Depois do trabalho, houve reunião de pais na escola da Mafalda. Chego atrasada porque a chuva resolveu aparecer por cá e como é seu costume, fez multiplicar automóveis. Estacionei onde calhou e calhou ser longe.
Saio da reunião antes do fim, boa tarde, desculpe, porque já tinha o jantar combinado com a Catarina. Não a vejo há muitos anos e por isso nem estremeci com a sobreposição de agenda.
Meto por uma segunda circular que hoje circula, apesar da chuva. Seguiu-se a autoestrada para Cascais que continuou a fluidez de tráfego que eu já trazia, incrédula, da circular. Ao local combinado chego uns minutos antes da hora.
O bar da praia está quase deserto. A esplanada tem os guarda-sois fechados e atados, não vá o vento enrolar-se neles. De dentro, soa acolhedora a habitual música jazz.
Sento-me a uma mesa na esplanada a gozar a intempérie do jovem outono. Como é maravilhoso este tempo agreste!
O vento trata de me untar a cara com água salgada que traz roubada às ondas. Elas, loucas de raiva, saltam galgando a falésia à minha frente. Fico a olhá-las do meu posto de vigia, com uma tranquilidade que não trouxe de Lisboa.
Não sei se é do jazz que vem de dentro do bar, se das memórias deste lugar eternamente meu, se do encontro iminente com a minha amiga que não vejo desde há três filhos atrás, se de me ter baldado ao final da reunião de pais no momento em que a revolta contra os males previstos para o ano lectivo está ao rubro, porque sim, porque eles já sabem, ai os nossos meninos, não sei do que é, mas sinto-me feliz.
O vento está morno, veste as quenturas do verão que ainda lhe não morreu na memória. O sal continua a beijar-me o rosto e vai pintando o meu cabelo de branco tímido.
As ondas ainda não se acalmaram e a Catarina está a chegar.
a voz à solta
27/09/2013
25/09/2013
Duty free
Não pertenço aqui. Trazes-me no teu carro e fazemos a viagem em silêncio. Por vezes trocamos umas palavras imbecis sobre as nuvens. Ou sobre as pastagens que se deitam ao nosso lado, na viagem, e são extensas. Tenho inveja das vacas, que nunca têm pressa e ficam sempre onde estão.
Torço as mãos debaixo da dobra do casaco, para não as veres. Deixo sair o suspiro que me está entalado no peito quando a atenção te prende à estrada.
Estacionas no piso que tem sempre água nas juntas das placas de cimento do chão, mesmo quando não esteve a chover. Caminhamos em direcção ao edifício, que é gigante. Entramos na porta dos traços desenhados por tubos de néon, um amarelo, um vermelho e um azul, a fazer figuras indecifráveis. O mármore polido do chão brilha num tom frio e nós, indiferentes, dirigimo-nos para o tapete rolante que hoje funciona.
O longo corredor vai desembocar no átrio enorme cheio de viajantes apressados, uns chegaram outros vão partir, como eu. As suas conversas chegam-me aos ouvidos em excertos que tento colar, muito depressa, a ver se um dia tenho uma história bonita para te contar.
Lá em cima, passo no controlo de raios X, tu ficaste para trás. Volto-me para te acenar o adeus que me pesa no braço, em todo o corpo. Sei que estou a sorrir para que tu me vejas sorrir. Tu também me acenas.
Volto-me outra vez, enfim, e recomeço a caminhar.
Sigo assente nas minhas pernas que se mexem como autómatos comandados não por mim. Estou entorpecida. Em exposição, desfila ao meu lado toda a colecção de duty free, os chocolates, os perfumes, os vinhos, os relógios, as malas, os preços exorbitantes, free de quê afinal, que coisa insípida. Todo este glamour que promete ilusões. Só porque me vou embora.
Entro na loja que tem um monte de livros à porta, como se fossem todos muito urgentes, a ver se me consolam. Leio os títulos, um a um, desenho com os olhos os nomes dos autores desconhecidos, faço-lhes promessas de os vir buscar, um dia, hoje não que estou dormente.
Depois fico tonta, farta, irritada, estou triste e ligo para casa. A voz da minha filha arranca-me instantaneamente ao torpor, que música mais linda.
Digo-lhe que o voo não tem atraso e que vá preparando o jantar.
Torço as mãos debaixo da dobra do casaco, para não as veres. Deixo sair o suspiro que me está entalado no peito quando a atenção te prende à estrada.
Estacionas no piso que tem sempre água nas juntas das placas de cimento do chão, mesmo quando não esteve a chover. Caminhamos em direcção ao edifício, que é gigante. Entramos na porta dos traços desenhados por tubos de néon, um amarelo, um vermelho e um azul, a fazer figuras indecifráveis. O mármore polido do chão brilha num tom frio e nós, indiferentes, dirigimo-nos para o tapete rolante que hoje funciona.
O longo corredor vai desembocar no átrio enorme cheio de viajantes apressados, uns chegaram outros vão partir, como eu. As suas conversas chegam-me aos ouvidos em excertos que tento colar, muito depressa, a ver se um dia tenho uma história bonita para te contar.
Lá em cima, passo no controlo de raios X, tu ficaste para trás. Volto-me para te acenar o adeus que me pesa no braço, em todo o corpo. Sei que estou a sorrir para que tu me vejas sorrir. Tu também me acenas.
Volto-me outra vez, enfim, e recomeço a caminhar.
Sigo assente nas minhas pernas que se mexem como autómatos comandados não por mim. Estou entorpecida. Em exposição, desfila ao meu lado toda a colecção de duty free, os chocolates, os perfumes, os vinhos, os relógios, as malas, os preços exorbitantes, free de quê afinal, que coisa insípida. Todo este glamour que promete ilusões. Só porque me vou embora.
Entro na loja que tem um monte de livros à porta, como se fossem todos muito urgentes, a ver se me consolam. Leio os títulos, um a um, desenho com os olhos os nomes dos autores desconhecidos, faço-lhes promessas de os vir buscar, um dia, hoje não que estou dormente.
Depois fico tonta, farta, irritada, estou triste e ligo para casa. A voz da minha filha arranca-me instantaneamente ao torpor, que música mais linda.
Digo-lhe que o voo não tem atraso e que vá preparando o jantar.
22/09/2013
Seis em cada mil
Este é o interior de uma das muitas carruagens que transportaram judeus para o campo de concentração de Auschwitz, durante a segunda guerra mundial.
Encontrei-a assim, de porta aberta, sem uso, envergonhada do seu passado, que dá para sentir. Está no museu dos caminhos de ferro em Utreque, nos Países Baixos.
A voz no altifalante instalado no tecto da carruagem debitava algumas estatísticas dos horrores.
Agosto de 1942. A carruagem levava cinquenta judeus. Alguns morriam no trajecto que durava três dias e três noites. Mesmo assim, muitos chegavam vivos. Levariam talvez esperança em vez de bagagem.
Despejados como gado, sobreviveram ao campo de concentração à taxa de seis em cada mil. Seis. Em cada mil.
E nós, aqui, nesta praia à beira mar plantada, sol e vinho com fartura, cerveja e tremoços que bem escorregam, fado ao fundo para nos embalar a tristeza que nos impregna a alma lusa.
Que é muita a crise, muita. Estamos cheios dela. Cheios de crise, nós, de crise!
Qual crise?
20/09/2013
No museu
Hoje tenho de ir fazer o cartão, tem de ser.
Abro a gaveta da mesa de cabeceira. Onde estão as fotos tipo passe que tirei o ano passado? Tenho a certeza de que as meti aqui. Reviro os objectos, que tralha, jesus! Tanta esferográfica, como é possível? Conto-as, sete. Sete?! Meto-as para trás, agarro nas fotos e enfio-as no bolso das calças, daqui já não saem. Fecho a gaveta.
Depois, na cozinha, abro o correio que trouxe ontem para casa, vinha tão ataviada com os sacos de compras, o jantar que tinha de ser feito, que deixei o correio para hoje, são as contas para pagar. Ponho-as por ordem da data limite de pagamento e tento memorizar a primeira, para não falhar. Esforço-me por ser organizada, às vezes resulta.
E aqui estão mais, no cesto do correio, mas deve ser só uma ou duas, deixa ver. Seis. São seis. Admira-me isto. Como consegui juntar tanta esferográfica?
Quase pronta para sair de casa, finalmente, vejo que tenho de mudar de mala. Um problema que tento minimizar com as malas multicoloridas para darem bem com tudo, ou quase, uma pessoa tem de estar bem, mas caramba, perder tempo de manhã é tramado! Hoje tem de ser, troco de mala. E conto-as, agora tornou-se desafio, afinal há que olhar para as miudezas da vida quando se fareja uma coisa destas, não? A ver quantas são. Três. Três esferográficas na mala para hoje, duas ficaram na colorida, tão bonita, a minha preferida.
Saio de casa, desço as escadas, entro no carro, olho para o relógio que está três minutos adiantado, a velha inútil estratégia, porque já vou atrasada, podia ter deixado o correio para logo e as fotos, bolas, posso ir amanhã tratar do cartão. Ah, será que ainda é preciso levar fotos?!
No trajecto para o trabalho vou a pensar que fenómeno é este que se desenvolveu autonomamente, geração espontânea, mesmo nas minhas barbas, um manancial de esferográficas, metem-se em todo o lado.
Na verdade, dá muito jeito tê-las mesmo à mão quando é preciso acrescentar à lista de compras o detergente para a loiça, o vinho ou as batatas. Ou quando...
Ou quando o quê?...
Ah, pois, quando assino as mensagens da escola das crianças a confirmar que sim, que autorizo, que sim, que tomei conhecimento, é isso.
E mais?
E mais nada.
É que não uso esferográfica para mais nada.
Como gosto de estudar fenómenos que não interessam a ninguém mas que me estimulam os neurónios, porque há uma razão para tudo, ponho-me a pensar.
A pensar que a era da escrita electrónica está instalada e substitui as esferográficas, é o que é. Não servem, já ninguém as usa. Vão acabar nas prateleiras dos museus, ai vão vão. E depois, as criancinhas, olha, mãe, olha como a tua avó escrevia! Tão bonita, a esferográfica! Gostava tanto de ter uma!
Mas isso não é para já, que esta avó de que a criança fala ainda anda de fraldas. E os museus ainda não querem esferográficas.
Para já, tenho uma ideia melhor.
Vou mandá-las todas à Joana Vasconcelos. Para ela fazer um coração gigante, uma flor que abre e fecha, meter-lhes néon dentro, usá-las nos saltos dos sapatos, em peças de automóveis, aplicar-lhes asas, sei lá!
Sempre é uma forma de as ver mais cedo no museu.
Abro a gaveta da mesa de cabeceira. Onde estão as fotos tipo passe que tirei o ano passado? Tenho a certeza de que as meti aqui. Reviro os objectos, que tralha, jesus! Tanta esferográfica, como é possível? Conto-as, sete. Sete?! Meto-as para trás, agarro nas fotos e enfio-as no bolso das calças, daqui já não saem. Fecho a gaveta.
Depois, na cozinha, abro o correio que trouxe ontem para casa, vinha tão ataviada com os sacos de compras, o jantar que tinha de ser feito, que deixei o correio para hoje, são as contas para pagar. Ponho-as por ordem da data limite de pagamento e tento memorizar a primeira, para não falhar. Esforço-me por ser organizada, às vezes resulta.
E aqui estão mais, no cesto do correio, mas deve ser só uma ou duas, deixa ver. Seis. São seis. Admira-me isto. Como consegui juntar tanta esferográfica?
Quase pronta para sair de casa, finalmente, vejo que tenho de mudar de mala. Um problema que tento minimizar com as malas multicoloridas para darem bem com tudo, ou quase, uma pessoa tem de estar bem, mas caramba, perder tempo de manhã é tramado! Hoje tem de ser, troco de mala. E conto-as, agora tornou-se desafio, afinal há que olhar para as miudezas da vida quando se fareja uma coisa destas, não? A ver quantas são. Três. Três esferográficas na mala para hoje, duas ficaram na colorida, tão bonita, a minha preferida.
Saio de casa, desço as escadas, entro no carro, olho para o relógio que está três minutos adiantado, a velha inútil estratégia, porque já vou atrasada, podia ter deixado o correio para logo e as fotos, bolas, posso ir amanhã tratar do cartão. Ah, será que ainda é preciso levar fotos?!
No trajecto para o trabalho vou a pensar que fenómeno é este que se desenvolveu autonomamente, geração espontânea, mesmo nas minhas barbas, um manancial de esferográficas, metem-se em todo o lado.
Na verdade, dá muito jeito tê-las mesmo à mão quando é preciso acrescentar à lista de compras o detergente para a loiça, o vinho ou as batatas. Ou quando...
Ou quando o quê?...
Ah, pois, quando assino as mensagens da escola das crianças a confirmar que sim, que autorizo, que sim, que tomei conhecimento, é isso.
E mais?
E mais nada.
É que não uso esferográfica para mais nada.
Como gosto de estudar fenómenos que não interessam a ninguém mas que me estimulam os neurónios, porque há uma razão para tudo, ponho-me a pensar.
A pensar que a era da escrita electrónica está instalada e substitui as esferográficas, é o que é. Não servem, já ninguém as usa. Vão acabar nas prateleiras dos museus, ai vão vão. E depois, as criancinhas, olha, mãe, olha como a tua avó escrevia! Tão bonita, a esferográfica! Gostava tanto de ter uma!
Mas isso não é para já, que esta avó de que a criança fala ainda anda de fraldas. E os museus ainda não querem esferográficas.
Para já, tenho uma ideia melhor.
Vou mandá-las todas à Joana Vasconcelos. Para ela fazer um coração gigante, uma flor que abre e fecha, meter-lhes néon dentro, usá-las nos saltos dos sapatos, em peças de automóveis, aplicar-lhes asas, sei lá!
Sempre é uma forma de as ver mais cedo no museu.
18/09/2013
Café pingado
Se não fosse eu ter-me metido a fazer um blogue, havia coisas que iriam comigo para a cova, nem os meus mais recônditos botões saberiam.
Como isto. Ontem à tarde, a meio da tarde de trabalho, levantei-me decidida a tomar um café pingado. Coisa inédita no meu rol de bebidas, café pingado.
O que me levou a cometer esta loucura desvairada, foi a vontade de tomar mais tempo a beber o líquido e assim prolongar a pausa, visto que o café pingado, pelo nome, promete comportar mais quantidade que o café normal.
Ora tenho a anunciar aqui, neste veículo informativo, que o café pingado da máquina do andar de baixo lá da empresa é mau. Muito mau.
Ainda tentei um segundo golo, cauteloso, deve ser de mim, é castigo por querer pausar por mais tempo, vai mas é trabalhar. Credo.
Confirma-se, este café pingado tem sabor a banha de porco podre.
Certifiquei-me de que ninguém assistia à mutação que se operou em mim, terei esverdeado por momentos, bolhas lilases ter-se-ão libertado dos meus cabelos, as tremuras que me subiram pela espinha terão terminado a enegrecer-me as unhas, ou coisa assim, quem te mandou, e deitei o resto da bebida fora. Às escondidas. Depois, de cabeça erguida, voltei para de onde não devia ter saído.
Ao regressar a casa no final do dia, ainda agoniada, admirada com o poder intoxicante do pedaço de leite em pó que pingou o café, dou de caras, como todos os dias por esta hora, com os painéis publicitários tamanho descomunal, horrendos, que se postam à entrada do meu bairro, tapando-me a visão.
É que eu quero ver as flores dos canteiros, as senhoras que puxam os carrinhos de compras com os alhos franceses a sobrar, que nunca cabem, de compridos que são, os rapazes a passear os cães, as meninas com a mochila nova às costas, de mão dada com a mãe, a saltitar daquela maneira que só elas sabem, o sol do fim da tarde a meter-se por entre as folhas que ainda não caíram das árvores. Mas não, o cenário deplorável dos cartazes é que me enche os olhos, me fere, me entristece. Porque me fazem isto, seus energúmenos?
Há lá no entanto um cartaz com o qual eu simpatizo um pouco. Porque posso zombar dele. Porque confirma a inutilidade da sua existência imbecil e da dos outros todos, poluentes do espaço. Esse, envergonhado, infeliz, desgraçado, desbotado pelo sol implacável que cruzou este verão, bem feita, esse, diz desesperadamente, há meses, "Anuncie aqui".
Que vergonha.
Se pensam que vou lá anunciar a qualidade do meu café pingado, se pensam, podem tirar o cavalinho da chuva.
É assunto privado e iria comigo para a cova se eu não tivesse um blogue.
Como isto. Ontem à tarde, a meio da tarde de trabalho, levantei-me decidida a tomar um café pingado. Coisa inédita no meu rol de bebidas, café pingado.
O que me levou a cometer esta loucura desvairada, foi a vontade de tomar mais tempo a beber o líquido e assim prolongar a pausa, visto que o café pingado, pelo nome, promete comportar mais quantidade que o café normal.
Ora tenho a anunciar aqui, neste veículo informativo, que o café pingado da máquina do andar de baixo lá da empresa é mau. Muito mau.
Ainda tentei um segundo golo, cauteloso, deve ser de mim, é castigo por querer pausar por mais tempo, vai mas é trabalhar. Credo.
Confirma-se, este café pingado tem sabor a banha de porco podre.
Certifiquei-me de que ninguém assistia à mutação que se operou em mim, terei esverdeado por momentos, bolhas lilases ter-se-ão libertado dos meus cabelos, as tremuras que me subiram pela espinha terão terminado a enegrecer-me as unhas, ou coisa assim, quem te mandou, e deitei o resto da bebida fora. Às escondidas. Depois, de cabeça erguida, voltei para de onde não devia ter saído.
Ao regressar a casa no final do dia, ainda agoniada, admirada com o poder intoxicante do pedaço de leite em pó que pingou o café, dou de caras, como todos os dias por esta hora, com os painéis publicitários tamanho descomunal, horrendos, que se postam à entrada do meu bairro, tapando-me a visão.
É que eu quero ver as flores dos canteiros, as senhoras que puxam os carrinhos de compras com os alhos franceses a sobrar, que nunca cabem, de compridos que são, os rapazes a passear os cães, as meninas com a mochila nova às costas, de mão dada com a mãe, a saltitar daquela maneira que só elas sabem, o sol do fim da tarde a meter-se por entre as folhas que ainda não caíram das árvores. Mas não, o cenário deplorável dos cartazes é que me enche os olhos, me fere, me entristece. Porque me fazem isto, seus energúmenos?
Há lá no entanto um cartaz com o qual eu simpatizo um pouco. Porque posso zombar dele. Porque confirma a inutilidade da sua existência imbecil e da dos outros todos, poluentes do espaço. Esse, envergonhado, infeliz, desgraçado, desbotado pelo sol implacável que cruzou este verão, bem feita, esse, diz desesperadamente, há meses, "Anuncie aqui".
Que vergonha.
Se pensam que vou lá anunciar a qualidade do meu café pingado, se pensam, podem tirar o cavalinho da chuva.
É assunto privado e iria comigo para a cova se eu não tivesse um blogue.
11/09/2013
Pimentos amarelos
Ontem no caminho para casa depois do trabalho, parei no supermercado para comprar maçãs.
Enquanto caminhava em direcção às portas deslizantes, vejo que têm coladas nos vidros fotografias de maçãs verdes, em tamanho enorme, que boas devem ser, talvez as veja lá dentro, de verdade, ainda para mais com as gotas de água salpicadas na casca reluzente, a deslizar, agora enfiam-se dentro da porta fixa e lá vou eu.
Eu detesto, detesto profunda e genuinamente, fazer compras. De supermercado, de roupas, de sapatos, de farmácia, de coisas que não servem para nada, de perfumes, de chapéus de chuva, lá em casa consomem-se muitos não sei porquê, de cházinhos gourmet, de sabonetes, de lâmpadas, de papel de embrulho para o Natal, de espremedores de citrinos, detesto.
Com uma excepção, mas já lá vamos, ainda estamos a entrar no supermercado e ia eu a pensar.
Em detestando compras de tal maneira, não se compreende porque cruzo tantas vezes por semana as portas envidraçadas com maçãs verdes gigantes que no mês passado exibiam sardinhas prateadas também em tamanho familiar, postas por ordem, inteiras e não às postas, não confundamos os peixes, leve quatro pague três, ou não era aqui?
Gostava bem mais de quando lá tinham colados às portas os pimentos amarelos, de um tom torrado, tão bonito, em tamanho imenso, lá está, é a imagem de marca: produtos gigantes para alarmar os clientes, estimular-lhes a curiosidade. Ora os pimentos faziam lá melhor figura que os peixes de prata (como na canção, quem se lembra?) e as maçãs sugestivamente suculentas. Só não mordi um daqueles, porque as portas nunca deixaram, as egoístas.
Portanto, vamos lá outra vez, ontem entrei para comprar maçãs. Demorei-me apenas o tempo suficiente para encontrar produto cá da terra, pus-me na fila de pagamento que é sempre tão demorada que me faz bocejar muitas vezes por minuto enquanto leio as capas das revistas do escaparate de topo, ao lado das pastilhas elásticas, a contar os desfechos dos amores e dos ódios em vigor nas novelas, pago as maçãs, finalmente, e saio a tentar fintar as verdes, que são sempre mais rápidas, cá vou eu, boa tarde.
Sobre o mistério que me leva a ir tão frequentemente ao supermercado, não posso mais fazer que declarar que, por enquanto, não o resolvi.
O que resolvi foi voltar à loja de Moscavide no próximo sábado. Nessa loja nem sempre se fazem compras, e eu dessa gosto mesmo, ora oiçam.
Visitei-a quando precisei de um fecho de correr, novo, para a almofada das costas do velho sofá lá de casa. Enquanto esperava a minha vez, vejo aproximar-se do balcão um velho, um velhote, que segurava um saco de plástico azul dentro do qual estavam três lanternas, nenhuma funcionava, a combinação de pilhas não estava a dar certo. Precisava de uma delas, pelo menos, o senhor sabe como é, para à noite ir à casa de banho. O senhor sabia, reagrupou as pilhas, pôs-lhe uma lanterna a funcionar, não sei como fez, daqui não vejo muito bem, mas sei que não vendeu nenhuma pilha, nada, não foi preciso. O velhote que voltasse assim que a luz começasse a falhar.
A minha vez. Pedi um fecho novo, está a ver, deste comprimento, tem que se medir se faz favor. Menina, dê cá isso, o fecho está bom, eu vou ali e já venho e não precisa de fecho novo. Ele foi ali, ele voltou e eu saí da loja com o mesmo fecho e com vontade de lá ficar. Para ver como ia ele tratar os clientes seguintes. Se algum lhe conseguiria comprar alguma coisa, qualquer coisa.
No próximo sábado, está decidido, volto lá. O fecho da mochila da Mafalda está estragado, mesmo estragado, e eu quero ver como vai ser.
Depois, quando sair da loja de fechos de Moscavide, vou entrar numa livraria, uma qualquer. E só de lá arredarei pé com um livro. Meto-o na mochila com fecho novo, para testar o fecho e trazer o livro para casa.
Detesto fazer compras, com uma excepção. Não, duas.
Fechos de correr na loja de Moscavide e livros.
Enquanto caminhava em direcção às portas deslizantes, vejo que têm coladas nos vidros fotografias de maçãs verdes, em tamanho enorme, que boas devem ser, talvez as veja lá dentro, de verdade, ainda para mais com as gotas de água salpicadas na casca reluzente, a deslizar, agora enfiam-se dentro da porta fixa e lá vou eu.
Eu detesto, detesto profunda e genuinamente, fazer compras. De supermercado, de roupas, de sapatos, de farmácia, de coisas que não servem para nada, de perfumes, de chapéus de chuva, lá em casa consomem-se muitos não sei porquê, de cházinhos gourmet, de sabonetes, de lâmpadas, de papel de embrulho para o Natal, de espremedores de citrinos, detesto.
Com uma excepção, mas já lá vamos, ainda estamos a entrar no supermercado e ia eu a pensar.
Em detestando compras de tal maneira, não se compreende porque cruzo tantas vezes por semana as portas envidraçadas com maçãs verdes gigantes que no mês passado exibiam sardinhas prateadas também em tamanho familiar, postas por ordem, inteiras e não às postas, não confundamos os peixes, leve quatro pague três, ou não era aqui?
Gostava bem mais de quando lá tinham colados às portas os pimentos amarelos, de um tom torrado, tão bonito, em tamanho imenso, lá está, é a imagem de marca: produtos gigantes para alarmar os clientes, estimular-lhes a curiosidade. Ora os pimentos faziam lá melhor figura que os peixes de prata (como na canção, quem se lembra?) e as maçãs sugestivamente suculentas. Só não mordi um daqueles, porque as portas nunca deixaram, as egoístas.
Portanto, vamos lá outra vez, ontem entrei para comprar maçãs. Demorei-me apenas o tempo suficiente para encontrar produto cá da terra, pus-me na fila de pagamento que é sempre tão demorada que me faz bocejar muitas vezes por minuto enquanto leio as capas das revistas do escaparate de topo, ao lado das pastilhas elásticas, a contar os desfechos dos amores e dos ódios em vigor nas novelas, pago as maçãs, finalmente, e saio a tentar fintar as verdes, que são sempre mais rápidas, cá vou eu, boa tarde.
Sobre o mistério que me leva a ir tão frequentemente ao supermercado, não posso mais fazer que declarar que, por enquanto, não o resolvi.
O que resolvi foi voltar à loja de Moscavide no próximo sábado. Nessa loja nem sempre se fazem compras, e eu dessa gosto mesmo, ora oiçam.
Visitei-a quando precisei de um fecho de correr, novo, para a almofada das costas do velho sofá lá de casa. Enquanto esperava a minha vez, vejo aproximar-se do balcão um velho, um velhote, que segurava um saco de plástico azul dentro do qual estavam três lanternas, nenhuma funcionava, a combinação de pilhas não estava a dar certo. Precisava de uma delas, pelo menos, o senhor sabe como é, para à noite ir à casa de banho. O senhor sabia, reagrupou as pilhas, pôs-lhe uma lanterna a funcionar, não sei como fez, daqui não vejo muito bem, mas sei que não vendeu nenhuma pilha, nada, não foi preciso. O velhote que voltasse assim que a luz começasse a falhar.
A minha vez. Pedi um fecho novo, está a ver, deste comprimento, tem que se medir se faz favor. Menina, dê cá isso, o fecho está bom, eu vou ali e já venho e não precisa de fecho novo. Ele foi ali, ele voltou e eu saí da loja com o mesmo fecho e com vontade de lá ficar. Para ver como ia ele tratar os clientes seguintes. Se algum lhe conseguiria comprar alguma coisa, qualquer coisa.
No próximo sábado, está decidido, volto lá. O fecho da mochila da Mafalda está estragado, mesmo estragado, e eu quero ver como vai ser.
Depois, quando sair da loja de fechos de Moscavide, vou entrar numa livraria, uma qualquer. E só de lá arredarei pé com um livro. Meto-o na mochila com fecho novo, para testar o fecho e trazer o livro para casa.
Detesto fazer compras, com uma excepção. Não, duas.
Fechos de correr na loja de Moscavide e livros.
06/09/2013
A cena
Não me sai da cabeça, a cena, não sai. Anda a meter-se nos meus pensares, uma, duas vezes por dia, talvez mais.
Foi assim.
Era a hora de fazer o jantar e ter a televisão da cozinha ligada, a passar as notícias. Para lá não olho muito, é mais ouvir, mas quando vinha da despensa com a pimenta na mão e me posicionei de frente para o pequeno ecrã, vejo a cena. A tal que não me sai da cabeça.
Seis pessoas, dois homens e quatro mulheres, um incêndio que ameaçava as casas por ali. As chamas dançavam à frente deles os seis, nenhum era bombeiro. Tentavam, desesperadamente, vencer o fogo, disse o jornalista.
Os dois homens seguravam uma mangueira, a mesma mangueira, uma mangueira normal, das que se tem para regar o jardim.
As quatro mulheres carregavam baldes enormes daqueles de tinta, muitos litros lá cabem, muitos, e cheios de água, transportados por elas, cada uma com o seu, a verter água alguns, pelo caminho, uma escorregou, a outra ultrapassou-a, o fogo mesmo ali.
Um dos homens que seguravam a mangueira a apontar para o fogo, dava ordens às mulheres. Aqui, agora ali, mais para lá, deita mais aqui, olha aqui. E elas para cá, para lá, os baldes enormes, mesmo grandes, a água a saltar, a verter, elas a correr, escorregavam, continuavam, a água a lançar-se às chamas. Um e outro, quatro baldes à vez, depois oito, a mangueira a jorrar, muito bem segura por quatro mãos, mais para ali, mais para aqui e a cena mudou.
De volta ao estúdio e o pivot do jornal das oito retomou o ponto em que devia continuar. Parece que não viu a cena. Sobre a força silenciosa, obediente, das mulheres, nada disse, nada.
Talvez tenha perdoado aos homens, pelo horror da situação.
Eu acho boa ideia, perdoar.
Mas acho ainda melhor deixar aqui um abraço àquelas quatro mulheres, nunca mais as vou esquecer.
Foi assim.
Era a hora de fazer o jantar e ter a televisão da cozinha ligada, a passar as notícias. Para lá não olho muito, é mais ouvir, mas quando vinha da despensa com a pimenta na mão e me posicionei de frente para o pequeno ecrã, vejo a cena. A tal que não me sai da cabeça.
Seis pessoas, dois homens e quatro mulheres, um incêndio que ameaçava as casas por ali. As chamas dançavam à frente deles os seis, nenhum era bombeiro. Tentavam, desesperadamente, vencer o fogo, disse o jornalista.
Os dois homens seguravam uma mangueira, a mesma mangueira, uma mangueira normal, das que se tem para regar o jardim.
As quatro mulheres carregavam baldes enormes daqueles de tinta, muitos litros lá cabem, muitos, e cheios de água, transportados por elas, cada uma com o seu, a verter água alguns, pelo caminho, uma escorregou, a outra ultrapassou-a, o fogo mesmo ali.
Um dos homens que seguravam a mangueira a apontar para o fogo, dava ordens às mulheres. Aqui, agora ali, mais para lá, deita mais aqui, olha aqui. E elas para cá, para lá, os baldes enormes, mesmo grandes, a água a saltar, a verter, elas a correr, escorregavam, continuavam, a água a lançar-se às chamas. Um e outro, quatro baldes à vez, depois oito, a mangueira a jorrar, muito bem segura por quatro mãos, mais para ali, mais para aqui e a cena mudou.
De volta ao estúdio e o pivot do jornal das oito retomou o ponto em que devia continuar. Parece que não viu a cena. Sobre a força silenciosa, obediente, das mulheres, nada disse, nada.
Talvez tenha perdoado aos homens, pelo horror da situação.
Eu acho boa ideia, perdoar.
Mas acho ainda melhor deixar aqui um abraço àquelas quatro mulheres, nunca mais as vou esquecer.
04/09/2013
Avozinha
Estou com remorsos.
Disse, há dois posts atrás, que não morro de amores pelos e-readers ou livros electrónicos. Magrelos, insípidos, artificiais, esconderijos cínicos da leitura dos outros, etc, está bem, pronto, vou parar.
É que há tecnologia de que gosto mesmo muito, e isso é preciso esclarecer, não vá a minha amiga Marina voltar a dizer que estou uma avozinha.
Lembro-me por exemplo, assim sem pensar muito, dos correctores ortográficos. Essas maravilhas dos editores de texto que arrumam as letras que os meus ansiosos dedos trocam de lugar, não obedecem à minha mente que emite palavras em catadupa, e tal, mas correctíssimas aqui dentro do meu pensar. E que ficariam injustamente mal escritas, não fosse o corrector corrigir.
Portanto, a condição de avozinha ainda não está perto: gosto dos correctores ortográficos. Já me safaram de certos embaraços e isso é de louvar.
No entanto, já agora que viemos até aqui, vai o resto: uma ocasião houve em que o corrector não percebeu as minhas alegres intenções e não corrigiu.
Eu, por altura do Natal passado, desejei, por escrito, aos meus prezados contactos profissionais,
Um Ano Novo cheio de alergias.
E agora estou com remorsos.
Disse, há dois posts atrás, que não morro de amores pelos e-readers ou livros electrónicos. Magrelos, insípidos, artificiais, esconderijos cínicos da leitura dos outros, etc, está bem, pronto, vou parar.
É que há tecnologia de que gosto mesmo muito, e isso é preciso esclarecer, não vá a minha amiga Marina voltar a dizer que estou uma avozinha.
Lembro-me por exemplo, assim sem pensar muito, dos correctores ortográficos. Essas maravilhas dos editores de texto que arrumam as letras que os meus ansiosos dedos trocam de lugar, não obedecem à minha mente que emite palavras em catadupa, e tal, mas correctíssimas aqui dentro do meu pensar. E que ficariam injustamente mal escritas, não fosse o corrector corrigir.
Portanto, a condição de avozinha ainda não está perto: gosto dos correctores ortográficos. Já me safaram de certos embaraços e isso é de louvar.
No entanto, já agora que viemos até aqui, vai o resto: uma ocasião houve em que o corrector não percebeu as minhas alegres intenções e não corrigiu.
Eu, por altura do Natal passado, desejei, por escrito, aos meus prezados contactos profissionais,
Um Ano Novo cheio de alergias.
E agora estou com remorsos.
03/09/2013
A gaiola dourada
Sucumbi a tantas recomendações e fui ver "A Gaiola Dourada".
Bolas!!
Chorei que nem uma Margarida, como observou a minha filha, cujo historial de literatura consumida não inclui a bíblia.
Mais: a sala estava p'raí a sessenta por cento, o que nos tempos que correm e ao dia de semana, é notável.
Gostei muito, ri muito e, como já disse, chorei que nem uma Margarida.
E não me arrependi de ter sucumbido.
Bolas!!
Chorei que nem uma Margarida, como observou a minha filha, cujo historial de literatura consumida não inclui a bíblia.
Mais: a sala estava p'raí a sessenta por cento, o que nos tempos que correm e ao dia de semana, é notável.
Gostei muito, ri muito e, como já disse, chorei que nem uma Margarida.
E não me arrependi de ter sucumbido.
01/09/2013
Óculos vermelhos
Havia comboios que não circulavam, devido a obras na linha, e tivemos de esperar meia hora na estação até surgir a composição amarela e azul que nos levaria a Utreque, onde tencionávamos visitar o museu dos caminhos de ferro.
Esperámos ao sol num dos bancos de malha de metal preto, agradavelmente aquecido. Contra todas as previsões meteorológicas, hoje não choveu.
A viagem de comboio foi mágica, como sempre. Não apenas por desta vez ter o Erik por companhia, mas porque viajar de comboio é mágico, ponto final.
À minha frente sentou-se uma senhora mais entrada na idade que eu, mas ainda longe de idosa.
Mal se instalou, encavalitou os óculos de massa vermelha no nariz e, enquanto eu lhe seguia com muita atenção os movimentos, porque me interessa sempre sobremaneira o que fazem as pessoas no comboio, abriu o saco grande, castanho, que trazia.
Em lugar de sacar do seu e-reader para ler um livro electronicamente, como eu esperava e como vejo toda a gente fazer aqui nos países baixos, esta senhora de óculos vermelhos tira um livro de dentro da mala. Um livro verdadeiro, com folhas de papel autênticas, com capa colorida, um livro.
Aparentava também um certo avanço de idade, o livro, de tão usado, um pouco inchado, talvez orgulhoso. Várias folhas, aqui e ali, tinham os cantos dobrados, a marcar.
A dona dos óculos vermelhos desdobrou a última marca, a um décimo do fim, e começou a ler.
Torci-me em ângulos obtusos e agudos até conseguir ver o autor e o título do livro. Haruki Murakami, este foi fácil.
Falta o título. A ver se é o mesmo que eu li deste autor japonês, leitura que não admirei, mas também não desgostei, e assim talvez pudesse encetar um ou outro comentário com esta senhora, de tão contente estou por lhe ver o livro.
Mal consegui conter a curiosidade até, finalmente, num virar de página, o título. Norwegian wood. Hum, desconheço.
Ela lia, indiferente às minhas invasões observatórias. Estudei-lhe a expressão do rosto. Serena. Ausência de emoção. O que fazes tu, Murakami, que não levas a senhora a mostrar nada nadinha nem um leve arquear de sobrancelha, nem um retorcer de canto da boca, nada? Ela, que te dá ainda um lugar, não te enfiou numa coisa espalmada electrónica, sem cheiro, sem peso, sem cor, sem a ponta de interesse?! Ela, que exibe o teu nome a mim, aos outros passageiros e a toda a gente, que te respeita e te carrega no saco, que te dobra as pontas a marcar folhas, que não te misturou com outras quinhentas e setenta e nove obras reduzidas a uns quantos gigabytes?! Ah, esta senhora merecia mais, convenhamos!
Utrecht, Centraal Station, informa a voz no altifalante da carruagem.
Chegámos. Abandonámos o comboio, sem eu ter podido superar a minha cobardia, que me fez fingir total desinteresse pelo que a passageira à minha frente fazia ou sequer se lia. E apeei-me sem mais nada, que burra.
Podia ainda vê-la da plataforma, sentada no seu lugar. O comboio pôs-se em marcha, ela seguiu com o Haruki Murakami e a sua serenidade.
E eu segui com o Erik em direcção ao âmago de Utreque.
Enquanto caminhava distraidamente e quase era atropelada por várias bicicletas à vez, não fosse o Erik puxar-me ou empurrar-me, conforme, decidi que amanhã, quando chegar a Lisboa, compro uma versão traduzida para português de Norwegian wood, deve haver.
E vou lê-la no comboio, a ver se a serenidade vem sentar-se comigo. A ver a quantas folhas vou dobrar os cantos.
Mas antes disso.
Hoje à tarde, na cidade, comprei uns óculos vermelhos. Ficam-me tão bem.
Esperámos ao sol num dos bancos de malha de metal preto, agradavelmente aquecido. Contra todas as previsões meteorológicas, hoje não choveu.
A viagem de comboio foi mágica, como sempre. Não apenas por desta vez ter o Erik por companhia, mas porque viajar de comboio é mágico, ponto final.
À minha frente sentou-se uma senhora mais entrada na idade que eu, mas ainda longe de idosa.
Mal se instalou, encavalitou os óculos de massa vermelha no nariz e, enquanto eu lhe seguia com muita atenção os movimentos, porque me interessa sempre sobremaneira o que fazem as pessoas no comboio, abriu o saco grande, castanho, que trazia.
Em lugar de sacar do seu e-reader para ler um livro electronicamente, como eu esperava e como vejo toda a gente fazer aqui nos países baixos, esta senhora de óculos vermelhos tira um livro de dentro da mala. Um livro verdadeiro, com folhas de papel autênticas, com capa colorida, um livro.
Aparentava também um certo avanço de idade, o livro, de tão usado, um pouco inchado, talvez orgulhoso. Várias folhas, aqui e ali, tinham os cantos dobrados, a marcar.
A dona dos óculos vermelhos desdobrou a última marca, a um décimo do fim, e começou a ler.
Torci-me em ângulos obtusos e agudos até conseguir ver o autor e o título do livro. Haruki Murakami, este foi fácil.
Falta o título. A ver se é o mesmo que eu li deste autor japonês, leitura que não admirei, mas também não desgostei, e assim talvez pudesse encetar um ou outro comentário com esta senhora, de tão contente estou por lhe ver o livro.
Mal consegui conter a curiosidade até, finalmente, num virar de página, o título. Norwegian wood. Hum, desconheço.
Ela lia, indiferente às minhas invasões observatórias. Estudei-lhe a expressão do rosto. Serena. Ausência de emoção. O que fazes tu, Murakami, que não levas a senhora a mostrar nada nadinha nem um leve arquear de sobrancelha, nem um retorcer de canto da boca, nada? Ela, que te dá ainda um lugar, não te enfiou numa coisa espalmada electrónica, sem cheiro, sem peso, sem cor, sem a ponta de interesse?! Ela, que exibe o teu nome a mim, aos outros passageiros e a toda a gente, que te respeita e te carrega no saco, que te dobra as pontas a marcar folhas, que não te misturou com outras quinhentas e setenta e nove obras reduzidas a uns quantos gigabytes?! Ah, esta senhora merecia mais, convenhamos!
Utrecht, Centraal Station, informa a voz no altifalante da carruagem.
Chegámos. Abandonámos o comboio, sem eu ter podido superar a minha cobardia, que me fez fingir total desinteresse pelo que a passageira à minha frente fazia ou sequer se lia. E apeei-me sem mais nada, que burra.
Podia ainda vê-la da plataforma, sentada no seu lugar. O comboio pôs-se em marcha, ela seguiu com o Haruki Murakami e a sua serenidade.
E eu segui com o Erik em direcção ao âmago de Utreque.
Enquanto caminhava distraidamente e quase era atropelada por várias bicicletas à vez, não fosse o Erik puxar-me ou empurrar-me, conforme, decidi que amanhã, quando chegar a Lisboa, compro uma versão traduzida para português de Norwegian wood, deve haver.
E vou lê-la no comboio, a ver se a serenidade vem sentar-se comigo. A ver a quantas folhas vou dobrar os cantos.
Mas antes disso.
Hoje à tarde, na cidade, comprei uns óculos vermelhos. Ficam-me tão bem.
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