a voz à solta
29/03/2015
Magnólias em flor
É preciso portanto escrever para assinar a pintura do dia e tu sabes isso muito bem. Incompletos estão aqueles, já agora, e são tantos, em que não sobra hora nenhuma das vinte e quatro e ficam por rubricar. Despojados de autor, amontoam-se órfãos em peças de tempo a desfocar num passado que foge continuamente e que já não sei se foi nosso.
Não me encontrarás por certo rubricando discursos deitados a audiências sentadas, mas antes debruçada sobre o microscópio com prazeres oculares entregues pela penugem da pétala lilás da flor minúscula que estava no jardim. A estrutura da pétala parece impossível e feita de cristais de gel, que pena terei se um dia morrer e os meus olhos comigo.
É verdade que não me conhecem em cabeleireiro nenhum nem me interessa escalar montanhas das muito altas para me ter num limite extraordinário de céu, bastam-me as magnólias em flor nos pátios das casas à beira da estrada em Miranda do Corvo e a fechar este março, ou os três veados que estavam na madrugada das curvas da serra e não se retiraram mais que lentamente, nem respirei.
Como tu, estás a ver, ofereceram-me o cume que escalei tão alto sem querer; como tu, estás a ver, me dás num simples olhar tão cheio que assino à tua frente.
25/03/2015
Em silêncio
Foi debaixo do chuveiro que quis ficar a manhã na cama a ler, enquanto Bach enchia o quarto com tons suaves como pássaros acabados de nascer. Mas vesti-me, programei a máquina de roupa para lavar e saí para o trabalho.
Na rua, o sol recebeu-me num abraço que inventei mesmo a tempo de desejar que a luz cristalina deste março em flor me conduza à beira do rio para aí ficar a manhã a ler, sentada num banco de madeira pintado de verde. Mas depois de estacionar entrei no edifício onde trabalho.
À hora do almoço subi as escadas de onde se vê um quadrado de céu azul que espreita por entre os prédios feios para sempre, lembrei-me de me deitar na erva que cresce junto à água e deixar a tarde passar por mim e pelas páginas do livro, enquanto o rio dormita sobrevoado pelas gaivotas e pelas garças brancas que não sabem de nada. Mas não peguei no casaco e entrei na cantina.
Hoje há omelete, salada e sopa de feijão encarnado. Na televisão pendurada na parede do fundo, continuam a passar imagens do acidente aéreo de ontem e eu comi em silêncio.
No resto do dia saboreei o privilégio de estar viva.