar o limite de velocidade (na via verde agora há dispositivos, são sessenta quilómetros por hora, aproveito para lembrar) as batatas, dizia eu, que mania de escorregar o pé no pedal, e foi antes desta sessão que as comprei, esta mãe está-me a perturbar de tanto dó que sinto, e é que as descascava com o canivete suíço que devia trazer no bolso, adiantava a sopa para o jantar enquanto a chamadita continuava em paz durante a pausa que a nossa oradora não fez, não era?

Ou então, se tivesse comprado uma nova cor de verniz para as unhas, podia aproveitar e pintava-as com o vagar que me falta toda a semana, foi uma imperdoável falta de lembrança minha e a senhora ali, a falar a falar, a ajudar-me, a dar-me tempo para isto tudo, assim tivesse a safada da oradora permitido, claro. Achei uma austeridade sem dó, qual governo qual quê, esta voluntária é que é.

Ainda me ocorreu, mas que cabeça a minha, que a tábua de engomar também não é assim tão grande e a roupa cresce em pilha sempre a deitar-me o olho de cada vez que passo perto, anda cá que vais ver. Podia tê-la trazido dobrada, à tábua, deitava-a no chão e em havendo esta oportunidade, tinha-me servido de muito e eu não estaria agora toda indignada a escrever isto a esta hora da noite quando já devia estar a dormir.

Portanto, quero deixar aqui a seguinte declaração neste meu querido mural:

Eu, algures assinada, declaro que acho uma total ausência de respeito sem igual, estar um voluntário a ensinar os pais e mães a proteger os seus filhos de se tornarem vítimas da internet, por exemplo do chamado ciberbullying, ou do phishing que também serve para apanhar dados das contas bancárias e surripiar dinheiro a estes pobres pais, estarem a ensiná-los a proteger os seus filhos de predadores sexuais que existem nas redes por detrás de perfis inocentes e não serem capazes de parar de falar, dar um momento de respeito, de pausa, de espaço, a uma pessoa que está a tentar manter uma chamada telefónica meramente circunstancial, isenta de qualquer perigo para a comunidade, isso toda a gente viu, e, em vez disso, continuam.

Pois eu, isto já foi ontem, ainda estou que não posso.

Não posso com esta vontade de dar umas bofetadas, ai era!

05/02/2014

Entradas e saídas

Há coisas que não sei não.

Comprei apartamento com garagem não foi? Foi.

E chego a casa seca da silva quando venho de carro e está a chover não chego? Chego.

(espera aí, vou mudar o estilo que isto está-me a parecer o do professor Marcelo)

Vamos lá então.

Abro a portinhola do meio do painel de instrumentos (tablier não sei se sei escrever) do meu carro com um tapa suave de três dedos e retiro de lá o comando da garagem. Pressiono o botão da esquerda, já tive oportunidade de referir que o da direita serve para nada, e o portão começa a subir lentamente. Volta o comando ao compartimento para comandos, e os três dedos de há pouco empurram a portinhola, até se ouvir o clique.

Lá fora a chuva cai de cima e de todos os lados, as bátegas, não, trombas, as trombas de água vejo-as em danças loucas ao vento, translação iluminada pelos candeeiros de rua, está agreste.

No rádio toca, deixa cá ver o que toca no rádio, toca Frank Bungarten uma guitarrada roubada à La Traviata e eu estou aqui toda protegida, embalada, até posso fingir para mim própria que está frio e estremecer um pouco a conferir verosimilhança à situação, antes de o portão terminar o seu longo curso e eu deslizar rampa abaixo com o Bungarten a dedilhar-me os ouvidos, a chuva já estancou, ficou para trás, o silêncio do piso subterrâneo engole-me, não o meu carro não o quebra, vai eléctrico, cúmplice da quietude, um regalo.

Faço a manobra de muitas voltas, estaciono, apeio-me.

A luz branca fluorescente que arrancou a piscar quando entrámos, está agora acesa em todo o seu frio polar e lembra-me a sala de espera do centro de saúde, sendo que no centro de saúde sempre dá para distrair com as conversas das velhotas sobre as doenças dos maridos em competição de gravidade, ora oiça a vizinha.

Assim iluminada, vejo bem o chão cinza mal tratado pela idade, esburacado, as paredes com humidade que escorre aqui e ali e do tecto vejo pingar gotas aspirantes a estalactites em dias como este.

Passo pelas caixas cinzentas que estão no chão encostadas às paredes do acesso que dá para os elevadores, têm buracos nos topos a ver se entram os ratos, eu nunca os vi entrar, sair também não.

A meio do corredor, já me habituei, a luz apaga-se. Oriento os meus passos ao ponto vermelho minúsculo que indica o lugar do interruptor mais próximo. Apagou-se a fluorescência porque o tempo determinado de iluminação é tomado da média dos condutores que são mais rápidos que eu nas manobras de estacionamento.

Mas isto é coisa que não me aborrece, sempre dou descanso aos ratinhos que podem espreitar pelos buracos das caixas cinzentas na ausência da luz e eu sou poupada à fealdade do lugar enquanto me sinto pairar em vácuo de tão escuro que está.

Na manhã seguinte, todas as manhãs seguintes, faço o percurso inverso, começo o dia a atravessar o lugar húmido, cinzento, velho e frio que é esta garagem.

Aos ratos das caixas cinzentas não dou os bons dias que nunca os encontro.

E isto sim, aborrece-me.

Mesmo com chuva, vou reconsiderar as minhas entradas e saídas, comprei um apartamento com garagem? Comprei.

Posso não a usar? Posso.

02/02/2014

Favaios ou licor de ervas caseiro

Passa-se qualquer coisa com a cebola.

O Saramago meteu-a no cheiro de um homem de maus agoiros que passava na rua de Lisboa onde morava o Ricardo Reis no seu último ano de vida.

O Shrek comparou-se a uma por ser feito de camadas, vá-se lá saber onde estão as outras escondidas, que eu só lhe vejo a superfície ou então escapa-me a metáfora.

Quando a meto, à cebola, nas minhas sopas que raramente são apreciadas, já de si, cá em casa, ficam sempre umas películazinhas por triturar, nem que eu me agarre à varinha mágica dia e noite até queimar o motor ou até a vizinha me bater à porta, então que é lá isso?

Há, ou pelo menos havia, um restaurante Tailandês em Cascais que tinha como sobremesa, repito, sobremesa, aprimorada, uma coisa cheia de cebola frita que era de ir às lágrimas de deliciosa e que, se fosse hoje, catalogar-se-ia de gourmet, mas como foi muito antes de sabermos o que é gourmet aqui neste nosso Portugal, ficamos pelo aprimorada, está bem?

Ao descascar, partir às rodelas ou pior, picar, sobe-nos aos olhos o ácido libertado capaz de fazer qualquer homem grande chorar como um bebé, que a coisa arde que se farta, a menos que se seja utilizador, àquela hora, de lentes de contacto hidrófilas.

Se a metemos no meio das outras leguminosas na panela de um belo cozido à portuguesa a servir a um domingo com a família alargada, e a deixamos cozer nessa comunidade que promete, torna-se mansa que nem um cordeiro, vira adocicada a safada, e fica capaz de agradar às crianças, população entre a qual não costuma a cebola conquistar muitos likes.

Na minha infância havia as mãos de fada da minha avó que se metiam a transformar as sardinhas que sobravam das almoçaradas de verão à sombra dos pinheiros, num escabeche que me alindava tanto o dia seguinte e não era eu senão uma cachopa. Nunca mais aquele escabeche me surgiu no prato.

Hoje, ao jantar, compus uma combinação de alimentos a que podemos chamar salada, que devia ter uns trinta e nove ingredientes, tal era a vontade, e que incluía uma pequena parte, vinda de um resto de ontem, de uma cebola. Crua.

E agora estou aqui que não há rebuçado que me tire o gosto, portanto é decidir: ou passo a um copito de Favaios ou a um licor de ervas caseiro, a ver se a coisa se compõe.

Em não se compondo, vou dormir. Caso contrário, também.

É que me está a dar a fome.

Chamar ao sono

Esta noite sonhei que andava à procura de sombra verde para os olhos, eu. Sombra verde.

Como não sou mulher de pôr sombras nos olhos, já basta as que cá passam e não querem sair, fiquei tão admirada com isto que acordei.

Decidi então, em alternativa e ainda no morno da cama, se é para ficar bonita vou é comprar a camisola que vi na montra da loja do centro comercial aqui do bairro.

A rapariga que lá trabalha quase todos os dias e ao domingo também, gosta de mim. Cumprimenta-me com dois beijinhos e trata-me por querida.

É uma rapariga que põe sombra nuns olhos que reflectem sombras, essas profundas, da alma.

Lembro-me de um dia ter deixado escapar que o marido, quer dizer, não somos casados mas estamos juntos há tanto tempo, não é, o marido, dizia, lhe bate. Mas não muito, pouco. E é só quando se distrai e bebe mais um bocadinho, sabe, querida? E quando dou um passo em frente e enceto uma reacção adequada, indignada, acorre ela, como que a salvar-se, não, não volta a acontecer, ele prometeu.

Quando lá vou à loja oiço-lhe as histórias. É o filho tão pequenino e ela, nos psicólogos, isto há-de melhorar, ele ao que consta não voltou a esticar a mão, não lhe mostro a pressa que por vezes levo no bolso, são as sombras que lhe vejo na alma que me retêm ali. Como todos sabemos desde que Saint-Exupéry escreveu o livro, ficamos responsáveis por quem cativamos.

Cruzo a porta da loja e ela está a atender uma cliente com muita pressa, ora vejamos o que se seguiu. A minha amiga diz à cliente, vou só dar um beijinho a esta senhora. Não demore, olhe que tenho pressa (a cliente tem pressa).

Não demorou o beijinho, claro, mas vi que hoje a sombra é de outro tom, que tom é este.

Meti-me dentro do provador com a camisola não dos meus sonhos, esses andam a passear-me por corredores de maquiagem sabe-se lá porquê, mas de um tamanho acima do meu, mais pequeno não há, querida.

Devo ter engordado, a camisola serviu, é para levar.

Já a sós na loja, que a pressa veio buscar a outra cliente, enquanto faz a dobra da mercadoria, digita no computador a referência, a cor, o tamanho, que é acima do meu (faltei ao ginásio toda a semana, está aqui o resultado), o preço que é de saldo, vai saindo esta conversa.

Sabe querida, e ao dar uma olhada para o cartão de débito que lhe estendo diz o meu nome, e eu, sabe o meu nome, e ela, a sorrir, sei, vi no cartão.

- Como está o seu filho? - pergunto.

- Está bom, foi com a madrinha ver o espectáculo do La Féria. O pai não quis ficar com ele e eu estou a trabalhar, não posso trazer um menino de sete anos para a loja, querida.

- Pois não.

O processo de pagamento e ensacamento do produto em saldo terminou, e ela,

- Venha cá mais vezes.... ai, o nome...

Ajudei-a com o meu nome, ela justifica-se

- São os anti-depressivos, querida, esqueço-me das coisas.

E continua, em resposta ao meu arquear de sobrancelhas.

- Ai não sabia? Fui trocada por outra, estou separada, pus-lhe as roupas à porta, foi mesmo assim, malas cheias à porta, descobri tudo no telemóvel. Ela a chamá-lo amor, imagina, querida, foi um choque, amor! E ele a negar tudo, mesmo com o telemóvel, tudo lá escrito, amor, amor. Ando a anti-depressivos, tem que ser, olhe que perdi sete quilos. E a médica disse-me para eu comer, por causa do meu filho, e eu como, o meu filho é tudo.

Entrou outra cliente e eu despedi-me. Disse-lhe que vai correr tudo bem, para que ela acredite.

Eu acredito.

E agora já sei que o tom que lhe vi na alma é o verde que me veio chamar ao sono.

Meteu-se ali para lhe vestir a vida de esperança.