a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

28/06/2017

Carga de água parece um bom título

A tarde instalou-se numa tranquilidade plana a perder de vista como se costuma dizer, ou pelo menos a minha mãe costuma dizer (mas não foi hoje). Contemplo o movimento oscilatório do barco relativamente à firmeza de solo onde pasta uma pluralidade de vacas. Eu estou sentada na linha de transição de estado a deixar-me hipnotizar pelo movimento já referido, penso em como é tudo tão mais lento quando se está num barco e depois lembro-me de Herberto. Ele escreveu que um poeta estava sentado na Holanda contemplando vacas, se não foram estas as palavras que usou, são estas as que uso eu. E é agora que toca o meu telefone. Atendo o número, que desconheço, mas de Portugal nunca se sabe, estou sim? Do outro lado uma voz masculina pergunta se sou eu que aqui estou, sou. E depois diz que fala do banco Fixtín.
Não percebi bem o nome do banco, Fixtín?, e pergunto: como disse que se chama o banco?
- Fixtín, minha senhora – mostrando indignação, continuou – tem aparecido publicidade nossa em horário nobre na televisão e na rádio!
Continuei a perceber Fixtín e abstive-me de o inteirar, a este senhor que interrompe a contemplação em que eu estava mergulhada, sobre os meus parcos hábitos de televisão e, ultimamente, também de rádio. Entretanto já vai ele lançado a explicar-me aquele aborrecimento sobre ir ser gravada a chamada, quando eu esclareço, para poupar tempo, que não preciso de mais bancos, que já tenho o suficiente relativamente a bancos e contas, muito obrigada, uma boa tarde e…
- Mas eu não venho falar-lhe de contas!!!!, eu venho falar-lhe de um cartão!!!!!!
- Mas cartões eu também já tenho e boa tarde e…
- Mas este é um cartão grátis!!!!! GRÁ-TIS!!!!! Não tem anuidade, não paga nada, minha senhora!!
Esta é a parte em que me seguro para não lhe dizer que “não sou a sua senhora”, mas ele continua, provavelmente sem parar para respirar.
- E, para além de ser GRÁ-TIS tem!! ainda!!! até 70%!!!! 70%!!!!! de descontos nos nossos parceiros!!!!!
- Muito obrigada, eu não estou interessada, desejo-lhe de novo uma boa tarde, com sua licença.

Ele emitiu qualquer coisa com maus modos, como se eu o tivesse ofendido. Mas na verdade a ofendida fui eu. Por que carga de água iria eu – ou alguém com mais de seis anos de idade – acreditar nestas investidas enganosas camufladas de incentivos ao consumo que de qualquer maneira é desnecessário?

Mas retomo a contemplação a tempo de ver uma das vacas voltar-se e começar a afastar-se de mim.


(eu ia mostrar as vacas dessa tarde de há dois dias ou três, que fotografei, mas pareceu-me mais interessante, ainda que de qualidade duvidosa, pôr aqui a carga de água já que falei nela - e esta é de agora mesmo)


21/06/2017

Muita caralhão!

Tenho uma relação esquisita com os balcões da carne e do peixe inseridos num supermercado, que os outros não é costume visitar. Ou gosto ou não gosto. Os da carne não me agradam à vista, quer dizer, não me agrada imaginar comê-la, dá-me arrepios os coelhos. Os do peixe demoram imenso porque há amanhar o dos outros fregueses que chegaram antes de mim e eu espero e vou olhando, vou olhando o peixe. E disto gosto, é esquisito.

Pedi robalos como se fossem bons, naturais e selvagens, arranja-me estes robalinhos, se faz favor? pedi lombos de bacalhau fresco que hoje havia-os e pedi só mais uma coisa, filetes de peixe espada preto, quer que tire a pele, menina?, não, deixe ficar a pele, a gente tira no prato. Mas olhei para o cherne às fatias. Cherne. O cherne é estupidamente caro. Como diria a minha irmã Ana quando era pequenina e sabia pouco da língua portuguesa, por exemplo "tugaluga" era tartaruga, lembro-me tão bem, diria então a minha irmã em pequenina sobre o cherne assim: o cherne é muita caralhão! Passo os dias à procura de palavras para o meu trabalho, os últimos tenho-os passado a buscar também outras, filhas da indignação, da tristeza, da revolta, umas que conseguissem explicar o incompreensível, e perco-as depois aqui no blogue. É postas. É cherne às postas.


(telefonaram-me da seguradora à qual está entregue o seguro da casa da serra, perguntando se precisávamos de alguma coisa, se o fogo tinha lá chegado, se havia perdas a registar, que estavam a ligar a todos os clientes com casas seguradas na área ardida, se haveria indemnizações a dar, indemnizações! – eu, estupefacta, incrédula, disse que não, que a nós não, o fogo passou perto mas à casa só chegou fumo, e desliguei a pensar que se não tivesse sido comigo este telefonema eu teria tido dificuldade em acreditar nele)

13/06/2017

Teresinha

Ponho uma sequência de valsas a tocar para mim. Compasso ternário e por isso facílimas de dançar, mas não danço uma, agora não. Agora vou contar isto.

Saio de casa para ir ao multibanco. Quando acabo de atravessar a rua, levo a mão ao cabelo ainda molhado e penso que tenho o cabelo ainda molhado mas com o calor da rua não por muito tempo. E noto, ainda com a mão na cabeça, que a senhora que caminha em sentido contrário ao meu e vai cruzar-se comigo já a seguir, me olha por um certo tempo. Penso se estarei toda encasacada como por vezes acontece quando me esqueço que é verão e saio para a rua desajustada. Mas não, casaco nenhum me está cobrindo, talvez o cabelo ainda molhado...
- Olhe, desculpe!
É ela, e a voz vem já de trás de mim, viro-me.
- Diga.
- Ah….. – olhou-me mais fixamente – desculpe, mas não é a Teresinha?...
- Não… não sou.
- Oh… é muito parecida com a Teresinha e eu não a vejo há anos, mas ela também mora aqui e pensei… não é a Teresinha, pois não?
- Não… sou Susana. (nem mesmo na minha panóplia de irmãs se encontraria uma Teresinha, por muito que se procurasse, mas isto a senhora não precisou de saber)
- Ai eu gostava tanto de ver a Teresinha, por isso é que agora a chamei, pareceu-me mesmo. Pronto, desculpe.
- Não tem importância, um bom dia.
- Bom dia. Tudo a correr-lhe bem, sim?
Sim, tudo a correr-me bem. Mas também tive pena de não ser a Teresinha, de não dar uma alegria à senhora e saber da sua vida, contar-lhe da minha, rebobinar os últimos anos, ali, no meio da rua, debaixo de um jacarandá em flor. Quem seria eu se fosse a Teresinha? Continuei o meu caminho, entrei no centro comercial, levantei dinheiro no terminal multibanco e tornei à rua tomando o caminho inverso para casa. Ao subir as escadas junto à paragem do autocarro, escorreguei e caí. Tenho caído muito ultimamente. Mas levanto-me logo. 

(e agora é que danço a valsa, uma destas que continuam a tocar para mim)

11/06/2017

Haviões (um post praticamente científico)

Quando deixo o blogue abandonado por uma temporada, como tem acontecido largo nesta primavera luxuriante, bem trabalhada, ele recebe muitas visitas de países longínquos e origens não decifráveis, que são tudo mentira: serão sim os robots. É uma espécie de como quando fica a casa, a real, deixada só. Ainda que de portas e janelas trancadas, a natureza começa, devagar, a entrar. Pode ser na forma de formigas, aranhas, centopeias, um rato, ou dois, uma lagartixa, diversos bichos indefinidos que serão encontrados mortos e, claro, uma data de pó. Também se pode chamar a este processo o aumento da entropia, que é de aplicação genérica e certa como a morte e os impostos e, segundo um meu cunhado, igualmente certa como as mulheres pintarem o cabelo a partir de certa idade, e a partir de outra idade pintarem-no de amarelo (ele quer dizer louro, mas percebe pouco de tons).
E há dias, levei, sob o sol da tarde, os olhos ao céu azul riscado de branco pelos aviões. Aí ocorreu-me sem querer que deviam estes – mas é – ser designados totalmente de acordo com as suas elevadas potencialidades: haviões. Com propriedade, elevando-os ainda mais a uma conjugação especial do verbo haver, em superlativo, tendo em mente a dificuldade que foi trazê-los de uma ideia muito boa para uma real e complexa, repito elevada, existência.

Andava, porém, a evitar falar nisto (apesar de o blogue entregue aos robots). Até que hoje de manhã, ao saber da última tuitada da Casa Branca, achei que, sinceramente, este post que se escondia envergonhado, tímido, quase agonizante, afinal, roça praticamente o científico. 

(na verdade, tanto disparate junto assusta bastante)

05/06/2017

A terra também cresceu (mas foi de propósito)

É por estas e por outras que as minhas irmãs e outras pessoas de bem não gostam de mim (mas no blogue ainda se aguenta).

Hoje não saí de junto do cato suculento, pode ser Catus Suculentus Citrinus, o Citrinus já se vai ver, não saí de junto dele todo o dia.

Tinha transplantado o Catus Citrinus (primeiro e último nome) há tempos, na verdade há dois meses, que era abril a começar, até fiz para aí um post em que by the way expliquei a plantação, transplantação, deste e do outro, são dois, mas só a este demos agora nome, o by the way como se fosse pouco plantar dois catinhos e não é. Eu sofro de amor agudo por catos e outras produções naturais. É tudo tão lindo. Até a minha filha pequenina, pelos quatro anos de idade, não me esquecerei, disse uma vez à beira da Marginal que liga Lisboa a Cascais no sentido contrário, eram umas sete da manhã e a praia cheia de gaivotas no chão da maré baixa, pensativas, o céu cor de rosa e eu a conduzir as duas filhas com sono para a escola, mas "meninas, olhem que lindo" e ela "mãe tu achas tudo lindo". Estava, e estou, ciente de que um cato não é planta que deva muito ao dinamismo da mudança, mas sim à resistência-a-adversidades, característica pela qual trouxe os dois exemplares para a casa da serra, que está mais desabitada do que habitada, as hortenses faleceram, os coentros evaporaram-se junto com a salsa, ficou o plástico do vaso a dar sopa, a batata doce não deu nem isso, é a vez dos catos mostrarem a fibra de que são feitos.

E então ontem, ao chegar ao terraço que lhes serve, aos catos, de morada, tinha-me o Catus Citrinus esta surpresa: um ramo de flores laranja (é agora que se vê) tão lindo quanto isto.

Mas só agora me ocorreu: e para que quero eu um blogue?

Para mostrar o antes


e o depois.

04/06/2017

O pato

- Ó mãe, tu estás rija que nem um figo! – a mais velha.
- Não é um figo, não percebes nada, é rija que nem uma alface!… – a mais nova.

O almoço era um arroz de pato acabado em casa. O pato deu entrada já em pedaços longilíneos, cozinhados em parte incerta, e nem sequer veio o pato todo, mas adiante, que veio acompanhado de um robalo grande no outro saco com duas postas de garoupa muito boas, desta vez não havia pescada, couve-coração havia, tenho dificuldades em retirar uma couve-coração do expositor só com uma mão, a couve-coração caiu nas graças da mais nova, nas minhas já havia caído há muito, o pão, iogurtes dos brancos, morangos, e não sei se tem interesse continuar. Quase tudo material com seis por cento de iva, que eu tenho estas manias – quanto mais comprar a seis por cento de iva, menos processado é o que trago para casa e mais saudável e conceitos assim tipo (até eu me canso de mim às vezes). Mas portanto o pato já chegou em estado avançado de preparação, claro que nesta situação qual seis por cento qual quê, paciência, eu avanço e dou-lhe somente a volta final, o arroz. O almoço está pronto, chouriço nada que andamos em dietas (consideráveis).
Foi perante esta iguaria nos pratos e a minha ladainha sobre sentir-me cansada de não parar de trabalhar nem um diazinho há muitos seguidos, mas também feliz como nunca antes estive com trabalho nenhum, tão feliz que nem dá bem para acreditar, discurso que – à palavra cansada – desencadeou o diálogo acima exposto.

- Meus amores, diz-se “rija que nem um pero” e se quisermos alface é “fresca que nem uma alface”.
Mas continuo
- O figo vem no “chamei-lhe um figo” e ainda há a variante “caiu-me que nem ginjas”.

Quem souber mais é avançar, se fizesse favor, para ensinar às garotas da próxima vez, por exemplo frente ao robalo.

(com licença, só uma pergunta, ao ler-se ali em cima "O pato" deu ou não deu para ouvir de imediato aquela canção brasileira, "o pato, vinha cantando alegremente, quém quém", deu?)

01/06/2017

Selinho Blog em Bom - lançado por Pipoco Mais Salgado

Se eu fosse um Blog em Bom gostaria de ser – não vou ser original, mas isto é para ser sincera ou então não viria cá – o blogue da Mãe Preocupada. Porque sempre que lá entro e me sento confortável a ler o novo texto, sou invadida por uma estranha tranquilidade. Digo estranha por ser constante, haja o que houver, seja qual for a leitura. Lá, parece que encontro o mundo no lugar. Encontro uma honestidade que me encanta. Encontro-me a mim também. Respiro e leio devagar para ficar mais tempo. Aliás, para ser completamente sincera, já não é só gostar de ser, eu sou o blogue da Mãe Preocupada. Sou, na medida em que já me aconteceu dar comigo, quando perante situações difíceis, duras, dolorosas, a pensar: como faria uma pessoa como a MP no meu lugar?

Mas também gostaria de ser de vez em quando o blogue do Pipoco Mais Salgado. Uma espécie de gluão. Uma partícula que une naturalmente as outras como se conduzisse uma orquestra que primeiro pode entrar desafinada e no fim toca uma peça lindíssima. No Pipoco confirmo que vale a pena ter um bom coração. E depois, é ele o primeiro a aplaudir os músicos.



Os cinco blogues que escolho para darem seguimento a esta corrente tão bonita e com um selinho maravilhoso da série Senhora dos Papagaios, Tarântulas e Caniche, porém na variante Cisne com Bebé, que é ainda mais fofinho (Ah, Grande Palmier!); são estes:








(contei com uma tolerância de vinte por cento, para não abusar)

Instruções:
"Foste envolvida(o) no movimento "selinho Blog em bom", tens agora vinte e quatro horas para escolher um blog que gostasses de ser, explicando-nos porque é que aquele blog é mesmo um blog em bom e para desafiares mais cinco bloggers para este interessante desafio que pretende promover o convívio entre todos os bloggers, ou então um panda bebé morrerá e todos sabemos que os pandas são animais fofinhos que não merecem falecer só porque alguém não responde a um desafio"

A Carta

Subimos juntas nas escadas rolantes do centro comercial. Ela já leva a carteira preparada na mão e encosta-se um pouco a mim, gosto tanto da minha mãe. É mais alta do que eu há muito tempo. Vejo-lhe, pelo canto do olho, a curva do pescoço que o rabo de cavalo revela e ponho-a no meu colo só um bocadinho, reduzindo-lhe o tamanho à escala de há quase vinte anos. Ficamos assim até o mecanismo rolante nos entregar ao piso superior e a obrigar a endireitar-se. Dirigimo-nos à caixa multibanco, ela mete o cartão de plástico na ranhura da máquina, digita o código. Eu fico um passo atrás ainda com ela ao colo, é só mais um bocadinho, só para relembrar o cheiro de bebé, os sons, o riso que lhe saía até a dormir.
- Gosto tanto de ver esta tirinha aqui a espreitar, mãe, esta que diz “esa”, olha – voltara-se para mim.
- O quê, filha? – regresso ao piso superior do centro comercial.
Do compartimento apertado da carteira aberta aguardando o retorno do cartão ainda ocupado a tratar de assuntos seus no terminal multibanco, puxa a carta de condução. Ao fazê-la deslizar, “esa” cresce para “Portuguesa” e depois para "República Portuguesa”. 
- Sinto-me tão crescida, mãe - declara, enquanto acaricia o documento, condómino acolhido no outono passado.
O terminal multibanco atrai-lhe de novo a atenção, a Carta acariciada volta para o lugar de onde saíra, fica o “esa” à janela e a minha filha devolve-me as costas, a curva do pescoço, a parte de trás das orelhas. Aproveito e torno a pô-la no colo. Só mais um bocadinho. 
Que aquele "esa” já a leva para longe de vez em quando.