Quando saí do trabalho já não estava ninguém no edifício. Os
corredores que atravessam a área administrativa estariam já mergulhados na
escuridão, não fosse o rectângulo luminoso do ecrã da fotocopiadora, que nunca
dorme. Não sei bem onde se acendem as luzes depois de toda a gente sair, mas
não é preciso. Continuei sem abrandar, liguei o alarme e saí nos sessenta
segundos de tolerância antes de começar a sirene aos uivos. Tranquei a porta
com a chave, dei duas voltas e entrei na noite.
Na rua o trânsito engrossou e o termómetro do meu carro
marca treze graus. O outono conseguiu furar o verão e fazer-se sentir.
Finalmente.
Mergulhados na escuridão, disse eu sobre os corredores. Se
fosse nevoeiro, estariam envoltos, tenho a certeza. E se fossem mudar de
emprego, haviam de ir abraçar um novo desafio. Há palavras que quando casam
nunca mais se largam. Devem ficar felizes para sempre, não te parece?
Mas eu ia dentro do carro e agora não quero voltar atrás, os
treze graus vão fora, ai não, não entram, escuridão por aqui também não há
porque os néons e os automóveis cortam-na em pedaços demasiado pequenos para
mergulhos. Ao longe vejo um relâmpago
iluminar o céu, fica dia durante um milisegundo, p'raí, o que não tem graça
nenhuma. Desde que um relâmpago por pouco não me caiu em cima há umas semanas,
fiquei com medo. O carro é que apanhou com ele tão certeiro que lhe fez saltar
a ponta da antena, descarregar a bateria, coisas assim engraçadas num carro, eu
já te contei isto. Mas entretanto recuperou – a bateria, a ponta da antena
ainda não – e tem andado bem, dentro dos limites da velocidade.
Entretanto com a conversa, quase me distraías, já cheguei a
casa e vejo-me em preparos para a aula de dança. Torno a sair para a rua e
cruzo-me outra vez com o rapaz que passeia os cães. Deve ser a pessoa que mais encontro
casualmente, hoje trazia dois grandes e dois pequenos e vinha a sorrir. Parou para me dar os dois beijinhos da praxe e os cães às voltinhas, a arfar,
a esticar as cordas em direcções estranhas, cada um na sua, Renato, és tu que os
passeias ou levam-te eles a ti? está a ficar frio, adeus, prazer em ver-te!
A professora de dança diz que estamos todas moles, como é
possível isso? manda-nos apertar imensos músculos como se tivéssemos onze anos,
e depois vamos ficar duras e lindas, ela é que sabe. Obedeço e esqueço-me que
já aqui vou, os onze anos multiplicaram-se por quatro já lá vão dois, não
preciso de pausa para fazermos as contas, e a vida, que segue depressa, vendo
bem, é cada vez melhor.
Mas sempre quero ver no fim da operação duras-e-lindas. Se até
lá os relâmpagos me passarem todos ao lado, claro. Estás a perceber, não estás?
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