Aconteceu hoje.
A máquina fotográfica estava mesmo ao meu lado.
Chamei-lhe um figo e ela captou isto. A ver.
É que fugiram de mim as palavras e calou-se-me a voz. Bem tentei.
(as pessoas que se inscreveram para a viagem a Marte estavam com certeza a brincar)
a voz à solta
29/11/2014
27/11/2014
Coisa tão linda
Lavo as mãos e sento-me à secretária para continuar o trabalho.
A caldeirada de pota do almoço libertou vapores aromáticos típicos que parece que vieram
comigo. Concentro-me, calculo que isto já passa e o resto, que também calculo, não
dá zero.
Despacho-me, há que estar pronta para a reunião das três, já sei como é. Isto feito tem de ficar e eu tenho de ir.
Enquanto teclo os cálculos, o zircónio que me brilha no dedo
brilha-me no dedo. É a receita da primeira hora da tarde, a hora morta, pesada,
fastidiosa, estica o dia para dentro de um bocejo muito comprido, espreguiço-me,
vou mostrar.
(coisa tão linda)
Continua a cheirar a caldeirada de pota, mas eu lavei as
mãos.
À minha esquerda, pendurada na parede, está uma das minhas
obras de arte favoritas, para não dizer uma das minhas paixões, a obra que
contém mais beleza, mais ciência, mais técnica, estudo e dedicação, um trabalho
de uma grande equipa a tempos diferentes, uma pérola ainda incompleta, uma estrela: a
tabela periódica dos elementos.
(pausa para sorrisos rasgados e inclinações amorosas de
cabeças visivelmente enternecidas e um café se for rápido)
O zircónio elegantemente exibido ali em cima também está no
retrato, tem o número quarenta, e portanto não resisto e levo o dedo ao papel, toco no quadrado onde mora
o zirconiozinho que bonito e que cheiro a caldeirada.
Admiro o brilho desta pedra preciosa, hipnotiza-me
ligeiramente, uma riqueza que me faz revirar a mão, inclinar de novo a cabeça
em enternecimento já referido, esquecer por um bocado os cálculos do resto que não
é zero antes que a reunião comece e ver melhor.
Ver melhor e bastante bem a grande mancha amarela muito suspeita com ramificações transversais nos dois sentidos, estrutura
ligeiramente fractal, impressa na manga da minha
bata de trabalho que não tirei para ir à cantina, visto que me fica tão bem.
(Isto é o que acontece
quando tento escrever um post pequeno, curto, rapidez no consumo que há mais
que fazer. O que demorou imenso foi a fotografia)
25/11/2014
Males que vêm por bem ou a borboleta castanha?
A minha colega que apanhou Legionella regressou hoje ao trabalho. Diz que não tem fumado desde
então, sempre foram duas semanas, sorria e estava, pareceu-me, mais brilhante o
seu sorriso. A minha avó, se ali estivesse, teria dito àquela hora há males que vêm por bem.
E eu estou muito de acordo com ela.
Hoje ao final da tarde, quando o trânsito saiu à rua a marcar o ritmo dos dias que caem invariavelmente nos braços das
noites, eu encontrava-me dentro do carro, a minha filha ao meu lado, o
consultório do dentista a ficar para trás, devagar.
Isto não seria interessante notar, se não fosse ter reparado que está uma roda pouco gigante dentro do recinto onde antes pulsava de farturas
e música fanhosa, de luzes coloridas e cheiro a frango assado, de algodão doce colado ao meu nariz e a esperança de mais uma volta na montanha
russa, vá lá, mãe, por favor!, a Feira Popular.
Distraiu-me aquela roda pouco gigante, ou fui eu que cresci?,
e agora distraem-me os gritos da miúda no quarto, porque está aqui uma
borboleta enorme!, das castanhas! e não pára de voar!, ó mãeeeeee!
Difícil não é ter um blogue, difícil é rasgar o tempo sem
doer nada a ninguém e meter-lhe dentro um post, no tempo, fazer uma espécie de sanduíche
de torresmos, assunto que não discuto porque nunca semelhante coisa me cruzou
os dentes, mas há quem aprecie.
Os males que vêm por bem. Há-de ser aqui que chegamos.
Aproveitando o vagar com que rodavam os pneus atrás dos
outros, enquanto a Feira Popular se afasta de nós e eu esqueço o cheiro do
frango assado, lembro-me da velha professora de ginástica do colégio. Ela não morria de amores por mim, acho que nem sabia o meu nome, comigo usava sempre o
apelido. Ao segundo jogo de andebol do sétimo ano, não esqueci, quando viu que eu não metia golo mesmo
nenhum, aliás a bola escolhia muitas mãos, isso era, mas não vinha amiúde aconchegar-se nas minhas, pôs-me o apito pendurado ao pescoço e declarou que a partir dali eu era
o árbitro, tu não jogas nada.
O jogo recomeçou e eu sem ideia certa das regras, esqueci-me
de estudar aquilo, foi ao calhas. Deixei
passar uns minutos e de repente apitei com força.
Porque apitei?!... Ai não era?... Tu vê lá se atinas, que não foi falta! Vou tentar, prometi.
Mais um bocadinho e vejo uma colega muito rápida, parece que
troca as mãos, com certeza aquilo é a tramar alguma, cá vai disto e apito outra vez. Pelo
sim pelo não faço-o com menos força, não vá ser inoportuno apitar naquele
momento e isso aborrecer alguém, com sorte ninguém ouvia, poupava uma maçada a toda
a gente, ouviram. Então?!? Outra vez?!?
A professora apontou os passos largos e o corpo possante para
mim, arrancou-me o apito, tu nem para isto serves, e mandou-me para a baliza, vê
lá se agora defendes.
Não foi estratégia brilhante e isso viu ela daí a
poucochinho quando alguém se lembrou de querer meter um golo e o meu instinto não
quis colaborar, mandou-me fugir da bola em vez de me manter à frente dela, aquilo
parecia que vinha cá com uma força, portanto o golo entrou muito bem, aliás viu-se
ao longo do jogo que veio mesmo com a família toda, à vez, que o instinto é
coisa forte, dificilmente se vira ao contrário e o meu não foi excepção.
Aspirei a borboleta castanha enorme que não parava de voar, com o cano do aspirador apontado ao tecto e a miúda sossegou, já está tudo a
dormir.
Tudo menos eu, que não sei como fazer este mal que sou no andebol, vir por bem.
Tudo menos eu, que não sei como fazer este mal que sou no andebol, vir por bem.
21/11/2014
Pais que não são meus
- A senhora fala português?
Ando a inventar.
Inventei de tricotar um cachecol azul muito bonito com um castanho
entremeado em certos sítios, mas primeiro acendi seis velas de cores
diferentes, espalhei-as pela sala e gastei os fósforos nisto para não queimar
os dedos.
- A senhora fala português?
Inventei de acordar muito cedo e experimentar acender luzes
em casa, mas tinha tanto sono que embati na ombreira da porta e fiz o corredor
todo a esfregar o braço às escuras.
- Português falo e até bastante bem – percebi que a pergunta
era para mim.
A electricidade tinha ficado do lado de fora da porta e eu fui inventar
de tomar banho à luz das velas mas troquei os produtos na aplicação, quando se
está zen não se pode ler miudezas como “shampoo” ou “dê mais brilho ao seu
cabelo”, com esta luz sei lá com que brilho posso contar, de qualquer forma a
coisa lá se fez. Depois, ao sair da casa de banho, tropecei na mala de viagem que ainda
está no chão e lembrei-me dele.
- Então não me arranjava umas moedinhas, que a máquina
ficou-me com o cartão?
Contra a minha mais habitual vontade, também inventei de
comprar numa loja chinesa um chapéu de chuva que abre de repente ao pressionar-se
um botão e torna a fechar de repente pelo mesmo botão, já o usei três vezes e
ainda está bom.
- Moedinhas? – obeservei-o por um momento. Tresanda a tabaco
e a desequilíbrio, os olhos não se fixam, parece que tremem. É domingo à noite,
estamos no aeroporto, eu à espera do táxi para me levar a casa, a mala no chão
ao meu lado.
- Sim, eu vim visitar os meus pais a Castelo Branco e agora
faltam-me doze euros, a máquina ficou-me com o cartão, trabalho em Marrocos, a
senhora não me arranja umas moedinhas?
- Não. Acabo de levantar dinheiro para o táxi e não tenho
moedas.
Não abri a carteira para confirmar. Inventei a certeza de
não ter moedas. Ele afastou-se e fiquei a vê-lo abordar outra pessoa que fala bem português: abriu a carteira e deu-lhe moedas.
E eu, da próxima vez, inventarei uma atitude diferente.
Darei as moedas.
Porque mesmo inventando muito, não preciso de inventar que
trabalho em Marrocos, que a máquina me ficou com um cartão que não tenho e que
fui a Castelo Branco visitar uns pais que não são meus.
Afinal não falei bem.
18/11/2014
Charco do bem comum
Ligo
então o rádio e oiço-a pela segunda vez hoje. Mona Lisa entoada por Nat King
Cole.
Não
gosto desta música. Enjoa-me. É repetitiva. E lembra a Mona Lisa, deve ser essa a ideia, portanto há uma coisa que agora vou dizer.
Ou
antes, declarar, pela primeira vez na minha já longa vida, que não acho graça,
nem muita nem pouca, ao quadro mais conhecido do mundo. Por mais que eu
pestaneje, leia até tarde, fuja da televisão, pague impostos, durma e acorde,
ou os esfregue, os meus olhos gostam é de se fixar em coisas mais, digamos,
evidentes. Um sorriso meio sorriso ou um quarto de sorriso ou um ensaio de
sorriso ou um sorriso tão levemente sorrido ou um sorriso que vem a cair das nuvens torna-se cansativo e a gente não consegue arrumar o assunto de uma vez por
todas.
Eu cá achava mais interessante se o Leonardo tivesse posto a moça a sorrir como deve ser ou séria e
acabou-se. Facilitava a vida às pessoas. Está bem, eu sei que a arte reside
nestas dificuldades, nestes vai não vai, nestes encanares de pernas às rãs, mas a verdade é que andamos nisto, nesta discussão, há
quantos? cinco séculos? As pontes que não se podiam ter já construído, pontes a
ligar terras, a promover o trânsito de produtos, a elevar a economia dos
países, coisas realmente úteis, é que vendo bem cinco séculos são cinco
séculos, não é?
E agora não saia do seu lugar que, mesmo
correndo o risco de este blogue se tornar mal-amado como tudo, isso me
ferir deveras e ter de fechar as portas por falta de visitantes, sai ainda mais
esta verdade: a Mona Lisa nem sequer é bonita.
Tampouco
o vestido a favorece.
Se liga
com as sandálias o Leonardo não quis mostrar, mas isso já vai dos gostos de
cada um e mais não me vou pôr a dizer.
Não vou
porque de qualquer forma, outra verdade, o problema é meu.
Tomemos
o George Clooney. Esse deus da beleza, não é?
Não é.
O sorriso - aí sim vê-se que é sorriso, essa parte está boa - mas o sorriso
costuma abrir-se mais de um lado que do outro, não sai direito, até talvez fosse uma questão de ele treinar mais vezes, não sei, costuma funcionar.
E
depois destas duas pedradas no charco do bem comum estabelecido num caso há
cinco séculos no outro há menos de um, não fico nada contente quando faço
rimas, as rimas são feias, mas eu tenho
pouca arte e nem sei se fiz uma, dizia, não me vou perder, hoje não, que depois destes dois
pedregulhos que acabo de lançar, me resta agradecer a todos a paciência, de
caminho manifestar a minha alegria porque o TEMPO CONTADO acordou, embora...
será que vai voltar?, e deixar mais esta informação, não vá alguém achar
coisas:
O Johnny
Depp vestido de pirata sim, há ali sainete, ou então o Javier Bardem de toda a maneira, lembro-me agora, desde que se exclua o filme em que limpou o país que
não era para velhos e ainda o do zero zero sete, nesses nem quero pensar.
E pronto, ficávamos aqui.
E pronto, ficávamos aqui.
14/11/2014
A dar sede
Para compensar o incompensável, comi um extraordinário, possante,
inchado e estrondoso croissant com chocolate. Quente, como tu.
O momento veio sem eu esperar, era a aula de ginástica
que hoje não houve, e eu meti-o, ao momento, na fenda deste final da tarde
chuvosa que me lavou a alma, o que eu gosto de chuva. Assim sozinha encho-me de ti sem distracções. Não me sentei, na croissanteria não há mesas
nem cadeiras, não há nada senão o essencial. Os fregueses fazem fila mas
hoje não havia, a chuva fecha as pessoas em casa. Tirando eu, estava o
homem do talho com tatuagens nos braços e avental vermelho para não se notar o sangue, de certeza que é, a deliciar-se com um exemplar destes
que já vai a meio, presumo que deve precisar muito de chocolate este homem.
Queimei os dedos com o líquido escuro que sangrava da massa
a fumegar e que cuidei não caísse no chão, já me basta tu sei lá onde.
Não tenho a destreza de quem degusta amiúde estes pedaços de
mau caminho, eu só lá vou duas vezes por ano. Vagueei então pelas montras ao
acaso, vi os sapatos. Detive-me para manobrar mais um fio grosso de chocolate líquido
que quer chegar ao chão depois de me revestir dois dedos, não chegou, mas deu-me
tempo de constatar que os do tipo matacão ainda se vendem, parecem armários
bons para guardar ferramentas. Ou então para caixa de
costura se viessem a pertencer à minha avó.
Passei à montra seguinte, a loja dos brinquedos. Nunca tem ninguém e eu continuo
a achá-los quase todos inúteis. Quanto mais se desenvolvem para subir
no ranking do muito lúdico, menos a
criança tem de imaginar. Enfadada estará ao fim do primeiro tempo, natais e natais que acumulo mostraram-me isto.
Ao imergir nestes pensamentos que não servem para
nada lá se foi a parca destreza e tive de inclinar a cabeça a quarenta e cinco graus, com urgência, para sorver o chocolate a formar piscina no papel que se está a desfazer, mas não me escapa este néctar, são só duas vezes por
ano. Escondi-me atrás da pilha de jogos educativos, que é mais alta que eu, daqui
mesmo inclinada vejo as lupas e as redes de caçar borboletas, a torre eiffel de
construir e um presépio de madeira que custa quase tanto como as botas que quero comprar, escondo-me da lojista que olha para mim fixamente, não vá ela ter ideias brilhantes e
avançar.
Foi aqui que terminou o assunto e eu suspirei. As minhas mãos denunciam na perfeição o que acaba de se passar, ninguém me vê a tricotar meias para bebé. Felizmente a sorte está do meu lado e os lavabos também, de maneira que deslizei lá para dentro e não tomei banho mas praticamente. Pode parecer às pessoas que há exagero, não há. Havia era muito chocolate, muito.
Não sei se este post está a dar sede. A mim costuma dar. Quer dizer, imagino que sim, porque um post destes nunca vi. É único.
És único.
11/11/2014
Castanhas sem gengibre
Dei a reunião por concluída às quatro e meia da tarde e
regressei com o computador ao colo para a secretária, em cima da qual está um
pacotinho com quatro castanhas assadas dentro e lembro-me de repente que hoje é
dia de São Martinho.
Primeiro devolvo a alimentação ao pêcê que estava exaurido de
todo, coordena-se isto bem com a duração da reunião e é no que dá, e depois
trato das castanhas. Quatro dá para pensar muito.
Acho que a minha casa está a ficar farta de mim, com certeza
isso é possível. Eu própria, que sou eu, também de vez em quando fico.
O batente da porta da casa de banho do fundo do corredor
descolou-se e está de costas voltadas, uns nervos. Não lhe mexi.
O ferro de engomar, que passa demasiado tempo na
minha mão, tinha uma pecinha de plástico muito fininha que nas instruções dizia
ser muito importante e que se partiu. Se era importante não devia ser fininha, isto
é fácil, mas já cheguei tarde com a minha opinião, portanto o ferro deixou de o
ser, nem para combater a anemia serve, lixo. De caminho levei uma cadeira velha,
ai que bem me soube, e a alguém também, que já a foi buscar. Geralmente gosto
mais de deitar coisas fora do que de comprar novas.
Que boas estão as castanhas, já só me falta uma e ainda não
pensei tudo.
No outro dia não percebi nada do que o taxista de Delft me
disse no caminho da estação de comboios para o meu destino, que ficava a dois
quilómetros e seiscentos metros e demorava nove minutos, foi o que me valeu, e
vamos lá, esta parte percebi. Mas a seguir não, bem me estiquei e acenei com a
cabeça, nada. Será de mim? A ver se era de mim, pus-me eu a falar o resto do
caminho e o que eu disse percebi tudo. Não era de mim.
Calada agora, que não está aqui ninguém para me ouvir, deito fora as cascas das quatro castanhas e decido ir para casa.
Mas primeiro passo no centro comercial para comprar um
ferro novo. À porta, está uma comprida fila de gente, mesmo junto à senhora do
carrinho das castanhas. Bolas! (sorrio cá comigo a pensar “não podem ver nada!”)
E então lá me lembrei, outra vez de repente, que hoje é dia
de São Martinho.
(mas não tanto como arranjar títulos para posts: o gengibre quis vir, coitadinho, e eu deixei)
10/11/2014
Uma ideia
- Outra vez às escuras?!
Não são poucas as vezes que oiço esta pergunta. E nestas não
poucas vezes, encontro-me na copa de uma árvore, sentada, a baloiçar os pés e a
pensar que sou um pássaro fugido de um quadro do Cruzeiro Seixas.
- Não estou às escuras, se estivesse não me tinhas visto
aqui – respondo.
É que isto irrita-me. O facto de haver um interruptor de luz
na parede não obriga o visitante a accioná-lo, isto deve estar escrito num lado
qualquer, de certeza que está, e se não estiver está agora aqui, que também é
válido.
A copa onde estou não é a da árvore, isso foi bug a meter-se connosco, e Cruzeiro Seixas
apareceu porque é arte que não aprecio, tal como esta perguntazinha. Refiro-me,
isso sim, à copa que dá para o refeitório onde costumo almoçar e que tem a máquina
de café que uso duas ou três vezes por dia, depende de circunstâncias. Esta
copa recebe luz natural que entra pelas enormes janelas da parede oposta do refeitório e recebeu logo na origem, aplicada no tecto, uma luminária de mau gosto e luz branca duvidosa do tipo câmara dos
horrores que, uma vez acesa, confere um tom esverdeado aos rostos de quem ali
está, não há maquiagem que nos valha, e distribui sombras fantasmagóricas por todo o lado.
Eu acho
que na pausa do trabalho as pessoas têm direito a um momento de repouso mental, um recolhimento à penumbra mais um menos sinuosa do
pensamento, o que interessa isso, uma visita a memórias quentes, um refrescar de cansaços antigos, numa
palavra, acolhedor.
E isto enquanto a chávena acolhe o café que corre
borbulhante, libertando o seu aroma insuperável de bom que é. Qualquer pessoa entende isto, mesmo as que não bebem café reconhecem-lhe a superioridade do aroma.
Dependendo do meu interlocutor, se é muito ou pouco de
iniciativas, muito ou pouco observador ou muito ou pouco aberto a diferentes
abordagens dos gestos habituais, posso ter de repente a luz acesa a queimar-me
o cérebro como se estivesse há oito horas na sala de espera de um centro de saúde
com cheiro a clorofórmio e muita ansiedade.
Portanto neste escorvar de semana, caso a qualidade da descrição acima não esteja ao nível do aroma do café, o que pode perfeitamente acontecer - arquitectos, por falar nisso, cadê vocês? - cá está mais uma
fotografia. Imagem colhida este sábado num bar que de acolhedor tem tudo, se situa algures nos Países Baixos e que trago aqui hoje para desejar a todos não um bom natal, lá iremos, mas uma boa, e porque não acolhedora, semana. Voilá.
07/11/2014
Cabeçadas no vidro
A minha secretária anda sendo visitada por formigas
vivas.
A taça dos rebuçados que compro porque me trazem a cor que os
objectos do trabalho carecem ou porque gosto de ver os meus colegas relativamente
comprometidos a virem tirar um rebuçado mesmo que não queiram nada comigo ou
então trouxe a ideia de uma reminiscência da infância, até é bem capaz de ser isto,
mas a taça. É alta e elas não a viram ainda, as formigas, o que me traz a contar os dias,
são experiências.
O que há de estranho nisto não é eu vir aqui escrever uma
coisa que não tem interesse nenhum.
Se contasse que uma vez vi uma abelha entrar-me pela janela
da cozinha, voar para debaixo da mesa, fazer-me ajoelhar porque lhe quis seguir
a rota de voo (não podia dizer que lhe seguia os passos, isso sei eu) e acabar
vendo-a desaparecer no alvéolo por onde tinha entrado um grande parafuso que
segura o tampo a uma perna, acho eu, e depois voltar a sair, o que seria das pessoas?
Talvez quisessem mais, mas também podem ficar já nesta paragem.
Ora a abelha sai do casulo, estando lá dentro não a vejo, e
voa janela fora, desaparece.
Levanto-me e fico ali um pedaço a observar as coisas, olho em volta. No
chão, por baixo do local onde se aloja o parafuso há muitos anos, há um material
amarelado que parece esponja desfeita. Apanho-o e vejo logo quem tratou de fazer
aquele serviço.
E quem tratou de fazer aquele serviço está a entrar-me pela
janela aberta uma vez mais e a ir direitinha sem instruções de voo fazer-me ajoelhar de novo e outra vez meter-se dentro do cilindro escuro onde jaz
a cabeça do parafuso referido, não sei se estamos todos a visualizar a
situação. Eu não tenho jeito para fotografia, mas se tivesse não ajudava muito, estimular a imaginação das pessoas é que é, a ver se dá.
E não sei quantas vezes me ajoelhei, mas a brincadeira
repetiu-se e a esponjinha amarela desfeita continuava a cair do
alvéolo, não queria lá ficar.
Idas e vindas, continuámos assim um bocado. Ao ver-me sozinha de novo, numa ida, fechei a janela. Apanhei os
restos de esponja e reservei para mostrar à família os vestígios de uma
aventura destas.
Antes de seguir com o meu dia e não sem hesitar, olho para a janela e vejo a abelha à procura do
local por onde tinha entrado. Até me parece que deu uma ou duas cabeçadas no vidro.
Não tornei a abrir a janela e isso não foi bonito. Mas também não o seria acordar um sábado de
manhã com uma legião de abelhas acabadas de nascer em casa. Melhor nascerem noutro sítio.
O que há de estranho nisto não é eu vir aqui escrever uma
coisa que não tem interesse nenhum.
O que há de estranho nisto é eu gostar das formigas que
passeiam na secretária onde trabalho e não as matar nem nada.
(e estava para ir dormir, mas de repente leio uma coisa e arrepio caminho –
dá-me saudades não poder comentar naquele blogue, dá dá, saudades e inclinação para escrever uma coisa que não tem interesse nenhum)
05/11/2014
Duras e lindas
Quando saí do trabalho já não estava ninguém no edifício. Os
corredores que atravessam a área administrativa estariam já mergulhados na
escuridão, não fosse o rectângulo luminoso do ecrã da fotocopiadora, que nunca
dorme. Não sei bem onde se acendem as luzes depois de toda a gente sair, mas
não é preciso. Continuei sem abrandar, liguei o alarme e saí nos sessenta
segundos de tolerância antes de começar a sirene aos uivos. Tranquei a porta
com a chave, dei duas voltas e entrei na noite.
Na rua o trânsito engrossou e o termómetro do meu carro
marca treze graus. O outono conseguiu furar o verão e fazer-se sentir.
Finalmente.
Mergulhados na escuridão, disse eu sobre os corredores. Se
fosse nevoeiro, estariam envoltos, tenho a certeza. E se fossem mudar de
emprego, haviam de ir abraçar um novo desafio. Há palavras que quando casam
nunca mais se largam. Devem ficar felizes para sempre, não te parece?
Mas eu ia dentro do carro e agora não quero voltar atrás, os
treze graus vão fora, ai não, não entram, escuridão por aqui também não há
porque os néons e os automóveis cortam-na em pedaços demasiado pequenos para
mergulhos. Ao longe vejo um relâmpago
iluminar o céu, fica dia durante um milisegundo, p'raí, o que não tem graça
nenhuma. Desde que um relâmpago por pouco não me caiu em cima há umas semanas,
fiquei com medo. O carro é que apanhou com ele tão certeiro que lhe fez saltar
a ponta da antena, descarregar a bateria, coisas assim engraçadas num carro, eu
já te contei isto. Mas entretanto recuperou – a bateria, a ponta da antena
ainda não – e tem andado bem, dentro dos limites da velocidade.
Entretanto com a conversa, quase me distraías, já cheguei a
casa e vejo-me em preparos para a aula de dança. Torno a sair para a rua e
cruzo-me outra vez com o rapaz que passeia os cães. Deve ser a pessoa que mais encontro
casualmente, hoje trazia dois grandes e dois pequenos e vinha a sorrir. Parou para me dar os dois beijinhos da praxe e os cães às voltinhas, a arfar,
a esticar as cordas em direcções estranhas, cada um na sua, Renato, és tu que os
passeias ou levam-te eles a ti? está a ficar frio, adeus, prazer em ver-te!
A professora de dança diz que estamos todas moles, como é
possível isso? manda-nos apertar imensos músculos como se tivéssemos onze anos,
e depois vamos ficar duras e lindas, ela é que sabe. Obedeço e esqueço-me que
já aqui vou, os onze anos multiplicaram-se por quatro já lá vão dois, não
preciso de pausa para fazermos as contas, e a vida, que segue depressa, vendo
bem, é cada vez melhor.
Mas sempre quero ver no fim da operação duras-e-lindas. Se até
lá os relâmpagos me passarem todos ao lado, claro. Estás a perceber, não estás?
02/11/2014
De chumbo
Gosto muito mais de café que de chá.
Só bebo chá por interesse. Quando tenho frio. Ou então quando não tenho nada para fazer, o que na verdade não sucede há décadas, acho mesmo que nunca sucedeu, mas era para compor o parágrafo.
Não é que hoje tenha tido frio, que o outono anda a brincar ao verão, mas pus-me a beber um chá de jasmim e morangos, verde e branco não sei se às riscas. O que me causa espanto no mundo do chá é a infinidade de combinações que se podem fazer, e que resultam numa infinidade de sabores, embora sempre todos bastante insipidozinhos, mas vejo muitas vezes, perante uma recheada e colorida prateleira de supermercado, o meu braço direito esticar-se em direcção a uma nova caixa de chá com novos frutos de imaginações férteis, tomara eu.
(a fotografia ajuda ao crédito da afirmação, veio o chá da Holanda, e eu não me importava nada de ter jeito para a fotografia de objectos que até costumam ficar quietos)
E ponho-me nesta conversa que não estava para ser o mote, mas motivos escondidos me levam a escrever um post quando bebo chá, porquê não sei.
O mote era Schubert, oiço milhares de vezes a Ave Maria que ele escreveu e tenho sempre pena que ele tenha morrido tão novo, se tivesse chegado aos trinta e dois, havia de ter ensinado os pássaros a cantar-lhe as músicas, acho eu.
Quando eu tinha filhas pequenas, tinha também um carro pequeno que um dia se lembrou de não deixar sair o CD que estava metido dentro do leitor. Calhou esse ser um CD de Schubert e eu não censurei o carro mesmo nada, até gostava muito dele.
Quando eu tinha filhas pequenas, tinha o tempo também pequeno para levar o carro à oficina só para o fazer devolver-me o CD que ele tinha engolido. O facto de ser possível ouvir o CD vezes sem conta não me motivou por aí além para ir à oficina no meu pequeno tempo. No entanto, à medida que as semanas passavam, os protestos que vinham do banco de trás aumentavam consideravelmente.
- Minhas queridas, esta música, oiçam bem, é linda, é a Ave Maria de Schubert. A tia entrou na igreja ao som desta música - tentei.
Quando eu tinha filhas pequenas - dizem que a repetição das coisas dá muita tranquilidade e eu estou a fazer fé nisto - fui à oficina tentar que um mecânico com muita arte convencesse o carro a devolver-nos o CD de Schubert, visto já o ter deglutido há nada menos que quatro meses, lembro-me bem porque fiz as contas.
Aproximei-me do balcão. De cada lado levo uma filha, a mais nova tem cinco anos.
- Boa tarde, trago aqui a parte frontal do rádio do meu carro, vê o senhor? Este rádio tem lá dentro um CD já há um tempo (omiti a parte dos quatro meses para não manchar a minha imagem) e o CD, embora toque normalmente, não sai nem que a vaca tussa (não tenho a certeza se falei na vaca, mas lembrei-me agora de o fazer e que bem ficou).
Antes que o homem de fato-macaco azul atrás do balcão pudesse responder, oiço do meu lado esquerdo a voz de cinco anos dizer muito depressa, a miúda em bicos de pés para estabelecer contacto visual com o homem:
- Ó senhor, por favor! Arranje o rádio que eu já estou farta da Ave Maria de chumbo!
(o rádio não ficou arranjado dessa vez, foi preciso outra oficina e muita paciência, mas não da minha parte, que eu nunca me farto)
Só bebo chá por interesse. Quando tenho frio. Ou então quando não tenho nada para fazer, o que na verdade não sucede há décadas, acho mesmo que nunca sucedeu, mas era para compor o parágrafo.
Não é que hoje tenha tido frio, que o outono anda a brincar ao verão, mas pus-me a beber um chá de jasmim e morangos, verde e branco não sei se às riscas. O que me causa espanto no mundo do chá é a infinidade de combinações que se podem fazer, e que resultam numa infinidade de sabores, embora sempre todos bastante insipidozinhos, mas vejo muitas vezes, perante uma recheada e colorida prateleira de supermercado, o meu braço direito esticar-se em direcção a uma nova caixa de chá com novos frutos de imaginações férteis, tomara eu.
(a fotografia ajuda ao crédito da afirmação, veio o chá da Holanda, e eu não me importava nada de ter jeito para a fotografia de objectos que até costumam ficar quietos)
E ponho-me nesta conversa que não estava para ser o mote, mas motivos escondidos me levam a escrever um post quando bebo chá, porquê não sei.
O mote era Schubert, oiço milhares de vezes a Ave Maria que ele escreveu e tenho sempre pena que ele tenha morrido tão novo, se tivesse chegado aos trinta e dois, havia de ter ensinado os pássaros a cantar-lhe as músicas, acho eu.
Quando eu tinha filhas pequenas, tinha também um carro pequeno que um dia se lembrou de não deixar sair o CD que estava metido dentro do leitor. Calhou esse ser um CD de Schubert e eu não censurei o carro mesmo nada, até gostava muito dele.
Quando eu tinha filhas pequenas, tinha o tempo também pequeno para levar o carro à oficina só para o fazer devolver-me o CD que ele tinha engolido. O facto de ser possível ouvir o CD vezes sem conta não me motivou por aí além para ir à oficina no meu pequeno tempo. No entanto, à medida que as semanas passavam, os protestos que vinham do banco de trás aumentavam consideravelmente.
- Minhas queridas, esta música, oiçam bem, é linda, é a Ave Maria de Schubert. A tia entrou na igreja ao som desta música - tentei.
Quando eu tinha filhas pequenas - dizem que a repetição das coisas dá muita tranquilidade e eu estou a fazer fé nisto - fui à oficina tentar que um mecânico com muita arte convencesse o carro a devolver-nos o CD de Schubert, visto já o ter deglutido há nada menos que quatro meses, lembro-me bem porque fiz as contas.
Aproximei-me do balcão. De cada lado levo uma filha, a mais nova tem cinco anos.
- Boa tarde, trago aqui a parte frontal do rádio do meu carro, vê o senhor? Este rádio tem lá dentro um CD já há um tempo (omiti a parte dos quatro meses para não manchar a minha imagem) e o CD, embora toque normalmente, não sai nem que a vaca tussa (não tenho a certeza se falei na vaca, mas lembrei-me agora de o fazer e que bem ficou).
Antes que o homem de fato-macaco azul atrás do balcão pudesse responder, oiço do meu lado esquerdo a voz de cinco anos dizer muito depressa, a miúda em bicos de pés para estabelecer contacto visual com o homem:
- Ó senhor, por favor! Arranje o rádio que eu já estou farta da Ave Maria de chumbo!
(o rádio não ficou arranjado dessa vez, foi preciso outra oficina e muita paciência, mas não da minha parte, que eu nunca me farto)
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