a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

28/04/2021

Dispositivo programador de interruptores com temperatura de luz morna (é o que é)

Duas casas holandesas mais abaixo, vivia uma senhora avançada em idade e a precisar, desde há tempos, de cuidados de saúde e ajuda nas tarefas básicas. Vinham profissionais dos respetivos serviços. Às vezes, levavam-na pela manhã organizada e traziam-na à tardinha em ordem. À noite, quem passasse na rua sem saber, podia até desconfiar que ali se vivia um ambiente todo acolhedor. Dentro, vislumbravam-se abat-jours em cantos de sala, entre mesinhas, sofás e vasos de orquídeas à janela. Deitavam uma luz morna, dentro da qual só podia caber alegria, bem-estar e música boa acompanhando o som de talheres com aroma a jantar. Há uma semana, mais minuto menos segundo, a senhora foi considerada não apta à situação então vigente, por via de uma queda, e foi recolhida para um lar. A casa ficou vazia. Não passaram porém dois dias, mais segundo menos minuto, e veio alguém profissional, agora de outro ramo, empenhar as jornadas de semana, das oito às cinco, precisamente, na operação de obras no jardim. Entretanto, o quinhão do lado da frente, junto à estrada, já ficou pronto. Exibe nitidamente geometrias. No chão, encontro de ângulos retos, agudos e obtusos de cascalho, relva viçosa e ripas de madeira por escurecer ao sol, obedientes a planos e esquemas. Ao alto, excentricamente, um arbusto vertical com três esferas de folhas perfeitas e diâmetros diferentes, dispostas espaçadamente, ergue-se com o seu fino tronco apontando ao céu. Não sei como fazem aquilo ao arbusto. O jardim foi sujeito, portanto, a uma cirurgia estética, mas não plástica. À noite, quem passe na rua sem saber, pode até desconfiar que ali se vive um ambiente todo acolhedor. Dentro, vislumbram-se os abat-jours em cantos de sala, entre as mesinhas, os sofás e os vasos de orquídeas à janela. Deitam a luz morna, dentro da qual só pode caber a alegria, o bem-estar e a música boa acompanhando o som dos talheres com o aroma do jantar. Mas a casa continua vazia.

26/04/2021

Como se só houvesse algo a dizer quando é de mal

Estão zero graus lá fora mas a sensação real, diz o previsor eletrónico, é de menos um. Precisamente por esta razão há canteiros de flores cobertos com mantas, no caso da vizinha do lado direito, e lençois, numa instância mais acima, noutra rua, isto já desde ontem ao cair da noite holandesa. Não conhecia a prática de cobrir flores com mantas (ou lençois). Só conhecia cobrir os joelhos, os ombros e também o corpo humano na sua quase totalidade (uma vez que normalmente a cabeça fica de fora). As nossas flores, por estarem envasadas, vieram passar a noite gelada dentro de casa. Apesar disto, vai estar um dia de sol.
No mesmo previsor eletrónico, em Lisboa diz que vai chover. Ora eu estou mais calhada para sol do que para chuva, portanto não tenho nada a dizer (nota-se).
(fotografia inspirada no post anterior, para enfeitar) 

22/04/2021

O processo (mas outro)

Amanhã é dia de esvaziar caixotes na rua e em toda esta pequena cidade holandesa. Até que enfim. Uma pessoa está aqui há tantos dias, toda meio confinada meio testada negativamente meio a caminhar na rua desmascarada e ainda uma pessoa não viu a cena mais excitante a alterar a ordem e a tranquilidade muito lindas e que é o esvaziamento de caixotes temáticos. Já sabemos que este é um processo operado por um camião de braço lateral mecânico que aparece na curva impecavelmente limpo. De tal maneira que a gente se distrai do teor lixeiro da situação. Bom. Portanto hoje é o dia de posicionar o próprio caixote da modalidade certa, de forma orientada a sul e à distância bem medida, constante, conhecida de toda a gente, da borda do passeio do lado norte da rua. Ainda não tínhamos chegado à hora de almoço e já havia dois lá fora, alinhados em sentido, aguardando o momento da sua agitação, o momento em que ficam de cabeça para baixo e rabinho para o ar. Como vai ser a vez dos de tampa verde, ou seja, dos de coisas naturais, quer de comer, como caroços de maçã, talos de bróculo ou cascas de batata doce, quer de olhar, por exemplo flores danificadas pelo tempo ou pedaços de sebe que ousaram passar os limites geométricos obtidos cuidadosamente para o jardim, mas como ia dizendo, como é a vez dos da tampa verde, os vizinhos da frente andam desde manhã, de luvas calçadas, a tratar de remover os verdes dejetos indesejados para encher os seus contentores de lixo fresquinho, mesmo antes do processo referido. A eficiência está na ordem do dia, um presente arrumado em caixas imaginárias esculpidas nem que seja no ar primaveril, temos de admitir. Mas note-se que disse contentores no plural, "os seus contentores". Sim, este casal da casa em frente possui não um mas dois na variedade tampa verde. Isto deve-se a uma política orientada para o ambiente. Por outras palavras, deve-se ao simples facto de o segundo contentor – obtido mediante pedido expresso às autoridades competentes - ser de utilização gratuita. Isto o de tampa verde, frisemos. Porque caso algum habitante se ponha por exemplo em exageros na utilização de plásticos e outros materiais de embalagem, enchendo o seu contentor dessa espécie em menos tempo do que aquele que medeia duas passagens do respetivo imaculado camião, esse habitante tem de pagar o segundo. Tem tem. E quem diz o das embalagens, diz o do papel e o do lixo sobrante, de tipos indefinidos, o lixo que os caixotes temáticos não querem. Ora eu, que sou má como tudo na versão holandesa, acho isso mesmo muito bem.

13/04/2021

Uma pessoa nem dá pela chuva

Estou de volta a Lisboa. A viagem decorreu sem singularidades até ao quilómetro 37 da autoestrada A1. Bem ali no começo da zona em que só queremos é embrenhar-nos totalmente na querida capital muito depressa e esquecer todas aquelas construções e painéis horrendos que – vale a pena referir – não fazem totalmente jus ao resto da cidade. Tem muito de feio, Lisboa, mas também não tanto assim como poderia pensar quem entra desprevenido pela A1. Continuo sem compreender a razão de existir daqueles painéis verticais, enormes e desesperados implorando anúncios que, como toda a gente já devia saber, mesmo pessoas pouco modernas como eu, não querem ir para ali, estáticos. Não desde que podem instalar-se dinamicamente em ecrãs pululantes sobre os quais dedos deslizam. Painéis tão feios quanto inúteis, mas adiante, quem sou eu para dizer estas coisas. Ao quilómetro 37 apareceu a singularidade muito frequente no passado e quase ausente do presente: uma grande fila de trânsito, neste caso devido a obras. Tive de reaprender a segurar o pé no travão por muito tempo seguido. Já levava os músculos da perna direita totalmente destreinados da operação, mas vá lá que me safei. Como recompensa, tenho o sossego de estar em Lisboa. Milhares de pessoas vivendo no mesmo bairro, postas por patamares, elevadas por elevadores e abaixadas por eles. Eles que podiam, em alternativa, denominar-se abaixadores. Mas quem quer abaixar-se quando pode elevar-se? Milhares de pessoas tão próximas e tão longe de ideias como virem bater-me à porta a perguntar se quero ovos, pararem-me na rua indagando se sei de alguma casa à venda e, já agora, se a cascata fica longe, pessoas ficando contentes com o meu regresso e prontamente sugerindo mais logo um café no terraço, um café que se estende por toda a tarde, o vale ao fundo, o tempo fluido em torno, os milhafres, a gataria no cio, os piscos de peito ruivo certeiros nos intervalos da vedação, todo esse exagero de vida. 

Um sossego, Lisboa.