29/03/2015

Magnólias em flor

Estaria a escrever em silêncio não fosse a lareira fazer a crepitação do costume, soar estaladiço que se eleva depois de os Pink Floyd me terem tocado num lado qualquer com as batidas fundas, sim sim, podem entrar, é por aqui se faz favor e eles entraram, sentaram-se, querem tomar alguma coisa quase perguntei, depois de os Pink Floyd, dizia, se terem calado de repente no fim de uma bateria das que precisam de carga e termina aqui o parágrafo, mas com pena.

É preciso portanto escrever para assinar a pintura do dia e tu sabes isso muito bem. Incompletos estão aqueles, já agora, e são tantos, em que não sobra hora nenhuma das vinte e quatro e ficam por rubricar. Despojados de autor, amontoam-se órfãos em peças de tempo a desfocar num passado que foge continuamente e que já não sei se foi nosso.

Não me encontrarás por certo rubricando discursos deitados a audiências sentadas, mas antes debruçada sobre o microscópio com prazeres oculares entregues pela penugem da pétala lilás da flor minúscula que estava no jardim. A estrutura da pétala parece impossível e feita de cristais de gel, que pena terei se um dia morrer e os meus olhos comigo.

É verdade que não me conhecem em cabeleireiro nenhum nem me interessa escalar montanhas das muito altas para me ter num limite extraordinário de céu, bastam-me as magnólias em flor nos pátios das casas à beira da estrada em Miranda do Corvo e a fechar este março, ou os três veados que estavam na madrugada das curvas da serra e não se retiraram mais que lentamente, nem respirei.

Como tu, estás a ver, ofereceram-me o cume que escalei tão alto sem querer; como tu, estás a ver, me dás num simples olhar tão cheio que assino à tua frente.

25/03/2015

Em silêncio

Foi debaixo do chuveiro que quis ficar a manhã na cama a ler, enquanto Bach enchia o quarto com tons suaves como pássaros acabados de nascer. Mas vesti-me, programei a máquina de roupa para lavar e saí para o trabalho.

Na rua, o sol recebeu-me num abraço que inventei mesmo a tempo de desejar que a luz cristalina deste março em flor me conduza à beira do rio para aí ficar a manhã a ler, sentada num banco de madeira pintado de verde. Mas depois de estacionar entrei no edifício onde trabalho.

À hora do almoço subi as escadas de onde se vê um quadrado de céu azul que espreita por entre os prédios feios para sempre, lembrei-me de me deitar na erva que cresce junto à água e deixar a tarde passar por mim e pelas páginas do livro, enquanto o rio dormita sobrevoado pelas gaivotas e pelas garças brancas que não sabem de nada. Mas não peguei no casaco e entrei na cantina.

Hoje há omelete, salada e sopa de feijão encarnado. Na televisão pendurada na parede do fundo, continuam a passar imagens do acidente aéreo de ontem e eu comi em silêncio.

No resto do dia saboreei o privilégio de estar viva.

22/03/2015

Ao lado da chávena vazia


Através da janela estou mesmo a ver que a árvore tem mais flores que ontem. São brancas e estão todas a olhar para mim.

Na lareira ardem os toros de lenha que vieram no inverno e o fogo nunca está quieto. Tentei fotografá-lo um dia, mas este plasma dançante não se deixa apanhar.

Abro a porta envidraçada e saio para o terraço onde numa noite de verão ouvi os javalis e a lua não apareceu.

Sento-me e tomo o chá sem ti, como combinámos. Não está frio e ouvem-se todos os pássaros. Eles sabem de certeza que o sol desceu com muito jeitinho durante o equinócio, em fascículos pequeninos, e se deitou em cada pétala de muita flor, olha ali. Também já foi plasma dançante, este, que é estelar; agora fixou-se para mim e para ti na risca do amarelo. Não está vento.

A leitura de Dostoievski tempera-me os neurónios com especiarias irresistíveis e está a mudar a pessoa que fui. Talvez até não volte a escrever. Nem sequer sei se isto é escrever. São débitos prováveis de espasmos primaveris, convulsões tolas vindas de dias vazios, passados, dias em que depositei a solidão do meu interior árido, um deserto. Entretanto apareceste, dir-me-ás. Porém, o chá tomo-o sem ti.

Direi então que não quero sujar de palavras soltas, desgarradas, mal cosidas, iguais, ocas, baças, frias, às vezes melosas, irritantes, palavras compradas à socapa na feira da candonga e metidas num saco de plástico velho, azul, trazidas para casa aos solavancos, palavras tristes como as minhas num mundo onde se lê Dostoievski. Demasiado belo. Nem sei se peça perdão em surdina, se saia de mansinho.

Mas por hoje ficarei aqui, siderada, sentada no terraço ao lado da chávena vazia, a ouvir os pássaros, a contar as flores brancas que chamaram por mim e a sonhar sem ti.

Que pena ter nascido tão tarde.
  
(antigamente fazia um vistão a recusar sacos de plástico nas livrarias por causa do ambiente, hoje faço figura de fuinha, sempre são três cêntimos que eles custam na Bertrand e isto há que dizê-lo)

19/03/2015

Fato-macaco azulão-oficina ou resmas de papel

Não acontece todos os dias, mas esta manhã estou junto à impressora central a olhar através da janela e o rre rre rre da máquina conduz-me a um estado de semi-transe, muito bom para me elevar a pensamentos magníficos, não fosse sentir atrás de mim alguém à espera de vez. Encostado ao armário onde se arrumam coisas que eu nunca vi, está o João, olá João, isto vai demorar.

- Não faz mal, eu espero – o meu colega encolhe os ombros e sorri ligeiramente.

Depois eu disse uma coisa muito engraçada da qual já me esqueci mas o João não respondeu, está noutra onda e eu torno a mergulhar na minha.

Não é costume acontecer algo absolutamente notável perto das impressoras centrais, nem mesmo junto a estas com acesso à contemplação de muito cimento feio e carros estacionados. Mas hoje veio-me à memória a única ocorrência quase de registo junto a uma máquina destas, não exactamente destas, uma sem códigos de utilizador e com tchklheqe tchklheqe tchklheqe em vez de rre rre rre, que isto foi andava eu nos vintes e agora ando muito à frente.

Não me lembro quem chegou primeiro, se eu se ela, e nem me lembro qual era o seu nome. Sei que envergava um fato-macaco de um azulão-oficina, a fazer doer os olhos, requisito obrigatório nas aulas práticas a que andava a assistir, mulher forte e única num curso de homens, morena, mexicana, e vou eu então estás a gostar disto, de Lisboa, do curso, te gusta, eu sou simpática se me apetecer, a moça há-de rondar a minha idade, ela a responder, sí me gusta, nada como o João, nem havia ali um armário, era um corredor vazio, a máquina, a mexicana e eu. E de repente:

- No me gustan los hombres.

- Ai não?! – eu, penso que a dar um pequeno, imperceptível, passo atrás. Não me consigo lembrar do nome dela, seria Consuelo, foi há tanto tempo.

- No. Solamente me gustan los maduros.

- Maduros?! O que é isso? – dado que me pareceu interessante a categoria “maduros”, fosse lá isso o que fosse, creio que repus o pequeno, imperceptível, passo em frente.

- Maduros, viejos. Hombres viejos. Mira. - e faz com as mãos como se indicasse um cabelo grisalho, não sei como conseguiu, mas fez.

- Ah bom! São giros, são. Por acaso também acho, seguro que sim! - apareceu-me um sorriso parvo, aliviado, saído especialmente para a ocasião.

Depois desfiz o meu código de utilizador, que tem encriptadas as datas de nascimento das minhas filhas, não vá algum gatuno apetecer-lhe gastar resmas de papel em meu nome, e voltei-me para trás.

- Pronto, João, já podes.

17/03/2015

Cadeiras de conversar

Eram onze horas quando me apercebi de que estava com saudades da minha mãe, já não falamos há séculos. Interrompi o relatório, levantei-me da secretária, fui à copa e, enquanto o café corria e depois o bebi, telefonei-lhe. Contou-me logo umas sete coisas diferentes de vários outros membros da família, ai filha não te quero empatar, como foi o teu fim de semana, sabes a Ana e o Tiago estão em Florença, os miúdos sozinhos, dois homens e meio e um cão, depois ri-se da graça dela, a minha mãe às vezes tem graça, dois homens e meio e um cão, e duas tartarugas acrescentei eu, de maneira que depois de desligar convidei os dois homens e meio que são os meus sobrinhos para jantar. Isto fez o meu dia, que passou a ser feliz (nunca me sinto feliz no trabalho).

Mas agora os dois homens e meio já foram para casa, o mais velho já leva o Qashqai e eu está-me a parecer que não sei escrever Qashqai, as miúdas foram dormir, mãe levas-me amanhã à escola, levo filha, arruma os sapatos, dorme bem, retomo o silêncio que tinha despido ao chegar a casa, é um fato inteiro que preciso de vestir todos os dias, o silêncio, adapta-se a qualquer estação do ano, serve-me tão bem, às vezes põe-me à frente de um livro mas hoje sentou-me aqui. E deixa-me ouvir o tique taque do relógio que a minha filha me ofereceu, que está em cima da mesa e que marca dez horas e quarenta e quatro. É cedo.

Tão cedo que, se ainda estivesses aqui, sentávamo-nos nas cadeiras de conversar e ficávamos até às quatro da madrugada a tecer os encantos da vida e a arrumar os medos no lugar, a ordenar as coisas importantes e a rirmo-nos das parvas, fumavas o teu cigarro, até fumavas muitos, contavas histórias da tua infância, eu bebia as palavras saídas quentes dessa tua voz que ainda sei ouvir, dobrava-as para as meter nas gavetas dos assuntos, às palavras, que dobradas cabiam mais. E foi naquela vez em que eu ia ter exame oral no dia seguinte, tinha que defender ou subir a nota, e eu até a queria subir, nunca te contei, conto agora, não a subi mas consegui mantê-la, porque na conversa que tivemos até às quatro da madrugada disseste lá pelo meio, na tua voz que me parecia música, disseste com palavras que arrumei no baú dos tesouros, disseste que eu sou uma boa ouvinte, Pai.

(Se não fosse ter lido isto há dois dias, não me tinha sentado agora com a memória do meu pai nas cadeiras de conversar. Obrigada, Uva.)

14/03/2015

Na próxima sopa

Em geral, não gosto da música de Vivaldi. Nem do Claire de Lune de Claude Débussy, o que na verdade me espanta. A primeira instiga-me a correr para apanhar o comboio até cair para o lado e a segunda lembra-me um carapau morto, cozido, com um olho a contemplar o infinito, no meu prato.

A primavera está a chegar em cada árvore, a umas mais cedo que a outras, a umas vestida de branco a outras enfeitada de rosa, está a chegar nos aromas que perfumam o ar, na luz cintilante que atravessa o céu enquanto o pinta de azul, de maneira que não estou a ver por que razão me deu hoje para isto do não gosto e assim.

Ontem ao almoço, estava o estagiário sentado à minha frente a comer a sopa na cantina. Observei-o. O punho encostado à mesa e as costas curvadas por forma a chegar a boca à colher, que não subia muito. Hesitei: corrijo, não corrijo. Ele tem idade para ser meu filho.

Não conheço a história da Alice no país das maravilhas, porque das duas vezes que a tentei conhecer, levada certamente pela minha mãe, ao cinema ou mesmo ao teatro, adormeci logo no início. Uma grande seca.

Corrigi o estagiário num dos primeiros dias, quando ele me apertou a mão a olhar para o ar à procura de borboletas coloridas que não têm o hábito de aparecer por ali, entre as paredes cinzentas do feio edifício onde trabalho. Ensinei-lhe que quando se cumprimenta alguém com um aperto de mão, deve olhar-se-lhe nos olhos. Aprendeu, mostra-me todos os dias que sim.

Não gosto de pintura surrealista, Salvador Dalí faz-me lembrar os pesadelos da infância, quando eu podia muito bem encontrar-me com um polvo numa rocha e o polvo arrancar-me uma perna, pendurando-a de seguida no ramo de uma árvore morta, onde também se pode ver um relógio a derreter sob um calor tórrido, imaginário, e a caveira de um veado ao fundo.

- Sabe por que razão, se deixadas ao ar, uma carcaça de pão fica dura enquanto que uma bolacha Maria fica mole? – faço a pergunta ao estagiário, enquanto ele come a sopa e eu pego no pão que tinha no tabuleiro, a ver se estabeleço conversa de jeito com o miúdo, é um miúdo, de facto.

- É do fermento – respondeu, a meio da pergunta, antes de eu mencionar a bolacha Maria.

- É do fermento – repetiu, no fim da pergunta, depois de eu a ter formulado segunda vez para que ele a ouvisse completa.

Mas logo a seguir encolheu os ombros, sei lá, disse.

- Pense.

O estagiário não pensou e não se mostrou interessado na resposta, quando eu lha dei.

Acho que lhe vou corrigir a posição na próxima sopa, mas não antes de lhe repetir a pergunta.

12/03/2015

Um bug nojento

No habitual bar da praia jantámos. A Teresa toda a gente conhece, a mim ninguém.

Comi um hamburguer normal, não sei como se chamam hoje em dia os hamburgueres fora da categoria gourmet ou não provenientes de cadeias internacionais de franchising. Este era normal.

A Teresa bebeu um gin que foi servido num determinado copo e eu um mero e absolutamente também normal copo de vinho tinto, bem servido que estava, isto porque na verdade cortava-nos um frio de março e cerveja com frio nem que fosse de maio, não.

Tanto que desenrolei o meu lenço tipo écharpe de meia estação e abri-o sobre os ombros deixando a Teresa descobrir que não só há torres eiffel em diferentes posições no lenço, como também arcos do triunfo e isso é que eu não sabia dos arcos do triunfo. Avisei a Teresa que este lenço foi a minha mãe que trouxe de souvenir de Paris e eu adoro-o assim piroso, gosto muito de coisas fora de moda, aliás a moda não é mais que um assunto aborrecido, na medida em que tenho dificuldade em comprar jeans sem manchas e que venham inteiros, normalmente já querem vir rotos e isto não passa de um exemplo. Voltemos ao gin.

O copo da Teresa é do tipo balão esférico e eu estava habituada aos gins do bar do Peter onde os copos eram altos e esguios (não sei se ainda são). Isto causou-me um certo espanto.

- Esse copo faz-me lembrar um aquário.

- Agora são assim – a Teresa sabe, no bar todos a conhecem – e não só são assim como há todo um novo conceito em redor do gin, pode adicionar-se uma flora considerável e colorida, agora bebo sempre gin.

Mas este só tem um batalhão de pedras de gelo, a flora não está.

- Porque é que o Xilre fechou o blogue? – a Teresa lê blogues muito bons.

- Não sei. Mas hoje quando dei com o nariz naquela porta, fiquei triste. Espero que não passe de um bug nojento que se meteu ali. Ele não fecharia o blogue assim de repente, impossível.

No caminho para casa, vinha a urdir um plano rocambolesco, a escrever mentalmente um post de fazer chorar as pedras da calçada a ver se trazia o Xilre de volta, mas o que é isto, olha olha, nem pensar, não podemos ficar sem a nossa enciclopédia, sem o mural de arte e cultura, sem aquele deslizar de pena em sintonia com os anjos, sem a literatura recortada dos melhores autores, sem a minha esperança de um dia aprender a ler poesia como gente grande, tudo isto tirei da parte que ia fazer chorar as pedras da calçada e que afinal já não foi preciso.

Quando cheguei a casa vi que o bug nojento tinha sido exterminado.

Obrigada, Xilre.

10/03/2015

Muito depois da morte de Ricardo Reis

Por vezes as coisas que leio trazem semente. Principalmente na primavera, como agora, entram na terra que me habita, aconchegam-se comigo no sono, germinam e dão nisto.


Saí do trabalho e não precisei de meter a culpa na mala, ela já saltou lá para dentro, vamos para casa juntas. Conhece-me de todas as formas, acompanha-me as variações em crista, pontos altos de onde caí com vertigens e baixos dos quais subimos em lágrimas.

Por isso decidi, antes de ir para casa, passar no futuro à tua procura. A fintar o tempo para que não fuja, dobrei o espaço para saltar de frente, pesado, tão pesado. No entanto, sei bem onde te encontrar.

Cheguei já a noite vestira o dia de lua cheia de fogo. Não se vê ninguém na estrada que segue deitada na margem do rio e começo a caminhar. Oiço um borbulhar que vem da fina ondulação da superfície da água, brinca com a parede da margem, sussurra-me palavras repetidas que não distingo, onde estás? Ao fundo, o contorno de um banco de madeira virado ao rio.

Não estás. Está só esta pedra branca entre as ervas do chão. Baixo-me, apanho-a. A pedra é leve, muito leve, não é pedra. Desembrulho-a e, à luz do luar púrpura, leio assim.

Dizes que alta a lua quê
- Que brilha tanto toda
Dizes, em cada lago e assim
Não sabes de poesia outra

Mas te digo eu nada,
nem meia brilha, ela ri
não é de tu mas de eu sim
de tanto subir que depois caí

Dizes que alta a lua quê
- Digo que alta brilha sim
E eu que vermelha mas não de ti
Eu que do sangue que sai de mim

Levantei os olhos do papel cheio de vincos e olhei em frente. Sentada no banco de madeira está afinal alguém. Tem a minha cara nas mãos. Alguém que curva os meus ombros, que usa o meu cabelo em branco, alguém que me deixa a mim, daqui, ver o teu bilhete purgar-lhe o coração. Mas só a parte que a culpa não comeu.


Acordei de um salto. Depois levantei-me e fui escrever-te esta carta, antes que o tempo fuja e nunca me traga o teu perdão. 

(sim, aquele pseudo-poema mal amanhado inspira-se em Ricardo Reis, talvez fosse de aproveitar e pedir perdão por isso também)

05/03/2015

Para não derreter as peças

Hoje estava imbuída de uma animação especial para o final do dia, que era vir aqui ao blogue escrever coisas muito inteligentes sobre o conteúdo do jornal Público comemorativo, situação para encantar as massas, mas eis que houve alguém que se me adiantou e eu assim tanto não seria capaz, problema meu, verdade, portanto como estou aborrecida vamos ao museu de cera bocejar até mais não.

Ai não?...

Então que se faz precisamente num museu de cera, pode saber-se? Reflictamos lá honestamente para que serve um uáááá (eu não disse?) museu com bonecos de cera do tamanho uáááááááááá (disse) de pessoas crescidas?

Foi precisamente quando a meia solha que me foi dada a comer hoje ao almoço estava estendida, toda espalmadinha, no meu prato à espera que eu me inspirasse para o ataque, que dou conta de que estou embasbacada a olhar para a televisão pendurada na parede do fundo da cantina (hoje cheirava a bifes de porco), ai meu deus que é isto, dou conta de que o ministro grego das finanças veio a público já diversas vezes desmentir repetida e veementemente a crença que eu tinha sobre os gregos serem todos feios.

- Este grego é giro – quem estava ali perto até pôde ouvir-me dizer isto, a mim, uma mãe de família agastada pela solha a cheirar aos bifes de porco que os meus colegas mastigavam com dificuldade apesar de tentarem disfarçar. E, já agora, não custa nada acrescentar, aposto que pela cabeça inteligente da Lagarde, entre uma transformada de Laplace e uma série de Fourier, o mesmo pensamento também já passou.

Não interessa.

O que interessa é que os museus de cera são totalmente inúteis.

Mas eu não deito fora uma coisa destas, instituição com tantos anos de experiência e implantação em países de respeito - até confesso com certo rubor na face que já me viram num Madame Thussauds quando eu era muitíssimo nova, novíssima - não deito a ideia fora, dizia, sem apresentar uma solução cabal para o problema (em quase trezentos posts deste blogue nunca tinha escrito cabal), ou seja, não atirar para o desemprego quem se dedica a manter a temperatura das salas suficientemente baixa para não derreter as peças, a limpar-lhes o pó aos cabelos ou a vender os bilhetes aos visitantes.

O investimento gasto nesses museus havia de ser aplicado em instituições para abrigar e acompanhar quem sofre de violência doméstica e não sai de casa porque não tem para onde ir. Mas não só. Uma fatia havia de se destinar a acompanhar e tratar os agressores. Só assim se toma o assunto com seriedade. E ainda se dava trabalho a uma valente equipa de psicólogos e outros profissionais de apoio. Era o que eu queria.


E depois suspirei e pus-me a ouvir isto.

04/03/2015

Tapete rolante que todos conhecemos

Na próxima quinta-feira vou comprar o jornal Público. Em papel.

Hoje, que desde manhã tem sido terça, uma terça triste, fui almoçar ao centro comercial. No átrio onde estava a caixa multibanco de que me servi, apanhei em cheio com um cheiro doce e morno, era o mesmo cheiro do apartamento que tínhamos em Barcelona no Verão em que o Chiado se incendiou. Foi lá que lemos a notícia no jornal. Lembro-me de estar deitada na praia de Castelldefels, debaixo do chapéu de sol, a ler que a cidade branca - estava assim Lisboa referida - estava em chamas. A minha irmã mais velha andava a ler “Cem Anos de Solidão” do Gabriel García Márquez, o livro estava ali ao lado do jornal, vejo-o daqui. Por trás de nós, nesse final de tarde, como em quase todos os desse Agosto, os peixes saltavam na água que não tem maré. Nunca mais, desde então, tinha encontrado o cheiro catalão daquele apartamento. Por isso, deixei-me estar no átrio do centro comercial a aspirar as memórias. Foi o melhor momento do dia.

Ao fim da tarde parei no supermercado um bocadinho antes de começar a aula de dança. Meti nos minutos que me faltavam dois pães, oito iogurtes naturais, muitas maçãs, talvez onze maçãs, compro sempre número ímpar de maçãs, dois litros de leite do dia e nenhumas bananas, falhou-me a lista com as bananas. Já na caixa, vejo à minha frente um homem novo baixar-se para retirar as coisas do seu cesto a fim de as colocar no tapete rolante que todos conhecemos e vejo a camisola dele subir e as calças descerem. Não gosto de ver pessoas exporem-se assim, novas ou velhas, portanto olhei para a revista que estava no escaparate a descair para a direita, as revistas nunca se aguentam bem nos escaparates, e li que a actriz de novelas que morreu recentemente aos quarenta anos, se suicidou por causa da violência doméstica. Concentrei-me para não deixar o nó da garganta passar às lágrimas, que têm andado perto, olhei para o rosto dela, achei-o tão bonito, acho sempre que as pessoas bonitas são felizes só por serem bonitas, mas não é verdade.

À noite, antes de ir para a cama, a minha filha perguntou-me se estou triste. Não lhe menti. E disse-lhe também que as pessoas bonitas nem sempre são felizes.

A quarta-feira já chegou. Amanhã vou comprar o jornal Público. Em papel. Talvez seja o melhor momento do dia.

01/03/2015

Entrou que nem ginjas, caraças

Fazer a aproximação a Lisboa pela A1 é uma experiência que me agudiza, me excita aos píncaros o desejo, até ao momento secreto, de me tornar ministra da cultura, parece-me a cultura ser o pelouro mais adequado, se é que há pelouro para isto.

O efeito do mau gosto holístico de que padecemos como povo está patente em quase todo o lado, como se sabe. Está certo que a pala do pavilhão de Portugal ali à beirinha do rio Tejo é coisa única, um orgulho, o edifício do Tomás Taveira erguido na avenida de Berna a invocar a guitarra portuguesa também, uma pena ter deixado de dar jeito falar no Tomás Taveira. Ah! E temos a ponte 25 de Abril. Não sei se me estou a esquecer de alguma coisa, a Gulbenkian também conta, evidentemente, mas tirando os monumentos manuelinos, barrocos e afins, acho que está tudo. Isto no que respeita a Lisboa, claro.

Mas se de repente alguém ai não, não pode ser verdade, um povo tão acolhedor, que simpático, afável, boa comida, sol e mar e tudo, mau gosto não combina, se alguém assim, todo boa fé na gente, quisesse num ápice ver como é, eu digo que é por aqui se faz favor. Por um ramal de acesso da A1, direcção cidade branca, avançamos com muita atenção, podemos até levar a boa fé no colo, seguimos com cautela pela faixa da direita apesar de não haver por ali berma mas isso perdoa-se, pronto, e depois preparemo-nos; a páginas tantas, o rodado segue ligeiro, ou pesado, para o efeito tanto faz, a páginas tantas, vamos lá, pimba na população infernal de cartazes publicitários do tipo gigantones pernetas, cada um a querer ser mais alto que o outro, nem consigo interromper este parágrafo tão lançada vou, cena patética a saltar-nos para cima implorando que lá se ponha um anúncio, aqui! aqui!, alguns descorados pelo sol, os que vêem sol, já estou a tentar travar, os números de telefone que ostentam em font Arial tamanho (a partir de) um milhão quatro mil oitocentos e trinta e cinco, eh pá não se aguenta. E o pimba nem precisei de o meter ali a martelo, entrou que nem ginjas, caraças.

Mas há a internet, não há? há muitos sítios bons para publicitar, p-u-b-l-i-c-i-t-a-r. O Youtube, por exemplo. Abrimos um Beethovanzinho, um Chopinzinho, e pimba com uma coisa do Pingo Doce, segunda feira é o robalo, abrimos o sítio do banco para pagar as contas e pimba com ideias para créditos ao consumo, vamos ao dicionário ver uma palavra e levamos com os ténis Adidas, abrimos o jornal para ler como vai o mundo e nem se consegue ver nada com as frutas do Continente em promoção, mexem tanto que põem uma pessoa tonta enquanto dura a procura da cruzinha rápido rápido para fechar aquilo. Mas isto pronto, uma pessoa ainda vá.

Agora Lisboa tratada assim… receber-nos com uma floresta patética de publicidade falhada, uns atrás dos outros, o mau gosto a reinar, pois dói. Dói e repito, excita-me aos píncaros o desejo de vir a ser a ministra certa.

Resta-me, portanto, começar a recolher assinaturas.


E depois?! Depois, já em casa, refiz-me. Arregacei as mangas e fui fazer um jantar magnífico. Courgettes salteadas com maçã reineta não parece pois não? Mas foi.

(só em itálicos, este post custou uma fortuna)