Estaria a escrever em silêncio não fosse a lareira fazer a crepitação do costume, soar estaladiço que se eleva depois de os Pink Floyd me terem tocado num lado qualquer com as batidas fundas, sim sim, podem entrar, é por aqui se faz favor e eles entraram, sentaram-se, querem tomar alguma coisa quase perguntei, depois de os Pink Floyd, dizia, se terem calado de repente no fim de uma bateria das que precisam de carga e termina aqui o parágrafo, mas com pena.
É preciso portanto escrever para assinar a pintura do dia e tu sabes isso muito bem. Incompletos estão aqueles, já agora, e são tantos, em que não sobra hora nenhuma das vinte e quatro e ficam por rubricar. Despojados de autor, amontoam-se órfãos em peças de tempo a desfocar num passado que foge continuamente e que já não sei se foi nosso.
Não me encontrarás por certo rubricando discursos deitados a audiências sentadas, mas antes debruçada sobre o microscópio com prazeres oculares entregues pela penugem da pétala lilás da flor minúscula que estava no jardim. A estrutura da pétala parece impossível e feita de cristais de gel, que pena terei se um dia morrer e os meus olhos comigo.
É verdade que não me conhecem em cabeleireiro nenhum nem me interessa escalar montanhas das muito altas para me ter num limite extraordinário de céu, bastam-me as magnólias em flor nos pátios das casas à beira da estrada em Miranda do Corvo e a fechar este março, ou os três veados que estavam na madrugada das curvas da serra e não se retiraram mais que lentamente, nem respirei.
Como tu, estás a ver, ofereceram-me o cume que escalei tão alto sem querer; como tu, estás a ver, me dás num simples olhar tão cheio que assino à tua frente.
"Despojados de autor, amontoam-se órfãos em peças de tempo a desfocar num passado que foge continuamente..."
ResponderEliminarQue delicia , Susana! Nem Kierkegaard, esse sacana, diria melhor quando defendia que os dias só pode ser compreendidos olhando-se para trás.
Abraço
Muito obrigada, JM! :-)
Eliminar(claro que tive de ir ver quem era esse rapaz Kierkegaard...)
Abraço e boa semana.
Querida Susana,
ResponderEliminarApetecia ver uma dessas suas pinturas a ilustrar este texto tão bonito.
Beijo,
Outro Ente.
Se eu tivesse jeito para fotografia, punha aqui umas poucas, punha, mas a penugem da pétala saiu tão desfocada... :-).
EliminarBem-vindo, Outro Ente! E um beijo de volta.
Susana, este texto é mesmo bonito, tal como o anterior, em que também falavas das coisas simples, continuas a falar das coisas simples, das coisas simples que nos põem no cume da montanha mais alta, "...num limite extraordinário de céu". Quem me dera ter tido um encontro igual ao teu, poder ver logo três veados, tenho um fraquinho por esses animais, têm uma elegância que me faz embasbacar. Concordo tanto contigo, às vezes a vida oferece-nos o cume de uma montanha de mão beijada, sem termos feito nada para lá chegar. O meu olhar passou por aqui, isso do cheio é da tua responsabilidade ;), vou assinar :)
ResponderEliminarCláudia
Beijinhos Susana
Muito obrigada, Cláudia. É um prazer ler os teus comentários, não só aqui como nos outros blogues. Acrescentas sempre qualquer coisa, enriqueces os posts por onde assinas. :-)
EliminarBeijinhos. (se eu pudesse, dizia-te como veres os veados, não é difícil)
As magnólias não são nada simples :)
ResponderEliminarNada mesmo, Cuca. Mas eu hei-de ter uma, ai hei-de. E depois, no princípio de Abril, sento-me em frente a ela a escrever um post magnífico. :-)
EliminarVou de olhar cheio, Susana, do teu jeito de colocar as palavras.
ResponderEliminar[se aqui tivesse alguma foto de magnólias, enviar-te-ia uma, pena minha não ter]
Muito obrigada, Maria.
EliminarAs magnólias gostam de lugares mais frios, não se dão muito no teu Sul, pois não? :-)
Pintura perfeita.
ResponderEliminarBeijo de boa noite, Susaninha. :)
Obrigada, Maria!
Eliminar(não tão perfeita, porém, como um Manuel Amado).
Beijo de boa noite. :-)