a voz à solta
23/12/2022
A todos um Feliz Natal 🎄
Velocidade furiosa 23 (de dezembro)
21/12/2022
Bichos do dia
O solstício chega hoje, por isso a partir de amanhã os dias recomeçam a crescer neste lado do planeta. Me gusta. Lo que no me gusta é ter acordado às 4h36 sem jeitinho nenhum. Pelas 5h40 decidi ir tratar dos gatos – os quais já estavam a dar sinais – e de mim. Tratar de mim às 5h40 significa fazer café e, no caso de hoje, também duas torradas do pão que a Saminhas diz ser isento de glúten. É o único que temos neste processo de tentar terminar os residentes de longa duração no congelador da casa. Há limites.
Ontem as chuvas foram menos valentes do que se esperava e as
ruas andavam sossegadas de carros devido a muita gente ter ficado em casa depois
de mais uma mensagem curta proveniente da proteção civil nos ter avisado das
possibilidades de cheias. (respirar) Goraram-nos as expectativas, portanto bastante bom.
Falta só dizer que, quando derrotada cheguei à cozinha para abrir uma latinha de comida para gato, ouvia-se, vindo da rua (e não de algum dispositivo inteligente), um chilrear produzido por mais de um pássaro. Abri a janela para confirmar. Como seria de esperar, não identifiquei a espécie. Antes estranhei em plena noite de solstício de inverno chilreios animados assim. Creio que deviam estar a dormir todos os bichos que são do dia, incluindo eu.
08/12/2022
Querida, não desconstruí as calças
Há bocado, quando saí para a rua na busca de um ou dois víveres inesperadamente faltosos para o almoço, já não era cedo. Mesmo assim, tomei o cuidado de optar pelo casaco mais compridinho que tenho. Aquela conversa de há um ano, nos saldos de uma loja moderníssima situada nos centros comerciais mais palpitantes da atualidade, ainda não foi digerida pelo outono da minha idade. A elegante vendedora de maquiagem perfeita garantiu-me, com o olhar mais firme e profissional, que as calças que ela se me propunha vender, muito muito muito confortáveis e que parecem de pijama, não parecem de pijama. Disse ela ainda, toda inteligente, que “é preciso desconstruir” [a ideia de que as calças que parecem de pijama, parecem de pijama]. Ora eu fui mesmo atingida. Na mouche da minha fraqueza por saldos de lojas moderníssimas situadas nos centros comerciais mais palpitantes da atualidade, dispus-me imediatamente a desconstruir ideias doidas como aquela de calças muito muito muito confortáveis parecerem de pijama (senhores!). Portanto, valentemente a caminho do natal de dois mil e vinte e um como ali estávamos, comprei-as.
Hoje, passados doze meses, ainda me detenho com as calças na mão antes de me enfiar nelas, ponderando avisadamente se precisarei ou não de ir à rua levar as marotas a passear. Tipo não adoro que os meus vizinhos, os quais provavelmente não fizeram qualquer evolução no sentido da precisada desconstrução, me vejam de pijama.
07/12/2022
Também se chama tempestade
Chove muito, troveja e está vento. As estradas já estão alagadas com a água a dar pelo meio dos pneus e notei, quando vinha do jantar com a Carla, que o piso menos três do estacionamento do Vasco da Gama estava tipo mar, sim, fazia ondinhas.
Vinha
cheia de sede e de repente irritei-me com o automobilista que não respeitou as
prioridades e se meteu todo à minha frente no meio da chuva; dei-lhe luzes. Era
um tvde, talvez andasse à procura de algum cliente escondido pela trovoada muito confuso. Senti remorsos, engano-me quando sou intolerante. Os tvde
agora já não oferecem aguinhas nem rebuçados ou musiquinha ao gosto do freguês,
mas não foi por isso, claro. E penso que também se vão esquecendo de lavar o
carro duas vezes por dia, especialmente por dentro.
03/12/2022
Ou agendas muito boas e livros mesmo lindos
30/11/2022
A lata
Voltamos à emissão já o sol iniciou a sua descida para contar que há pouco, enquanto deitava colheres de café em pó para dentro do filtro do mesmo, vi através da janela a senhora que passeia o cão de bicicleta a passear o cão de bicicleta. Atenção que é ela na bicicleta e o cão a correr no chão coitadinho (acho que arfando). A senhora desta vez olhou diretamente para mim mas não acenou porque numa mão levava o guiador da bicicleta e na outra a trela do cão. Eu também não acenei porque numa mão tinha a colher do café e na outra a lata do mesmo. E não a lata da senhora.
Acho aquilo uma preguiça no espectro do agudo mas quem sou eu.
26/11/2022
Um cêntimo
Esta cidade não é
exceção no que ao cumprimento da tradição respeita. As pessoas vivem em casas
ordenadas, com jardins geométricos, as bermas e os passeios recebendo aos dias
certos a ordem dos caixotes do lixo, também nas cores certas, as pessoas saindo
de casa às cinco da tarde nas suas bicicletas munidas das malas de compras e cumprimentando-se quando se cruzam. Vão buscar ao supermercado da pequena
cidade os alimentos para a refeição quente do dia, o jantar. Se, uma hora depois, fora desses hábitos mais antigos, caminharmos pela rua, sente-se o cheiro de refeições
preparadas em fogões modernos de cozinhas práticas e funcionais. Esta cidade não
é exceção. Mas, como qualquer regra, pode aceitar um rasgo de doçura mais
fundo, uma manifestação de intenções de criatividade inesperada, até mesmo uma
linha de horizonte onde se lê o amor na língua mais universal, pode sim.
19/11/2022
Já chegou o frio e a neve também quer
A vizinha da frente esquerda, a dos carros muito feinhos, era muito feinho o primeiro carro que ela tinha quando se mudou para aqui com a família o ano passado e é muito feinho o segundo carro, pelo qual trocou o primeiro, a diferença entre eles é o musgo muito sujo entranhado que o primeiro tinha e o segundo ainda não teve tempo de ganhar, mas como eu ia dizendo, a vizinha da frente esquerda tem uma pequena tabuleta feita à mão espetada na terra do seu jardim, junto ao passeio e virada para quem passa nele e para o tal seu muito feinho carro. A tabuleta mostra uma informação que, vista daqui, parece ter bonecos coloridos. A avaliar pela sua altura, estou em crer que se trata de uma espécie de “não faças cocó neste local”, mensagem obviamente destinada ao público-alvo canino da rua quando já vai aflitinho, mas tenho de me aproximar como quem não quer a coisa, para confirmar tudo. Quem sabe, a vizinha está assim a proteger a área circundante do seu novo e feinho carro. Pode ser que, deste modo, se acumulem nele menos camadas de musgo muito sujo.
(entretanto,
comecei a ler o Carlos de Oliveira, “Casa na duna”, ah pois)
29/10/2022
Insiste insiste
Li o texto “As hienas” da Clara Pinto Correia acabadinho de ser publicado no Página Um e percebi ainda melhor que sou uma rainha da felicidade. Então levantei-me e fui abrir a porta à Marble que já estava a pedir para ir à rua (de gato) há imenso tempo e para isso tinha deitado ao chão cinco envelopes que aguardam a chegada de vontade de os abrir e qualquer coisa na casa de banho que não se partiu porque já não há lá nada que se parta. Lavei os dentes, preparei o quarto para me receber no sono e na insónia e depois de todo esse tempo fui, em trajos desadequados e inéditos, buscar sua excelência a gata ao menos dois. Vinha satisfeita certamente com algumas aranhas minúsculas na barriga ou nem quero pensar de que menu alternativo ela se teria servido, a verdade é que veio logo ter comigo de cauda no ar, pronta para voltar para casa. Subi as escadas com a donzela ao colo, as duas contentes, pois, eu incluída. Quais regras, pá. Agora só peço é um aspeto: dormir a noite inteira até ser de manhã. Por exemplo para variar um bocado.
15/10/2022
Leituras tão boas
Às sete da manhã ainda se ouvia uma coruja ou uma ave do estilo coruja, das que só piam à noite. Para começar. Depois, quando finalmente larguei a leitura do meu novo jornal, achado por causa do banho de Clara Pinto Correia que estou deliberadamente a tomar, o Página Um, e me levantei para ir dizer bom dia à serra, vi que estávamos acima da nuvem encaixada no vale. É sempre tão lindo que quase me dói olhar. Fica praticamente difícil respirar normalmente. Mas talvez eu seja um bocado deslumbrada.
Fui
caminhar pela estrada de terra entre eucaliptos e alguma vegetação
autóctone sobrevivente das indústrias, quando a nuvem estava a levantar-se dali.
Subia depressinha e em minutos já me estava a envolver bastante. Tirei algumas
fotografias ao espaço em torno com a neblina e raios de sol a cortá-la, tendo
por companhia a berma silvestre com o solo revolvido às covas mal feitonas, género
às três pancadas, sabe-se lá por que bicho mas eu desconfio. Ronc.
Entre
isso e aquilo, ouvi a Inês Lourenço n’O poema ensina a cair dizer um poema da Sophia que
até nem achei aborrecido. Admito. A Inês Lourenço tem um adorável sotaque do
norte e talvez tenha sido daí. Deu-me até vontade de ir outra vez ao Porto inserir-me nas suas ruas e
descobrir se já está mais calminho, com algumas das obras prontas e tipo isso. Deu deu.
25/09/2022
As flores eram muitas muitas
Ontem dancei como não dançava há onze anos, dois meses e um dia.
(este é um post de um género específico)
21/09/2022
Mas pavões bebés entre os livros, isso sim
Ainda me zumbe nos ouvidos a gritaria que foi ir à Feira do Livro na cidade do Porto. Uma pessoa vai ingénua fazer fé na estação de São Bento para entrada, mas qual quê. Nem toda a beleza dos azulejos, dos ferros trabalhados e das outras obras de arte para as quais logo nos faltam os olhos cansados, que encimam as cabeças de hordas de turistas com telemóveis ao alto, nos safa. Saímos da estação para respirar e somos atropelados pela orquestra de motas a serpentear por entre os carros furiosos que por sua vez se desviam de prédios em obras e mais prédios em obras. Ao menos ficamos a saber em que altos ruídos opressores se inspiram os tais DJ de topos de telhado ou lá o que é aquilo.
18/09/2022
Uvas morangueiras
De manhã li dois contos da Clara Pinto Correia, numa edição antiga da Relógio d’Água comprada na Feira do Livro do Porto por cinco euros. Cada vez leio mais silêncios destes. Não são silêncios absolutos, são suspiros, outras vezes sussurros, ou então apenas um monólogo numa voz que não pretende chegar a nenhum lado e por isso não leva urgência, antes traz macieza.
Depois peguei a rua empedrada e fui andar até ao fim da estrada de terra batida, atravessada aqui e ali por pegadas das corças e, ao comprido, riscada pelas marcas da carrinha do padeiro. A estrada sobe, ladeada de altíssimos eucaliptos, até à nacional, onde termina. Aí, dou a volta e desço de novo à aldeia. Junto a uma das casas abandonadas à entropia, cuja fachada foi erguida rente ao empedrado, resiste um punhado de hortênsias com as pequenas pétalas muito doentes, claramente tentando não morrer de tristeza. Não peguei no trabalho. Estendi a roupa ao sol, no terraço, e cortei alguns cachos de uvas morangueiras para levar à minha irmã, juntamente com os bolos que irei comprar ao padeiro quando ele passar mais tarde, por ser sábado.
15/09/2022
Mas continua a chover
A carrinha do padeiro anuncia a sua chegada com a buzinadela habitual. Agarro na moeda de um euro e abro a porta. O padeiro está a pendurar o saco de plástico com as carcaças contadas na cerca retorcida da vizinha inglesa do botox, do outro lado da estreita rua. Depois volta-se para mim, sorri e eu digo a quantidade de pão para hoje. Enquanto ele prepara o saco para me dar, a vizinha sai de casa e desce a rampa até à provisória cerca. Traz o seu cabelo escorrido apanhado num rabo de cavalo, uma camisola sem forma que suspira por lavagem, umas leggings em condições semelhantes e um par de chinelos já sem cor revelando uns pés deformados pelas agruras de uma vida apertada, muito triste. Em silêncio, apanha o saco com o seu pão e regressa pelo mesmo caminho até desaparecer atrás da porta da casa. Eu também não a cumprimentei. Aceito que ela prefira ignorar quem tem a sorte de carregar na alma uma mínima dose de paz. Aquela que, quando falta, incita o coração vazio, inquieto, doente, a presumir inimigos em cada canto. Mesmo que numa aldeia de três ruas, muitos gatos e um par de veados que já entraram na brama.
13/09/2022
No alfa das seis e nove
08/09/2022
Doces*
Está
finalmente a chover. Em cima do tapete da entrada pelo terraço virado a sul,
oito gatos aguardam nova dose de comida. Ali não apanham chuva. Se tocar no
puxador da porta envidraçada, as carinhas voltam-se todas para cima, olham-me
através do vidro, e algumas boquinhas abrir-se-ão miando fininho. Não estão
todos, falta pelo menos um dos mais novinhos que, ao ouvir miar os outros, virá
a correr desalmado, derrapando no chão molhado do terraço até conseguir equilibrar-se e vir juntar-se ao grupo. Mas não toquei no
puxador, antes vim sentar-me de casaco de malha vestido para escrever estas doces linhas.
* porque me lembrei dos votos da minha colega chinesa para o meu dia de ontem: "Um dia doce", podia ler-se no seu engraçado português, proveniente lá dos confins orientais onde vive.
02/09/2022
Setembro, mas já sabia
A meio da manhã pausei o trabalho e saí para fazer a caminhada habitual levando na mão três garrafas vazias de cerveja mini destinadas ao contentor próprio. (Ao menos aproveito para fazer qualquer coisa de jeito.) Dou início ao episódio de podcast que escolhi para me entreter a neura e entro em passos rápidos na manhã amena. No cimo das escadas que dão para a paragem do autocarro, ao fim da rua, cruzo-me com uma senhora agarrada a duas ou três raspadinhas esfolando com força a película perversa e temporária de uma delas.
21/08/2022
O exemplar
29/07/2022
Publicidade até à loucura
Ontem cheguei tão cansada do dia de trabalho que me dispus ao comprido no sofá para que as minhas células continuassem a manter-se unidas entre si e fiz a parvoíce de ligar a televisão. À quinta vez em dez minutos em que apareceu o anúncio da MEO com um monstro azul qualquer e a Inês Castel-Branco a falar com ele com muita piedade fingida, fui catapultada para fora do sofá e atirada até embater com o dedo espetado, muito assanhada, no botão de desligar do aparelho antes que enlouquecesse. Nem tive tempo de me lembrar que, há já umas quatro décadas, a televisão também se pode desligar no comando remoto.
24/07/2022
A serpente
Aquilo no aeroporto de Amesterdão, hoje de manhã e depois de tarde, perturbou-me. Serpenteámos milhares de pessoas pela geometria temporária que os insuficientes funcionários desenharam por forma a encaminhar o enorme fluxo de gente. Foram bem sucedidos, porque, na ausência de inúmeros colegas, conseguiram manter as linhas a coser a vida de um grande aeroporto e do verão, sem que houvesse quebras demasiado severas. Nós fizemos a nossa parte. Chegámos com três horas de antecedência, mantivemo-nos ordeiros obedecendo às múltiplas voltas da grande serpente e, por fim, arrumámos os tabuleiros utilizados para a bagagem regressada do túnel do raio X. Talvez até haja aqui um prenúncio de futuro de certo modo risonho para variar. Um futuro em que os passageiros tomam para si os rabinhos das tarefas de futuros ex-insuficientes funcionários.
Houve
um momento na longa fila, após uma das muitas mudanças de sentido no ziguezague
apertado, em que os meus olhos bateram nos de uma outra passageira, uma senhora com o rosto
sulcado de rugas, que circulava em sentido contrário ao meu no dorso da serpente. Sorri-lhe e ela devolveu-me
o sorriso. Procurei-a em voltas posteriores, mas não voltámos a encontrar-nos.
Depois, como não tinha nada que fazer, fiquei a pensar que aqueles que veem nos desconhecidos potenciais inimigos não estão totalmente ligados ao mundo. Não de um modo potencialmente harmonioso. Em Lisboa há muitos.
20/07/2022
Arrivederci!
18/07/2022
Lisboa em obras (de propósito)
07/07/2022
Voos domésticos de 300 km: tão necessários como o ar que daqui a pouco não conseguimos respirar
Há dias, numa outra madrugada desperta, pus-me a contar o número de voos entre Lisboa e Porto operados pela TAP, por dia. Dez. E para Faro, de Lisboa, quatro. Catorze voos diários que podiam ser substituídos por viagens de comboio. E já nem vou mais longe. Mil vezes mais agradável, produtiva, permissora de inúmeras tarefas e ocupações, uma viagem de comboio tem duração quase nula, uma vez que o tempo nesse amigo meio de transporte é todo aproveitado. O que não queremos mesmo é parar de torrar o planeta, certo?
02/07/2022
O barato do verão
24/06/2022
Queques baratos (assados)
Ontem, antes das nove horas, tinha de fechar a torneira do gás e estar apresentável para receber o técnico inspetor na minha fração, o que poderia acontecer a qualquer hora durante toda a manhã. Era o que dizia, nestas e noutras palavras, a nota colada na parede interior do elevador e também recebida por e-mail. É muito importante respeitar os caminhos do gás, verificar amiúde se eles estão de boa saúde. O gás quer-se saindo das suas condutas quando e como pretendemos, mantendo os seus tubos borrachudos dentro do prazo, para que a função controlada da sua queima se dê, e nunca permitindo que a natural vontade física e química do mesmo prevaleça. Qualquer criança mais atenta já desconfia disto. Então tomei o banho sem fazer caminhada até ao rio e fechei a torneira do gás às 8h50. A seguir, fui de novo olhar para a página aberta do livro de receitas que por pouco não foi para o lixo e os queques intitulados de baratos lá estavam fotografados há décadas junto a um serviço de chá parecido com os da Vista Alegre, debruado a dourado. Verifiquei os ingredientes na despensa e encontrei todos à exceção da pitada de baunilha, que decidi substituir por raspa de limão. Pincelei com margarina o interior das formas de alumínio, tortas e de tamanhos heterogéneos, originárias da casa dos meus avós e, antes de lhes ajeitar um fiapo de farinha distribuído nas paredes côncavas para que os queques vindouros pudessem desalojar-se tranquilamente depois de assados, a campainha soou. Perguntei no intercomunicador quem é?, mas já tinha quase a certeza de que seria o técnico do gás. E era mesmo.
Os
queques ainda estavam muito quentes quando foram fotografados e metidos no
whatasp* para as miúdas, uma em Lisboa, já cheia de trabalho, a outra passeando
o início das férias pelo Porto. Ambas ficaram admiradas e contentes com o facto
de eu ter feito os meus primeiros queques assados, baratos ou não.
*Pseudopalavra extremamente imbecil que eu me recuso a esforçar por escrever corretamente.
16/06/2022
Alarmes há muitos
07/06/2022
À saída do escritório (a meias)
Ao fim da tarde meti-me na casa de banho para fazer a troca. Remover os sapatos em princípio elegantes pelos sapatos de ténis com meias. Meias, quer dizer, aquelazinhas que se ficam por vestir o pé e espreitar uns milímetros acima do gargalo do sapato. Não sou amiga delas por causa da sua mania de descaírem até aos dedos dos pés logo ali ao passo número trinta e quatro ou trinta e cinco. Irrita uma pessoa, mas é a moda. Nem nas lojas se encontra outra coisa. Só na loja do chinês, imune a caprichos mercantis, se consegue comprar meias normais das boas que ficam no sítio nem que a gente faça dez mil passos muito largos. Nunca percebi que mal têm essas meias para terem sido barbaramente substituídas por aquelazinhas que não sabem o que é um tornozelo com frio, mas quem sou eu. Então hoje resolvi suspirar fundo e utilizar com fé renovada o único parzinho que escapou à limpeza de há uns meses quando tirei da gaveta esses erros que cometera e deitei tudo no caixote do lixo. Tudo o que sobrava, na verdade. Metade delas já tinham perdido os pares algures entre o tambor da máquina de lavar e as paredes que lhe sustentam as voltas da centrifugação, de tão minúsculas. E isto hoje porquê? Porque ontem a Saminhas me garantiu que ficava mesmo horrível usar os sapatos de ténis para o caminho até ao escritório com um par das meias subidas como eu gosto de vestir o tornozelo. Ó mãe, isso fica horrível, ouvi eu pela manhã. Ora venho então eu hoje a sair do trabalho já com aquelazinhas nos pés quando a Joana passa por mim, apressada. Vou apanhar o comboio, explica-me. Eu acelero para a acompanhar, logo esquecida do resultado que aquilo pode dar dentro dos meus sapatos de ténis. Descemos as escadas juntas e notei que também ela já havia feito a troca: dos sapatos de salto pela sua própria versão de ténis mais meias. Ambas preparadas para enfrentar a calçada lisboeta com os seus interstícios, ângulos vivos e miniplanos inclinados em todas as direções, uns polidos outros não, às seis e tal da tarde, sim sim. Descobrimos que vamos para o mesmo lado da rua. Faltavam alguns minutos para a hora do seu comboio. Onde moras, Joana, perguntei. Ela respondeu, enquanto olhava para o relógio e apressava mais o passo. Eu também, ainda que sem comboio para apanhar, metro ou autocarro. Tão só a alegria renovada de ter de novo colegas com quem fazer os caminhos para casa. Se não inteiros, pelo menos a meias. Mesmo que daquelazinhas.
29/05/2022
Entretanto acabei o livro e fiz cuscus para o jantar (admito)
19/05/2022
Cajus branquinhos
Achando que ia comprar um saco de lentilhas de uma cor diferente das amarelas, que essas já temos, fui à loja indiana do bairro munida de uma das várias receitas que o senhor de lá me deu há dias. Ele a dar-me receitas e receitas, vegetarianíssimo confessado até na camisola polo que vestia, todas aquelas sem carne ou peixe. Estava meio que a tentar converter-me ali mesmo, tendo rematado o insucesso, após grande conversa sobre comer animais ou lentilhas de todas as cores, a declarar para si próprio que não se pode julgar os outros enquanto encolhia os ombros por eu não ser assim tão fácil de convencer. Já que em princípio continuarei a comer animais, embora não muitos.
Pois voltei lá hoje com boas intenções e a tal receita na mão, dobrada em quatro. Mas antes fui abastecer-me dos ingredientes que consigo identificar na lista dos próprios: cebolas, cenouras, couve-flor, batata, pimento verde, alhos. Quando por fim entrei na loja indiana ia carregada. Pousei os sacos de pano e compras no chão e desdobrei o papel da receita. Não estava o senhor vegetariano que não me podia julgar, mas sim uma jovem mulher provavelmente da mesma família. Estendi-lhe então a receita pedindo para me fornecer os ingredientes um tanto ilegíveis, este e este, se faz favor, o resto já tenho, disse eu apontando para o desdobrado papel. Ela foi buscar os dois elementos. É só isto que tem de levar, disse, pousando-os no balcão. E realmente enganei-me: não era lentilhas que a receita mandava nos seus estranhos dizeres. Tratava-se apenas de um saco transparente* e avantajado com cajus branquinhos a prometer delícias tremendas e uma caixa com um pó masala não sei quê, que eu nunca tinha visto.
*de
plástico, ah pois, sim, sim – mas eu também não vou julgar, ok.
17/05/2022
Grande mistério
Os gatos correm pela casa desafiando os lugares mais altos como as costas do piano ou as da cadeira que foi parar à varanda pela minha mão, não para subir na vida, mas para secar. Um jarro de água quase cheio tinha-se misteriosamente deitado sobre a mesa e a mesa tem design propício a molhar cadeiras. Todo um processo pertencente à situação de ter felinos ativos e saudáveis em casa. Se o meu gato está bem, eu estou bem, ou lá como era o sábio anúncio. A esta hora, o sol entra por todo o lado nascente espraiando-se sobre o chão de carvalho e revelando a necessidade de pôr o aspirador-robô a andar. Assim estamos, portanto, imbuídos do seu murmurejar tecnológico com a Nora Jones a cantar por trás, para variar de Rachmaninoff. Os amigos de quatro patas não o são um do outro, como já se saberá, e nem o aspirador-robô, grande mistério a explorar e de que fugir no antigamente dos bichos, lhes causa mais respeito ou é capaz de lhes refrear as correrias antecedentes às estaladas, aos rosnanços e a outras manifestações mútuas, adoráveis.
O
melhor é ir trabalhar.
14/05/2022
Também os há de graça
08/05/2022
Toda a população distrital e (diria mais) municipal
Estou muito farta do desamor que os gatos têm um pelo outro, isto vão sete meses demasiado infernais. Hoje de manhã já me levantei de um trabalho que parece infinito, a revisão de uma tradução de alguém pouco dado a traduções - felizmente já na última temporada da estucha de três - para ir tentar evitar vários assanhanços que me põem os nervos em franja e o chão com tufos de pelos arrancados à unha (do outro gato). Apetecia-me introduzir um acento circunflexo na palavra pelos, mas o corretor sem c não quer e eu já estou por tudo.
Entretanto os bichos lá acalmaram, aqueles nervos felinos também têm limites, graças a deus. E eu regressei ao trabalho de sapa, mesmo sendo um domingo de sol e não sei quê. De repente, em meio de uma correção tecnico-linguística apuro o ouvido por cima do Chopin que me toca perto porque creio ouvir o rosnanço de dona Marble face à proximidade medida em centímetros do sempre pronto para a ação Beethoven, ambos sendo gatos plenos da sua personalidade. Apuro, apuro, e depois lá concluo que afinal era uma daquelas motas detestáveis, bem ao longe, conduzida por um exemplar de certeza equipado com uma micro- ou mesmo nano- pila (que até eu me passo de vez em quando) que acha muito macho fazer toda a população distrital e municipal conhecer o rugido do seu estúpido motor.
16/04/2022
Quatro chás ou cinco
07/04/2022
Há verdades que parecer não parecem
Ando meio que descasada dos livros, por estranho. Entrei firme em dois mil e vinte e dois com um José Saramago na mesa de cabeceira encimando os outros, lidos ou não. Ele vive comigo há valentes anos, mas por carregar um título sugestivo de viagem - logo eu que não sou desses – ou dessas, não sei bem, foi como que ficando na estante ao lado sabe-se lá de quê. Lembro-me que foi nos últimos suspiros de dois mil e vinte e um que o resgatei ao pó com um paninho de microfibra bastante colorido. Porém, a leitura não fluiu. O inverno ameaçando demitir-se e eu ainda não havia chegado às beiras, vindo bem lá do norte, igreja após igreja, como é o caso na obra que trata da saramaguiana Viagem a Portugal. Conversámos sobre isso e deixei-o de lado a descansar as páginas. Não é tanto o ser de viagem, que se perdoa pelo supremo das linhas, é mais o ser de incursões repetidas em igrejas mortas - fico cheia de frio. Aqui chegados, enquanto o livro goza as férias forçadas atiro-me a outro nobelizado sem querer: William Faulkner. É edição da Visão, apanhada também há muitas voltas ao sol numa bancada lisboeta, poeirenta, sob o incentivo de um desconto agradável: “A Luz em Agosto”. Começo pois em grande esperança de trama urdida, envolta na vontade de me afastar das igrejas lá cobertas do musgo mais antigo e até que a coisa primeiro pegou. Mas a páginas tantas o atrito dos meus olhos nada novos começou a ganhar vantagem aos poucos. Fui intercalando para não enfastiar. Passar a ferro, aspirar o chão e fazer compras no supermercado. Esta "Luz em Agosto" do Faulkner é aborrecida, complicadíssima, já a ficar escusada. Entretanto estamos em plena primavera como se pode confirmar pela data e a relação não vê melhoras, muito pelo contrário. Estou a uns conquistados três quartos do livro, com o final mais do que almejado no horizonte, mas decido abandonar o barco. Deito o livro fechado sobre o lençol fabricado em Portugal quase todo em algodão e suspiro pela encomenda da Wook anunciada para mais logo. A querida vem salvar-me logo a seguir ao almoço e eu rebento-lhe os atilhos. Disponho imediatamente em frente dos olhos muito ávidos os três volumes recém saídos da caixa, como candidatos. Pego primeiro naquele que mais esperança me dá não sei porquê: Leila Slimani, "O país dos outros". Abro-o, assino-lhe a segunda folha no habitual arrebatamento de posse e continuo. Vem uma página de citações, traz duas. A primeira parece uma poesia, passo. A segunda, mais crescidinha, formando um quadrado certinho, anuncia a sua origem: William Faulkner, “A Luz em Agosto”.
Pá.
02/04/2022
Sandes de chourição a caminho do cartão
25/03/2022
Café geométrico em espécie de diário
Eram sete e meia e estava eu em frente à máquina do café a deitar os olhos à rua enquanto iniciava a nossa interação mulher-máquina matinal em paz. Pelo canto do olho vejo algo diferente mexer-se sobre o relvado da casa ao lado, algo em tons de castanho e sem dono a passear na rua nem trela. Invocando mentalmente os frequentadores habituais destes relvados, recordo que as gralhas são negras, as pegas rabudas negras e brancas se não mencionarmos o azul-noite-metalizado que lhes desponta subtilmente na cauda, os pombos cinzentos. Virei então a cabeça na direção do vislumbre castanho. Uma lebre! Vem a saltitar pelo relvado fora e depois atravessa a estrada. Parece-me magra e alta, até creio ver-lhe o desenho do esqueleto. Meteu-se primeiro no jardim dos novos vizinhos, mas depois continuou para o dos vizinhos da frente. Vinha de novo a surgir no meu encantado campo de visão como se pretendesse tornar a atravessar a estrada para este lado, só que viu-me e parou. Mesmo assim, estando eu ocultada pelas persianas abertas a meio gás, por trás da janela da cozinha, ela viu-me. Então recuou metendo-se atrás de uma sebe talvez demasiado geometricamente obtida para um animal sem dono. Esperei uns segundos, mas a lebre deixou-me plantada. Fiquei pois reduzida à chance de observar como o vizinho da frente, dono do jardim que acolhe o animal, aproveitou o espaço livre que guardei à direita do nosso caixote de tampa verde quando ontem à noite o fui encavalitar na berma do passeio, para alinhar muito bem os seus dois exemplares. Já reparei: quanto mais geometricamente feito está um jardim, mais lixo verde produz e isso revela-se proporcional ao número de caixotes que se possui. Acordaram então ali todos três prontos a ser esvaziados pelo braço mecânico que passará daqui a pouco para lhes dar completamente a volta.
22/03/2022
Magnólia em espécie de diário
Finalmente fui fazer a caminhada normal. Não sem primeiro me dedicar a fotografar a pequena magnólia comprada o ano passado em fim de época e em saldo, a qual está a prometer na forma de botões oblongos umas onze flores se não falhei a contagem. Mas voltei para trás junto à casa do cão grande e preto e velho, porém com voz grossa. Decidiu vir para mim lançado a ladrar e como a casa não tem gradeamento algum nem o cão trela, era o cão ali e eu aqui com um bocado, pouco, de arzinho fresco da manhã pelo meio, dei meia volta com o coração mais acelerado e só fiz quatro quilómetros.
No
caminho cruzei-me com o novo vizinho da rua. Eu a
dizer-lhe bom dia efusivamente e ele a dever nada aos acenos, sorrisos ou afins. Esquisito.
Uma das coisas de que gosto nos blogues é não terem o lixo visual em torno do que se quer ler, tal como têm os instas e os twitters. O facebook também aposto. É tão limpinho ler num blogue. O ecrã não mexe sozinho e não tem publicidade nem coisas a piscar e a meterem-se-nos à frente dos olhos para a gente comprar. Por acaso adoro. Mas gostava de saber se continuam felizes as pessoas ex-blogueiras que foram morar essencialmente para o insta e têm de processar toda aquela parafernália de poluição, tipo imenso.
13/03/2022
Espécie de diário
11/03/2022
Verde, com quadradinhos, e um coração tão grande
- Quando a guerra acabar, ensinam-me a utilizar isso no computador?
Nikolin
é ucraniano, está há anos em Portugal e é dono de um modesto estabelecimento
comercial. Há duas semanas transformou o estabelecimento em posto de receção e
envio de bens para o seu país e em central de gestão de famílias de acolhimento
e refugiados. Suspendeu o trabalho porque o espaço não dá para tudo.
-
Mãe, estas pessoas têm um coração tão grande!
Muzi,
a minha filha mais velha, ajuda na gestão dos bens que não param de
chegar, na separação por tipos nas caixas, ajuda no carregamento dos camiões disponibilizados por empresas diversas (até já gosto mais do Pingo Doce e da Margão), na organização da correspondência entre as famílias
que acolhem e aqueles que vêm para cá fugindo desta inacreditável guerra.
-
Isso o quê? – pergunta Muzi ao Nikolin.
-
Isso aí que é verde, com quadradinhos…
-
O Excel? Sim, claro que ensinamos!
-
Eu mostro como faço as minhas contas…
Nikolin
vai buscar uma pasta bem grossa.
-
Faço as contas da loja nestas folhas, veem?
Veem,
sim. Muzi e as outras voluntárias veem um monte de folhas com as
contas muito bem dispostas, a organização a impressionar ali no papel quadriculado os seus olhos jovens mais
habituados aos ecrãs. Ao telefone, altas horas da noite, a caminho de casa, a
minha filha conta-me, em palavras rápidas e carregadas de emoção, como foi mais um dia de voluntariado.
-
Claro que vamos ajudá-lo, mãe! Quando isto acalmar um bocadinho e conseguirmos
ter tempo, vamos ensiná-lo a fazer as contas no Excel. Ele tem um computador velhote
na loja, mas nem o sabe utilizar…
E,
claro (como não?), repete:
-
Mãe, estas pessoas têm um coração tão grande!
07/03/2022
Um post parvinho (para distrair)
As calças novas que comprei em necessidade no vermelho e que são do maior número que jamais vesti (snif), parecem edifícios de duras que são. Sendo verdade que rasgadas não compro, procurei calças na forma de inteiras e isso elas são todas três, mas assim tão duras, tão tipo estrutura onde me meti dentro e me esforço admiradíssima para obter cooperação em conformidade na hora de me sentar ou levantar a perna para alguma função mais acrobática a que me queira dedicar é que eu não estava à espera. Que chatice a Levi’s já não fabricar o modelo preferidíssimo que me levou tanto tempo a encontrar, o processo de vestir depois todo apurado e otimizado, um processo amigo e facílimo, já que compras não adoro mesmo nada fazer. Agora fabricam uma espécie desse modelo mas com a cintura até ao pescoço, se eu quiser. Não quero. Se é para não me conseguir mexer dentro das calças encontrei outras mais em conta, obrigadíssima. Detesto modas.
02/03/2022
Teremos sempre os melros, o sol, os livros e o camião do lixo
Março
começou de fininho, continuando o legado de fevereiro e, se não me engano, de
janeiro também: uma primavera indelével, completamente desalinhada.
No
rádio anunciam, sobre um fundo de primeiros acordes e numa pausa em meio de
notícias da guerra, algo relativo a Lou Reed. Fujo com o dedo para carregar no
botão grande de imediato e desligo a emissão. Como prefiro os melros que se ouvem através da janela
aberta!
Começo o dia com o café das sete e o sol, como é seu hábito diário, a nascer. Não pegando no livro de Saramago – Viagem a Portugal –
que está demorado. As visitas a igrejas matrizes e outras, inseridas em lugares portugueses doridos pelo musgo e pedras antigas, gastos e húmidos, tristes e plenos de passado, detêm-me.
Apesar da beleza no arranjo das palavras, sim. Antes li dois contos de Clarice
Lispector no livrinho de capa azul editado pela Cotovia. Sou incapaz de lhe devorar
os textos - é para que não se acabem. Preciso de ter alguma Clarice de reserva em
casa, destinada a necessidades que possam surgir de luz, frescura de manhãs e
doçura. Talvez por isso não tivesse ainda percebido que tenho três livros
editados pela Cotovia a morar comigo. Tão poucos. Com certeza isto dirá algo desinteressante
e inútil sobre a minha carreira de leitora.
Mas são horas de trabalhar. O camião do lixo já entrou na rua para a sua lavoura metálica, basculante e barulhenta. Bem hajam.
15/02/2022
Espremedora
Tenho estado a ler Daniel Maia-Pinto Rodrigues. Oh! É poesia que me atropela os sentidos e me dá piparotes na cabeça do lado esquerdo e do lado direito se for preciso. Sim senhor. Gratidão é o que me ocorre, entre outros deslumbres. Espanto também podia ser, mas estou a ficar enjoada dessa palavra, espanto para aqui espanto para ali. Há quem se aborreça de resiliência. Pessoalmente, sendo esse um conceito que reveste o bolso de casacos muito antigos, com aplicações em materiais cheios de calor, sentindo-se provisoriamente ofendidos ou transitoriamente desalinhados, aguento perfeitamente. Por outras palavras, sou resiliente à resiliência, que lindo. É então o espanto que começa a cansar. Porém, coitadinha, não deve esta palavra ir sentar-se no mesmo banco de obsoletos onde já estão o espetáculo, o incrível e o fantástico (por favor). Espanto merece ficar em tribuna mais altinha, nem que seja com cunha. É o que faz andar a meter-me com a poesia, estrago-me imenso. Havia era de me pôr a despachar o monte de roupa para passar, esfregar o terraço e fazer o jarro de sumo com os kiwis e as laranjas que os vizinhos trouxeram para o efeito, juntamente com a espremedora num saco do continente já bastante velhinho.
09/02/2022
Caixa de doces
Andava há muito alheada de cremalheira até ela me vir cair em cima do café da manhã precisamente com a janela aberta para o vale. Exibia em todo o seu comprimento os dentes e recessos orquestrados para funções nobres de entranhas mecânicas, utilíssimas à navegação. E mais: trouxe-me em caixa de doces lembranças universitárias passeios pelos corredores meio que ajardinados sobre primaveras ainda pobrezitas de medos e outros grilhões. Estavam uma delícia.
08/02/2022
Um trabalho mais jeitoso
01/02/2022
Já está
Ontem houve assembleia de condóminos e embora aquilo pareça mesmo uma reunião chama-se assembleia. Ela realizou-se no átrio espaçoso juntamente com as plantas de grande porte habituadas a viver sozinhas, agora com a secretária e as cadeiras para ali todas movidas a partir da sua saleta, numa configuração anticovid e admito que criativa. Foi até agradável. No início da ac (assembleia de condóminos), aliás, ainda antes do seu início, estávamos para ali já alguns em pé, de roda, a deitar conversa fora, quando entra na área um casal não residente que se dirige ao elevador. O homem do casal, vendo-nos os poucos mas bons a conversar em modo de pré-ac exclamou: o que é isso, um comício? Pois este homem era nem mais nem menos do que um ex líder de partido político e presidente de câmara, entre outras atividades palpitantes, rapaz batido em comícios e portanto talvez interessado em nos ensinar alguma coisita sobre o tema. Esclarecemos solícitos que era apenas a preparação de uma alegre ac. Não ficámos a saber o que ele achou do nosso comício, se fofinho, vibrante ou cinzentão, pois seguiu viagem prédio acima logo sem mais nada de jeito. Paciência.
No
fim da ac combinei com o vizinho do sexto a mulher dele vender-me meia dúzia de ou crepes ou chamuças
ou rissóis feitos por ela desde que vegetarianos por causa da Saminhas e para começar. Isto
soube mesmo a vida normal de vizinhos e coisas a sério, que saudades eu tinha de uma boa assembleia de condóminos, do mundo como ele quer
ser. Nada disto precisou de insta ou face ou fontes de tédio parecidas, tenho que dizer, e por isso é que digo, os meus olhos descansaram tão bem e a minha barriga,
entretanto, à hora do fecho desta edição, já incorporou dois rissóis de
vegetais capazes de consolar uma pessoa farta de trabalhar!!! Foi ganho.
Mas há um mas. Hoje pela manhã a Saminhas e a sua dor de cabeça fizeram o teste covid, deu positivo. Acabou a vidinha covid-não-entra e o cão do vírus quis conhecer-nos as entranhas. As dela. As minhas, segundo pude apurar, ainda não. Mas quem sabe. Amanhã repito a testagem na apoteca. Hoje deu-me para isto.
28/01/2022
Coisas que não aconteciam se não fosse a covid dezanove
Entro com o pé direito no pequeno laboratório onde vou fazer o testezinho covid para poder regressar a Portugal, ajeito a máscara para desenfiar os pelinhos de papel que se metem no meu nariz aspirante de ares mascarados, encharco as mãos no gel oferecido à entrada e digo bom dia em holandês. Já conheço este laboratório, tem dois funcionários, embora diferentes dos das outras vezes, um na receção e outro na colheita da amostra. Dirijo-me à receção. Entrego o meu cartão de cidadão e mostro o código quê erre da marcação do teste no ecrã do telefone. A mocinha da receção, verificando os dados pessoais no meu português cartão de identificação, exclama isto: Ah! Faz anos no dia sete de setembro! Eu: Faço. Ela: Eu também! Oh, mas que coisa tão gira, digo eu, e rara, penso.
A mocinha entrega-me duas etiquetas que me diz destinarem-se ao seu colega, e manda-me entrar. Não está mais ninguém no pequeno laboratório. O técnico da colheita recebe-me cordialmente e aponta-me a cadeira, todo a cumprir o procedimento. Eu entrego-lhe as etiquetas e sento-me. O técnico aprecia-as, cola-as nos devidos lugares enquanto lhes lê o conteúdo com os meus dados e diz: Ah! Faz anos no dia sete de setembro?? Eu: Pois faço.... Ele: Eu também!
Mau. Isto já é probabilidade de menos. Então explico-lhe que a sua colega me disse exatamente isso... Ele estica o pescoço e grita para a colega a pergunta que a mim fez sem gritar. Como eu esperava, ela confirma. Somos, portanto, três, as únicas pessoas neste pequeno lugar todas nascidas no mesmo dia que não no mesmo ano, como (vai rimar) se podia perfeitamente verificar com um simples olhar. Também era melhor.
(Adenda histriónica: a probabilidade de isto que me aconteceu acontecer é, segundo os meus cálculos não renais, cerca de 0,00075%. Vai buscar.)
20/01/2022
De pouco me vale não ter facebook e coiso, o castigo é certo
O computador à parede não atirei ainda, como fez a minha cliente, mas suponho já ter estado mais longe. É uma questão de definir se vai o próprio, o teclado acessório ou o segundo ecrã. Isto porque o telemóvel já foi, embora não à parede. Estúpida coisinha dentro da qual somos obrigados a viver SE QUEREMOS MARCAR A MERDA DE UMA CONSULTA para a qual é preciso criar nome de utilizador, palavra passe com requisitos de proteção para juntar às quinhentas mil palavras passe que já nos obrigaram a criar e que depois esquecemos e por isso temos de substituir por novas palavras passe que vamos também esquecer, instalar uma app no telemóvel porque uma equipa permanente a pensar em si o tanas e o raio que os parta, no computador não dá, aliás não dá em lado nenhum! Foi por isto que o computador se safou de ir parar ao chão, mas não o telefone. Não se partiu, a capa é boa. Apenas saltaram os cartões lá metidos incluindo os papelinhos com os dados da minha rica vacina covid. Apanhei-os. Gostava de saber, já que aqui estamos, para quando apanharmos também as vacinas através de apps no telemóvel. A mim quem mas deu, a todas três doses, foram pessoas, duas mulheres e um homem. Pareciam verdadeiros. Ou seja, de carne e osso. E falavam! Falaram comigo, a sério que falaram. Até me olharam nos olhos! Um luxo tão grande, tão grande. Enorme.
17/01/2022
Quem descobrir o que é Sêugutrop ganha
Enquanto esperava pelas onze e quatro, hora patente no pequeno retângulo de papel que ditava a minha autorização de saída do recobro da vacina, li dois contos da Luísa Costa Gomes*. O “Hades” e o “Elegancil”. Que duas maravilhas. O “Hades” preferi ainda mais! Contei-lhe as páginas e são seis. Fotografei uma a uma e mandei para a minha irmã que gosta de palavras, a ver se ela lhe pega e, pegando, se gosta. Eu aposto que sim, uma vez que “Hades” é “Hás-de” em Sêugutrop.
*"Contos outra vez", edição da Cotovia. Tem na contracapa uma etiqueta da FNAC de setembro de 1998, de certeza alguém me ofereceu o livro pelo aniversário e, ao contrário do que é costume, não faço ideia quem foi. Que pena.
16/01/2022
Benditas feromonas
Quando, já a tarde se punha esmorecida, levei com a rua na cara à saída do prédio para ir comprar sumos e sobremesa para o jantar com uma das minhas irmãs e correspondentes miúdos, senti-me feliz. É esquisito mas que foi, foi.
Comprei dois sumos, um pacote com chocolates miniatura para o café e milho para a salada. Não vou pôr tomate, hoje não gosto de tomate. Normalmente em janeiro é assim. Lá para maio tornarei a gostar. Hesitei quanto ao queijo branco mas deixei-o ficar descansado. Havia tantas marcas diferentes, e formatos, que me cansei de tentar tomar a decisão por isso não a tomei. Ando assim a meio gás há tempos, daí achar tão estranho o pico de felicidade. Pensando melhor, hoje dormi muito bem, fiz a caminhada toda e comprei o tabuleiro de segurança. Andava há séculos à procura dele, um tabuleiro um bocado bonito para dispor em cima da cómoda com as caixas de cerâmica dentro, em arranjo de rebordos subidos à prova de patinhas felinas deslizadoras-de-objetos-e-deitadoras-dos-mesmos-ao-chão durante a noite. Creio que assim as caixas podem voltar a sair da gaveta onde têm passado mal a pandemia. Portanto, vendo bem as coisas, e entretanto também as caixas, até que não estranho a felicidade que me caiu em cima. Mais: montei as rodas todas, quatro de cada lado, no cesto inferior da lavavajillas, se quisermos uma palavra lindíssima, se não, temos sempre a composição máquina-da-louça, e ele corre sobre rodas. Novas. Está tão bom o cesto. Afinal, tenho imensas razões para a felicidade chegar cá.
(mais: as benditas feromonas parece que estão mesmo a resultar, caramba - quase choro de alegria)
15/01/2022
Spray emergência
Logo após se ter partido a segunda roda do cesto da máquina da loiça e juntando um ou dois suspiros para ganhar ânimo, entrei no google com pouca fé. Escrevi as palavras melhores para a essência da minha precisão. Cestos, máquina, lavar, louça - e não loiça, louça soa mais sério, ó, louça. E a marca. Saiu logo a resposta a valer mais do que a fé propunha. O cesto, na cor, na forma, nas rodas intactas, ali todo na imagem, ao contrário do que tenho em casa, rodas estafadas, duas partidas, como já sabemos, as restantes ameaçando. Isto num eletrodoméstico ainda com futuro brilhante, especialmente por dentro. E com sal comprado também especialmente. Considerando que o meu primeiro pensamento, ainda antes do natal, havia sido “ai que vou ter de comprar uma nova máquina”, estava aqui já a sentir-me com sorte, ganhando pontos, perante a possibilidade de um cesto novo, apenas isso e não toda a máquina, quando, senhores!, outros frutos ainda mais doces se me atravessam ao olhar: no ecrã a imagem de um conjunto de rodas, só elas, todas oito, para substituir no meu próprio cesto. Encomendei, claro. Depois guardei os suspiros no bolso com muito cuidado, pôxa, esta valeu.
Enquanto escrevo isto, dois
gatos correm doidos por aqui, a bufar e a rosnar, o dia começou agreste. Ontem
tinha sido lindamente, as feromonas do difusor mais as do spray emergência a
fazer o bonito, a paz. Tão bom foi o dia que até escrevi ao Dr. dos Gatos, muito contente, a agradecer as dicas das hormonas. Por isso é que estou desanimada, poças, esta agora valeu não.
07/01/2022
As coisas por que passamos por um café
São dezassete e vinte e dois e já anoiteceu. Comendo a maçã que divido com Erik, assomo à janela da cozinha e vejo que na casa vizinha do lado poente, Meicke não está sozinha. Um dos seus filhos está de visita. É aquele que, segundo Erik, vem muitas vezes jantar com ela, aquele que é portador de uma leve deficiência. Ele está sentado, consigo ver daqui, a uma mesa junto à qual um dia, à hora do café, caí de rabo no chão. Foi lindo. Meicke tinha-nos convidado para esse tal café no âmbito da boa convivência com vizinhos em vigor em todo este lado da rua e, quando me vou sentar na cadeira que ela puxa para mim, solícita, pum. Ora eu não havia tirado e portanto ainda envergava, mania dos frios, o velho casaco comprido e grosso, castanho, com o qual havia percorrido a meia dúzia de metros que separam as nossas casas. A cadeira ali disponibilizada para mim animou-se então de um movimento de translação orientado a poente, impulsionada pela minha ampla abordagem na tentativa de nela encaixar o meu aumentado traseiro (lembro o casaco castanho, atenção, comprido e grosso, aliás, muito grosso). A cadeira não se encontrando apta à tarefa de encaixe da minha pessoa na forma de sentada e pronta a tomar o querido café, deixou-se, como dito, deslizar para longe. E eu? Isso: caí no chão com o referido traseiro desamparado, como já disse três vezes. Era aquela uma cadeira com rodas, a saber. Ágil, portanto, leve, silenciosa e pronta a deslizar. Não uma cadeira de rodas, tomar nota, mas uma cadeira com rodas. É diferente. Levantei-me imediatamente, sacudi a pouca vergonha, endireitei o grosso do casaco e encetei uma segunda tentativa agarrando a safada pelos braços de modo avisado e sem margem para erro. Sim, sim.