a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

28/08/2020

Leeuwarden

Visto num jornal local, numa página com fotografias das últimas refeições pedidas (e ingeridas, à exceção deste caso) por norte-americanos condenados à morte.

"Robert Anthony Madden foi executado a 28 de maio de 1997. Ele pediu que a sua última refeição fosse dada a uma pessoa sem abrigo, mas o seu pedido não foi atendido. O Fotógrafo Black acha, por isso, esta foto a mais controversa. Madden terá esfaqueado e atirado em duas pessoas (um pai e um filho). As últimas palavras de Madden foram: "As minhas desculpas pela vossa perda e pela vossa dor. Mas eu não matei essas pessoas. ..."

25/08/2020

Oldeboorn

A meio da tarde, levanto os olhos do livro e foco-os para além da janela, para os descansar. A mulher loira, do outro lado do canal, leva nos braços, empilhadas, as duas cadeiras de jardim para trás da casa. Logo depois regressa, vem buscar o vaso de flores, único acompanhante da mesinha redonda, agora que as cadeiras saíram. Fiquei à espera que ela viesse buscar também a mesinha de certeza para lugar seguro. Antes de desistir e devolver os olhos ao livro - a mesinha lá ficou, órfã, sujeita às leis da intempérie anunciada para a noite, avisto o terceiro gato do dia.

16/08/2020

Tormenta

Anton já não cozinha para ninguém, nem para ele próprio. Também já não passa as suas camisas a ferro. Nem pode conduzir um carro, como o próprio observou esta tarde, mesmo antes de as nuvens pretas desabarem num pranto elétrico, a água furiosa contra os vidros e ele, observando o exterior revolto, a sete meses de completar cem anos de vida, sorri com a tormenta e acrescenta que está a ficar velho.

15/08/2020

Qual a média de maçãs por cabeça, já que precisamos da estatística?

Apanhei três maçãs verdes do chão, com cuidado para não incomodar alguma possível abelha oculta pela curvatura do fruto, não fosse ela virar-se a mim. Mas não. Levei as três peças para a cozinha e lá as parti em pedaços. O dono das vacas disse o mês passado que podemos dar-lhes maçãs, ainda que estas, verdes, intragáveis, desde que partidas em metades, para ajudar a mastigação. Eu parti em mais que metades, ou seja, menos que metades, coitadinhas das vacas. Sabe-se lá. Meti os pedaços  maneiros numa taça e cruzei o jardim com ela até me acercar da cerca. Do outro lado, uma vaca só, afinal. Demorei muito a preparar as maçãs. As outras já tinham ido comer a erva fresca mais para sul. Esta que ficou perto olha para mim e parece que adivinha. Tem a cara cheia de moscas, dá pena. Atirei-lhe então o primeiro pedaço com cuidado para não acertar na cabeça do animal. A minha pontaria não costuma ser excelente. Deu certo. A vaca comeu o pedaço do chão e enquanto o mastigou alguma saliva pendia da sua grande boca. Compreendo, porque a maçã tem um nível de ácido tão forte que faz salivar. Só de pensar já faz.
Atirei outro pedaço à vaca, tive cuidado, e outro e outro, até ficar a taça vazia. Todos os pedaços caíram no chão e todos foram apanhados. A mesma vaca comeu três maçãs inteiras em pedaços, o que parecendo uma contradição, não é. Com isto ficaram outras cinco cabeças de gado para amanhã ou depois não acertar com pedaços de verdes intragáveis maçãs.

06/08/2020

Finalmente o papagaio e outras não histórias

Há um saco de ervilhas geladas a aguardar o naco de frango ingénuo que se estende nas mesmas condições ambientais destinado a uma sexta feira ou algum instante imprevisto.

Na descida em direção ao rio noto que o dedo do pé recentemente acometido daquela última dor sem querer está aconchegado e aí confirmo pelo canto do olho esquerdo o stock de vasinhos de pimentos coloridos en el kiosk.

Mas este quiosque é esse mesmo! Na volta, já quase a esbarrar com a procura das chaves de casa, desenfio os auriculares dos ouvidos para comunicar na manhã ainda fresca. Se faz favor aquele vasinho dos pimentos laranja e logo depois, enquanto se processa a troca, dedico-me ao papagaio!

 

(o naquito de maçã que esta ave comunicadora de ideias fixas segura na pata esquerda fui eu que lhe estendi, hã?)

04/08/2020

Uma espécie de não presente

Para a Flor:

"AVARANDADO

Quarta nota para
a manhã infinita:

Afinal o grande amor
Não garante nada mais
Do que as 12 graças
Desdobradas pelos
Corredores do mundo
Agora isso é mais
Do que suficiente
E apesar dos bofetões
Do tempo invertido
Apesar das visitas
Breves do pavor
A beleza é tudo
O que permanece"

Matilde Campilho in "Jóquei"

Vem-me uma esperança renovada na humanidade ao observar tanta beleza brotando em alguns blogues. E nem sequer são poucos.

03/08/2020

Desergonómico espetante ou espetador (mas mesmo)

No bairro das gaivotas, à hora em que o sino da igreja anuncia o tempo, setenta e três pessoas recebem, nos seus dispositivos eletrónicos em forma de chapa, a mesma mensagem de vídeo. Cinco pessoas consomem-na. As restantes encolhem os ombros. Elas não sabem que a descrença vem do absurdo convívio íntimo com a chapa de vidro e frio, um frio coberto com gordura de dedos e insatisfação. Carregam a chapa tão junto ao corpo que, quente (elas não sabem), chora quieto, ávido de outras curvas, em todas as horas. Nesta também? Sim.

01/08/2020

O brinco estava certo

Subitamente, lembrei-me da máquina de ordenha na grande vacaria que visitei no verão passado. A máquina tinha um pequeno visor associado a cada posto de extração do leite, que exibia o número de série da vaca que o ocupava. Por exemplo, koe* 42. Estes grandes animais enigmáticos carregam na orelha o brinco numerado que os identifica inequivocamente. O lindo que ali vi foi sobretudo serem as próprias vacas a tomar a decisão: é hora de ir à máquina. Faziam fila ordeira junto à entrada de cada posto de ordenha. Quase todas com o depósito tão cheio que se viam as veias mamárias em alto relevo. Elas sabem que daquele processo sairão aliviadas de muitos quilos de leite, em princípio mais de dez quilos se não forem mesmo vinte. Acredito que para elas importe mais o leite em quilos do que em litros, se não se importarem. Como sou freguesa da exatidão quando ela se deixa apurar, e de onde estou só vejo, da vaca, os pés, aguardei os minutos precisos para a número 42 sair da ordenha. Depois, estiquei o pescoço e observei o seu brinco.

*vaca