a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

01/09/2013

Óculos vermelhos

Havia comboios que não circulavam, devido a obras na linha, e tivemos de esperar meia hora na estação até surgir a composição amarela e azul que nos levaria a Utreque, onde tencionávamos visitar o museu dos caminhos de ferro.

Esperámos ao sol num dos bancos de malha de metal preto, agradavelmente aquecido. Contra todas as previsões meteorológicas, hoje não choveu.

A viagem de comboio foi mágica, como sempre. Não apenas por desta vez ter o Erik por companhia, mas porque viajar de comboio é mágico, ponto final.

À minha frente sentou-se uma senhora mais entrada na idade que eu, mas ainda longe de idosa.

Mal se instalou, encavalitou os óculos de massa vermelha no nariz e, enquanto eu lhe seguia com muita atenção os movimentos, porque me interessa sempre sobremaneira o que fazem as pessoas no comboio, abriu o saco grande, castanho, que trazia.

Em lugar de sacar do seu e-reader para ler um livro electronicamente, como eu esperava e como vejo toda a gente fazer aqui nos países baixos, esta senhora de óculos vermelhos tira um livro de dentro da mala. Um livro verdadeiro, com folhas de papel autênticas, com capa colorida, um livro.

Aparentava também um certo avanço de idade, o livro, de tão usado, um pouco inchado, talvez orgulhoso. Várias folhas, aqui e ali, tinham os cantos dobrados, a marcar.

A dona dos óculos vermelhos desdobrou a última marca, a um décimo do fim, e começou a ler.

Torci-me em ângulos obtusos e agudos até conseguir ver o autor e o título do livro. Haruki Murakami, este foi fácil.

Falta o título. A ver se é o mesmo que eu li deste autor japonês, leitura que não admirei, mas também não desgostei, e assim talvez pudesse encetar um ou outro comentário com esta senhora, de tão contente estou por lhe ver o livro.

Mal consegui conter a curiosidade até, finalmente, num virar de página, o título. Norwegian wood. Hum, desconheço.

Ela lia, indiferente às minhas invasões observatórias. Estudei-lhe a expressão do rosto. Serena. Ausência de emoção. O que fazes tu, Murakami, que não levas a senhora a mostrar nada nadinha nem um leve arquear de sobrancelha, nem um retorcer de canto da boca, nada? Ela, que te dá ainda um lugar, não te enfiou numa coisa espalmada electrónica, sem cheiro, sem peso, sem cor, sem a ponta de interesse?! Ela, que exibe o teu nome a mim, aos outros passageiros e a toda a gente, que te respeita e te carrega no saco, que te dobra as pontas a marcar folhas, que não te misturou com outras quinhentas e setenta e nove obras reduzidas a uns quantos gigabytes?! Ah, esta senhora merecia mais, convenhamos!

Utrecht, Centraal Station, informa a voz no altifalante da carruagem.

Chegámos. Abandonámos o comboio, sem eu ter podido superar a minha cobardia, que me fez fingir total desinteresse pelo que a passageira à minha frente fazia ou sequer se lia. E apeei-me sem mais nada, que burra.

Podia ainda vê-la da plataforma, sentada no seu lugar. O comboio pôs-se em marcha, ela seguiu com o Haruki Murakami e a sua serenidade.

E eu segui com o Erik em direcção ao âmago de Utreque.

Enquanto caminhava distraidamente e quase era atropelada por várias bicicletas à vez, não fosse o Erik puxar-me ou empurrar-me, conforme, decidi que amanhã, quando chegar a Lisboa, compro uma versão traduzida para português de Norwegian wood, deve haver.

E vou lê-la no comboio, a ver se a serenidade vem sentar-se comigo. A ver a quantas folhas vou dobrar os cantos.

Mas antes disso.

Hoje à tarde, na cidade, comprei uns óculos vermelhos. Ficam-me tão bem.

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