a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

29/05/2022

Entretanto acabei o livro e fiz cuscus para o jantar (admito)

Falta mais de meia hora para o anúncio da porta de embarque a que pertence o meu voo. Fazia planos de usar o tempo na leitura do livro, mas antes comi uma salada de cuscus. Cada vez gosto mais de cuscus - e só mesmo algo muito irresistível para me manter com as mãos afastadas do livro. Não pego nele porque estou quase no fim e ainda nada pronta para acabar a nossa breve mas intensa relação. Quando chegar a Lisboa pousarei a mala no chão e correrei a comprar os outros dois livros da autora, é limpinho, como diz a minha mãe. Susana Piedade, para o caso de alguém querer saber. O nome da autora, não o da minha mãe. Lá fora chove. O avião que estava do outro lado do vidro perto de mim já partiu e eu nem o vi na habitual lenta marcha-atrás, um processo de movimentação fina de um monstro no solo a que gosto de assistir. Estou mesmo distraída. A tentar não pegar no livro. Desta vez levo perfumes em promoção para as miúdas e um enorme pacote de estrondosas bolachas para o meu novo trabalho. Quando amanhã lá chegar, irei à copa cumprimentar a máquina do café e deixar as bolachas a fazer-lhe companhia todo o dia. Todo o dia, o quê... toda a manhã! E e! Toda... logo se vê! A minha mãe também diz "e e!".

19/05/2022

Cajus branquinhos

Achando que ia comprar um saco de lentilhas de uma cor diferente das amarelas, que essas já temos, fui à loja indiana do bairro munida de uma das várias receitas que o senhor de lá me deu há dias. Ele a dar-me receitas e receitas, vegetarianíssimo confessado até na camisola polo que vestia, todas aquelas sem carne ou peixe. Estava meio que a tentar converter-me ali mesmo, tendo rematado o insucesso, após grande conversa sobre comer animais ou lentilhas de todas as cores, a declarar para si próprio que não se pode julgar os outros enquanto encolhia os ombros por eu não ser assim tão fácil de convencer. Já que em princípio continuarei a comer animais, embora não muitos. 

Pois voltei lá hoje com boas intenções e a tal receita na mão, dobrada em quatro. Mas antes fui abastecer-me dos ingredientes que consigo identificar na lista dos próprios: cebolas, cenouras, couve-flor, batata, pimento verde, alhos. Quando por fim entrei na loja indiana ia carregada. Pousei os sacos de pano e compras no chão e desdobrei o papel da receita. Não estava o senhor vegetariano que não me podia julgar, mas sim uma jovem mulher provavelmente da mesma família. Estendi-lhe então a receita pedindo para me fornecer os ingredientes um tanto ilegíveis, este e este, se faz favor, o resto já tenho, disse eu apontando para o desdobrado papel. Ela foi buscar os dois elementos. É só isto que tem de levar, disse, pousando-os no balcão. E realmente enganei-me: não era lentilhas que a receita mandava nos seus estranhos dizeres. Tratava-se apenas de um saco transparente* e avantajado com cajus branquinhos a prometer delícias tremendas e uma caixa com um pó masala não sei quê, que eu nunca tinha visto.

*de plástico, ah pois, sim, sim – mas eu também não vou julgar, ok.

17/05/2022

Grande mistério

Os gatos correm pela casa desafiando os lugares mais altos como as costas do piano ou as da cadeira que foi parar à varanda pela minha mão, não para subir na vida, mas para secar. Um jarro de água quase cheio tinha-se misteriosamente deitado sobre a mesa e a mesa tem design propício a molhar cadeiras. Todo um processo pertencente à situação de ter felinos ativos e saudáveis em casa. Se o meu gato está bem, eu estou bem, ou lá como era o sábio anúncio. A esta hora, o sol entra por todo o lado nascente espraiando-se sobre o chão de carvalho e revelando a necessidade de pôr o aspirador-robô a andar. Assim estamos, portanto, imbuídos do seu murmurejar tecnológico com a Nora Jones a cantar por trás, para variar de Rachmaninoff. Os amigos de quatro patas não o são um do outro, como já se saberá, e nem o aspirador-robô, grande mistério a explorar e de que fugir no antigamente dos bichos, lhes causa mais respeito ou é capaz de lhes refrear as correrias antecedentes às estaladas, aos rosnanços e a outras manifestações mútuas, adoráveis.

O melhor é ir trabalhar.

14/05/2022

Também os há de graça

No almoço decorrido atrás das vidraças de sexto andar que deitam para a avenida onde moram jacarandás seguidinhos iniciando a puberdade dois mil e vinte e dois, os queridos, optei por um vinho branco e não recusei água. O linguado desfiambrou-se como nos tempos do Dom Pepe ali onde Cascais alvorece muitas vezes e por um momento perdi o contacto com as velhas mas funcionais instalações elétricas em torno. Estive regozijando dentro de um contentamento mais transversal cá comigo, do tipo camadas de cebola, mas logo acordei. Falava-se do potencial genético e humano à base de bits e apresentaram-se resoluções já com o meu linguado em espinhas. É que eu vinha com fome. O presidente dos trabalhos pediu para enunciarmos um objeto preferido. Um ou o, não posso precisar. Sendo paupérrimo que, por falta de ideia, reduzisse um belíssimo jacarandá a objeto, nomeei o livro a tempo. Não fui a única como seria de prever. Uma graça de almoço. De graça. Que também os há. 

08/05/2022

Toda a população distrital e (diria mais) municipal

Estou muito farta do desamor que os gatos têm um pelo outro, isto vão sete meses demasiado infernais. Hoje de manhã já me levantei de um trabalho que parece infinito, a revisão de uma tradução de alguém pouco dado a traduções - felizmente já na última temporada da estucha de três - para ir tentar evitar vários assanhanços que me põem os nervos em franja e o chão com tufos de pelos arrancados à unha (do outro gato). Apetecia-me introduzir um acento circunflexo na palavra pelos, mas o corretor sem c não quer e eu já estou por tudo. 

Entretanto os bichos lá acalmaram, aqueles nervos felinos também têm limites, graças a deus. E eu regressei ao trabalho de sapa, mesmo sendo um domingo de sol e não sei quê. De repente, em meio de uma correção tecnico-linguística apuro o ouvido por cima do Chopin que me toca perto porque creio ouvir o rosnanço de dona Marble face à proximidade medida em centímetros do sempre pronto para a ação Beethoven, ambos sendo gatos plenos da sua personalidade. Apuro, apuro, e depois lá concluo que afinal era uma daquelas motas detestáveis, bem ao longe, conduzida por um exemplar de certeza equipado com uma micro- ou mesmo nano- pila (que até eu me passo de vez em quando) que acha muito macho fazer toda a população distrital e municipal conhecer o rugido do seu estúpido motor.