a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/11/2015

Terça feira

Todas as terças feiras do último mês me viram sair de casa depois do jantar, meter-me no carro... não, afinal não viram, porque na garagem costuma estar escuro e eu gosto de fazer o corredor até ao meu carro às escuras enquanto penso que não tenho medo dos ratos imaginários como a minha vizinha do sétimo andar tem e ainda ensaio o andar da Charlize Theron no reclame de um perfume chamado J'adore (isto há anos) em que tudo é dourado e o vestido dela também e depois o vestido cai ao chão no fim daquele caminhar que eu imito mas sem a parte de deixar cair o vestido ao chão, o que me ia atrasar um bocado, além disso sujava-se um vestido tão lindo e para mais não sendo completamente certo não haver ali ratos.

Portanto todas as terças feiras, agora é que é, saio depois do jantar para ir a meio da cidade, ouvindo a música que o rádio está a passar na altura, por exemplo uma ária de Bach, sabe muito melhor ouvir uma ária de Bach quando não se está à espera de ouvir uma ária de Bach do que quando sabemos perfeitamente que foi esse o disco que pusemos a tocar, portanto é assim que vou e vou apanhar três jovens com idades para serem minhas filhas e uma delas por acaso é mesmo minha filha, ao treino de voleibol. Faço a distribuição tipo carreira da noite, ao princípio dava uma grande volta porque me enganava sempre no caminho e uma das mães começava a ligar e a filha dessa mãe a dizer lá atrás sim, mãe, estamos quase, quando ainda eu não estava nada quase, mas a miúda não devia saber. Pelo caminho uma tagarelice sobre os passes, os serviços, o treino, enfim, aqueles nomes técnicos ditos muito depressa (elas falam sempre todas ao mesmo tempo) enquanto eu mergulhada no Bach, é um casamento de mundos que vai bem pela avenida da república fora e eu nestes momentos sou feliz sem querer (a imitar a Charlize Theron também).

Há três viagens atrás aproveitei uma distração na tagarelice e ataquei: então digam-me lá, alguém aí atrás gosta de ler?

- Ó mãe não comeces... - diz a minha filha.
- Não - diz a Joana.
- Sim - diz a Sara.

Isto ao mesmo tempo, evidentemente.
Claro que a Sara e eu fizemos a despesa da conversa o resto desse caminho, a miúda leva um avanço interessante considerando a idade tenra que tem, é a minha tia, diz ela, dá-me muito livros. A conversa das leituras da Sara tem pontuado as viagens desde aí, sem no entanto abandonar a Joana à noite que passa lá fora ou a Bach.

- Porque não lês, Joana?
- Não sei... acho que é porque não tenho livros.


Hoje ao jantar fui informada de que a Joana começou a ler um livro, que está a adorar e que já leu mais de cinquenta páginas. Ora isto também é situação para me fazer feliz.

- E que livro é, filha?
- Não sei, mãe... não me lembro...

Não faz mal. Amanhã é terça feira.

28/11/2015

Um anjo no hospital (post do tamanho de um episódio)

Sentou-se na cadeira ao meu lado na sala de espera improvisada num corredor do hospital. No colo uma mala de pele vermelha, pele vermelha parece que quer dizer índia, mas quer dizer pele vermelha. Da mala retirou um pequeno livro que folheou antes de começar a ler. As folhas curvaram-se em grupo umas sobre as outras e sob a pressão do seu polegar, depois com o alívio do polegar deixaram-se cair na mesma sequência, de novo aplanadas: o som que fizeram as folhas transportou-me para as leituras que fiz nas revistas das seleções do reader's digest há mil anos ou, diria mais, há cem (esta parte lógica baseia-se numa tirada do Obélix, caso contrário eu não me teria metido nisto, evidentemente). Entretanto, ela começou a ler. O livro está escrito em francês, mas eu não consigo daqui ler nada de jeito, e até queria aproveitar porque estou precisada de treinar o francês, mas esticar-me não posso, estou torcida com a dor que aqui me trouxe hoje.

Ao fundo deste corredor feito sala de espera surge um médico que se vê mesmo que é um médico. Aproxima-se dela e diz-lhe em voz relativamente baixa, mas eu capturo tudo, que o meu português continua bom:

- Ela diz para lá ir buscar os iogurtes, tem iogurtes para si.

Depois o médico sacode a cabeça e fala de novo, perante a minha companheira de banco, que ainda não disse nada.

- Mas olhe... eu acho que ela está é nervosa.

- Obrigada - falou agora.

Na minha cabeça formou-se a cena. Esta rapariga cujo francês é melhor que o meu e tem uma mala de pele vermelha está a acompanhar uma doente que tem iogurtes para ela e que não está aqui. Satisfeita com a minha própria dedução, encosto a cabeça na parede atrás de nós e tento relaxar, controlar a dor. De vez em quando a leitora do livro em francês solta uma pequena risada e nunca mais vai buscar os iogurtes. Eu um iogurte até ia, que já não como há imensas horas (não vou repetir a lógica do Obélix para não cansar, mas apetecia-me devido a estar radiante por afinal não ter tido uma faca cirúrgica do tipo bisturi a abrir-me a barriga hoje mesmo) claro que gosto das risadas da minha vizinha, mas fico quieta e continuo sem meter conversa, quero atentar às chamadas dos nomes, o meu há de surgir muito distorcido no altifalante e eu temo não o compreender, apesar de vir em português.

De repente ouve-se uma barulheira vinda do fundo do corredor de onde surgiu há pouco o médico, uma mulher com idade para ser minha mãe e de certeza avó (ou mesmo mãe, ai lá escapou) da rapariga do livro em francês, vem agarrada a um funcionário do hospital que tenta acalmá-la, calma, calma, já vamos, calma, e ela não se acalma, ó Cristina!, Cristina!, onde estás Cristina?, tenho aqui os iogurtes para ti, ó Cristinaaaa!

O rapaz que a acompanha condu-la ao assento vago do outro lado da Cristina, que fechou o livro e está a olhar para eles. A mulher senta-se pesadamente, traz um tubo enfiado na mão, diz que não vê nada, ó Cristinaaaa!!, diz, não, grita, grita que não vê nada, enquanto mete a mão com o tubo dentro da mala cuja cor já não me lembro qual era e procura os iogurtes, Cristina!, tu não comeste nada para vires para aqui comigo e eu estou preocupada, come os iogurtes! (os pontos de exclamação vêm com os gritos).

- Leonor, eu não quero iogurtes - afinal não se trata de mãe e filha (digo eu) nem avó e neta.

- Sim, queres, vais comer os iogurtes!!! Tu não comeste nada, Cristina!!! Eu trouxe-os a pensar em ti!!! - a mão continua dentro da mala e os gritos fora, por todo o lado, eu nesta fase já me tornei admiradora da Cristina.

De repente surgem de dentro da mala cuja cor me escapou, duas embalagens de gelatina de morango pronta a comer no caso de se ter uma colher.

- Isso não são iogurtes - a Cristina pôs em palavras o meu pensamento.

- Não são iogurtes?!

- Não - não tenho a certeza se foi só a Cristina ou se eu também articulei este não.

Mas ela não se fez rogada, espetou com as duas embalagens de gelatina e de secção quadrada, agarradas por um lado no topo, quem já foi ao supermercado e ainda não se fartou deste post de grandes dimensões está mesmo a ver como é, espetou com elas, dizia, em cima do casaco da Cristina, dobrado no seu colo,onde também está a mala de pele vermelha. Não tenho fome, diz a Cristina, come!, tens de comer!, grita a Leonor, mas isso não mata a fome de ninguém, penso eu.

- Está bem. Mas não posso comer isto assim, tens uma colher, Leonor?

A Leonor tem duas e volta com a mão entubada para dentro da mala, sem nunca parar de gritar - toda a sala de espera está, obviamente, a acompanhar, mas creio que mais ninguém tira notas (que são mentais, por causa da dor que tenho). Saem as colheres semi-embrulhadas num pedaço de papel com muito mau aspeto, uma delas está limpa!, grita Leonor, vê lá qual é, Cristina! E os seus dedos esfregam as colheres a ver qual delas é a limpa, o processo dá-lhe tempo de gritar que o médico foi um mal educado!, não, Leonor, o médico teve mesmo muita paciência, paciência?! com aquele tom?!, sim, dificilmente arranjas outro tão paciente. E continua: não tenho fome, Leonor, deixa estar. Nesta altura nota que o seu casaco está sujo, uma das embalagens está a verter gelatina derretida, olha, já me sujou o casaco. E limpa-o com a mão e com muita paciência.

- Então deita isso no lixo, pronto!

O altifalante diz o meu nome seguido de gabinete cinco. Já não vi se as gelatinas foram para o lixo, mas não foi preciso. Bastou-me trazer do hospital a certeza de que os anjos existem e de que foi por ter estado sentada ao lado de um, que a dor se foi embora e a minha barriga chegou a casa inteira.

24/11/2015

Post relativamente parvo, porém necessário

Não consegui decidir qual a árvore mais bela de toda a avenida dom joão segundo à hora do almoço, vou até dizer que se tratou aquilo de um orgasmo visual, tipo mesmo em grande. No fim da alameda, eu já ia relativamente cansada de me forçar a desviar o olhar das laterais arborizadas para não embater nos carros da frente quando, como se não bastasse tanto, apresenta-se-me um grupo de seis à direita, as copas grandes de um verde escuro à excepção de uma mão cheiinha de folhas novas de um verde claro, alinhadas duas a duas, as árvores frondosas, e com um tal entrelaçado de troncos que faz lembrar notas de uma música antiga, perfeitamente habilitadas – digo eu – a fazer o olho de qualquer máquina fotográfica chorar de alegria, incorporada em telemóvel ou independentemente disso. Digo chorar de alegria para não repetir a metáfora do orgasmo visual, o que, se formos bem a ver as coisas, não traz grande diferença.

A dona Esmeralda perguntou-me hoje à tarde, a meio do corredor, ao ver-me de mão na barriga, a minha mão foi estacionar-me na barriga sem eu a mandar propriamente, perguntou-me ela então, não sem um certo entusiasmo no olhar, por cima dos seus óculos dourados, se eu não estou por acaso de bebé: não está por acaso de bebé?... Está de se ver que não sabe ela a minha idade, mas eu, ai foi tão bom ouvir aquilo, tão bom, que fingi não perceber, diga diga, dona Esmeralda, estou quê? só para ela repetir a pergunta, assim em voz baixa e com a cabeça mais próxima de mim do que estaria se me perguntasse que horas são. 

Não, dona Esmeralda, não estou de bebé.

Mas que me deu vontade de estar, ah deu. Era da maneira que não pensava no novo governo, nem no avião militar russo abatido, não pensava no presidente nem nos ministros nem nos atentados que não me canso de incompreender, nem sequer nos refugiados, não pensava em coisa nenhuma que me afligisse porque quando estamos de bebé, temos incorporados filtros muito bons. De forma que recomendo, para quem ainda puder.

É que acima de tudo, já agora, este nosso mundo precisa de mais gente boa. E nós, a gente boa, de podermos continuar a apreciar as belezas do nosso caminho. Em paz e de bebé na barriga. Ou não.

Tikka masala

Saio de casa tentando refazer mentalmente o caminho para a garagem onde levo o carro uma vez por ano à manutenção, normalmente engano-me (hoje também). Já dentro do grande hangar onde penso sempre que não me importava de trabalhar, espero uns minutos enquanto outros clientes que entregam carros da marca do meu - detalhe que sempre me faz sentir ligeiramente irmã daquelas pessoas - contam coisas. Ao chegar a minha vez - quem está a seguir, estou eu - sou informada de que precisamos de dois pneus novos e mais algumas coisas específicas para automóveis. Os de trás estão bons, perguntei, os de trás estão bons, ouvi. Respirei um pouco de alívio e foi quando me ofereceram um carro novo, um motor isto, uma tecnologia aquilo (as voltas que uma pessoa dá para não dizer que carro é este), muito interessante, para eu experimentar, a única coisa que lhe pedimos, minha senhora, é que preencha este pequeno questionário e nos diga a sua opinião sobre o carro no final do dia, quer, quero. Fui, no caminho para o trabalho (nesse nunca me perco), a ser conquistada sem hesitação e, posso mesmo dizer, à maluca - a tal ponto que quase me resvala a vontade para pensamentos completamente fora da caixa - pelo carrinho de pequenas dimensões, mas que giro é o carro. Ou seja, chego ao trabalho muito bem disposta sem querer, acho impossível não ser conquistada por um carro novo, afinal deve ser tão somente isso, seja lá ele que carro for, os estofos desportivos, os pespontos brancos e grossos, o volante todo ergonómico, o azulinho daqui e dali, o rádio na TSF, que rico carrinho, a câmara de estacionamento que me mostra linhas no pavimento e me confunde a manobra, mas isso o problema é meu, evidentemente.

O dia de trabalho fechou em queda (deixei cair uma caixa pesada ao chão ao tentar abrir uma porta estúpida que nem ela, a maçaneta polida sem querer rodar, a caixa a escorregar-me dos braços com equipamentos caros dentro, um deles... ai) portanto saltamos esta parte.

No final do dia, antes de me atirar para o fogão, em casa, a fazer o jantar, e depois de ter entregado o carro que de manhã me conquistou tanto e por mim esperou estacionado o dia inteiro, toda aquela tecnologia ali e eu nada, depois de preenchido o questionário sobre a minha opinião e trazido o meu com dois pneus novos e mais umas peças próprias para carros, já tinha dito, e agora está o período a ficar grande, passei no supermercado. Na caixa, arrumei as compras nos sacos à velocidade mais alta que consegui, quero ir para casa. Duas maçãs reinetas saltaram para fora do saco em que as meti, rolaram para o chão e eu fui atrás delas. Apanhei uma de cada vez enquanto a empregada me anunciava os sessenta euros que eu devia pagar, e meti-as num outro saco. Ouvi então alguém dizer olá e percebi que já era um segundo olá. A mãe de um amigo da minha filha ali na caixa também, a sorrir de me ver de rabo para o ar atrás das maçãs, eu sei bem ler sorrisos, como está, estou bem, trocámos os beijos, ela trazia o cabelo bonito e eu perguntei-lhe pelo filho, se está a gostar do curso, o miúdo entrou na universidade e estuda precisamente o mesmo que eu estudei, que belos tempos foram aqueles, pago as maçãs reinetas e o resto, suspiro, volto para os pneus novinhos em folha com pedacinhos de borracha espetados para fora e vamos para casa.

Inventei tudo, claro. Um prato indiano que levou uma tikka masala pré-preparada e pedaços de uma das maçãs reinetas, metade de um pimento vermelho, frango aos bocadinhos e alho francês, cebola e sementes de mostarda, folhas de caril e quando invento sai bom. Depois de arrumar a cozinha, sentei-me a escrever. Tinha de contar do carrinho novo que hoje foi meu por vinte quilómetros. E a escrever eu não invento. Nota-se.

18/11/2015

Isto tinha sido ontem, mas não quis fazer dois posts no mesmo dia

O chili que sobrou do jantar passou a noite em cima do fogão desligado de propósito. Pela manhã estava o tacho aflitinho para o levar ao frigorífico passar o resto do dia muito fresco. À hora do almoço já o meu chili livre de quenturas mas não de frescuras, e diz-me na cantina a dona Esmeralda quer sopa? hoje não obrigada, então não tem fome, não tenho fome. Resposta perante a qual - reparar bem nesta maravilha que me aconteceu - ela me questiona, evidentemente.

- Mata-bichou tarde, foi?

Pausa feita por mim neste momento.

Mata-quê, dona Esmeralda?

- Se mata-bichou tarde, menina. – a dona Esmeralda já não me trata por menina mas eu nem sempre encaro as verdades de frente se não forem muito lindas – não conhece a expressão?

Ela já está toda satisfeita a olhar-me trocista por cima dos seus óculos conhecidos de ginjeira em toda a Lisboa e Vale do Tejo, gosto imenso de dizer Lisboa e Vale do Tejo, e já me apanhou na curva do tabuleiro que seguro nas mãos, desta vez ganha ela.

Não, não conhecia o verbo mata-bichar. É um verbo interessante na medida em que a parte que se conjuga é aquela que a solo não é verbo nenhum e vice versa mas isto claro que eu não lhe disse, antes levei o pensamento assim encadeado no tabuleiro sem sopa para a mesa e sentei-me com a elegância que me apeteceu. O que eu disse ao sentar-me com a elegância que me apeteceu foi é muito giro esse verbo, dona Esmeralda.

Tão giro que nessa tarde, ao fazer a escolha do almoço da semana seguinte, lá no trabalho somos muito organizados nessa matéria, quase me fugiu a caneta e pus a cruz da terça feira no ensopado de borrego para impressionar a Carla, que me afiança há anos vai para décadas que o ensopado de borrego da nossa cantina é uma maravilha (e a Carla é boa cozinheira, dizem), uma maravilha ou muito bom, depende dos dias, mas ela garante. Eu cá borrego nunca comi, toda a gente sabe isso, não precisamos de ir à minha mãe perguntar, bastou-me cheirar uma vez a panela ao lume tinha eu uns sete anos, fugi. Portanto não, desviei a caneta e votei no prato da dieta como convém às gordas e depois fui para casa tarde e pensei que podia muito bem deixar de ser esquisita, talvez os borregos de hoje sejam mais suaves no cheiro da cozedura, e ia e provava o ensopado para depois contar como ficou admirada a Carla ao observar-me a mim e ao borrego e assim fazer um post como deve ser.

(o chili continua no frigorífico - uma das colegas mais inteligentes que tive em toda a minha vida tinha a palavra frigorífico como password do computador, por isso de vez em quando ocorre-me dar notícias frescas)

17/11/2015

Ser um pouco aqui

Não sou flor nem sou porta. Não sou pássaro (mas aprenderei a voar), não um autocarro. Estou fora de tudo o que não sou. O interstício inteiro de o não eu é que sou. Ocupo no universo um nada de poucos litros (alguns a mais). O não ser é maior do que o ser. Em mim e em ti a maioria do ser, o não ser.

Porém o pouco que fiz, o que dei, quando te abracei, de meus braços saiu, com estas mãos, estes lábios te beijei, te vibrei, com os parcos litros de universo que sou te fiz. Não foi o quê? não foi a flor nem a porta, não o pássaro (que aprendeu a voar) ou o autocarro.

Antes ser um pouco aqui que muitos ali.

(não votarei em candidatos à presidência da república que dizem que estão contra, que é preciso destruir e que não são isto nem são aquilo, não são, e o que são não dizem)

15/11/2015

Amor à vida

Enquanto espero pelo embarque, o voo está atrasado, penso em poesia. Penso, sentada entre desconhecidos, que cada poema é um ser único, existe desde antes de ser escrito. Tem um nome, um determinado número de sílabas, o seu próprio adn, tem alma. E aguarda pelo seu poeta. No botão de uma rosa, num oco de uma árvore morta, no aroma do pão a cozer, numa sombra de luar, no voo da águia, num acorde musical ou no contorno de um cacho de uvas. Depois vem a brisa e leva-o. Transporta-o no seu torso até junto do poeta que o poema designou seu. Sem saber que foi escolhido, o poeta faz uma sílaba, depois outra, põe-lhe uma vírgula, uma rima, dá-lhe uma melodia até que o poema ganhe um corpo inteiro, torna-se autónomo.

Quando finalmente começa o embarque, fecho o pensamento e vagueio com o olhar pelos meus vizinhos: os dois homens que me passam à frente na fila sorrateiramente e eu deixo, a mulher jovem de cabelo cor de laranja que fala inglês alegremente com um homem de cabelo louro, muito comprido. Ela tem dentes bonitos e lembra-me a Cláudia, minha amiga de infância segundo a qual, aos oito anos, eu fazia muitas perguntas.

Logo após aterrar em Eindhoven, ainda dentro do aeroporto, passa por mim alguém que ao telefone comenta, em tom de urgência, qualquer coisa sobre o presidente francês. Os horrendos ataques em Paris tinham acabado de ocorrer.

Hoje continuo a fazer muitas perguntas, faço aliás cada vez mais. Pergunto, por exemplo, que tipo de seres são estes que, em vez de amor à vida, têm-no à morte, à deles e à dos outros.

13/11/2015

Imperfeitamente

Saí do tempo, das flores. 
Nas mãos elas, antes minhas.
Eu no coração. Vivo.
Ontem, hoje não. 

Que é cinza, o ar.
Que do rio subiu.
Um edifício e outro.
E outro engoliu.

Nevoeiro então.
De mim: perdida eu.
Mas nele não. Em ti.

As flores? Não as colhi.

11/11/2015

Não sonhei com Porsches de cor nenhuma (mas parece, por causa do outono)

Tornei a tirar as meias. E a gola alta. O cachecol. Aliás os cachecóis, um calorão. Acordo de noite a transpirar devido ao verão que não dorme nem aí. Daqui a pouco quero ir à praia, no verão-verão falhei todos os dias menos um (a praia) e isso pareceu-me impossível, mas não foi, foi só triste porque fiquei branca-amarelada. Não vejo golfinhos desde dois mil e sete, adorava ver golfinhos desde dois mil e sete. Vi pirilampos, imensos, pois vi, acho que posso dizer milhões ou milhares. De milhões. Vi três javalis bebés (adoro a palavra bebé e bebés adoro também) a atravessar a estrada sozinhos e os faróis do meu carro mostraram que bem penteados eles estavam, um pelo brilhante todos três (extremosa mãe). Apanhei amoras com sobrinhos pequenos e um deles queria apanhar a lua, já contei isto três vezes mas o miúdo é demais, encanta-me e encanta toda a gente aquele miúdo. Mostrei-lhe uma mosca no microscópio e ele adorou ver a mosca, mas da primeira vez deu um salto para trás e disse que gaandes!!! por causa dos olhos da mosca e por falar em olhos, eu cada vez gosto mais das cores, tem sido até que os olhos me doam, com certeza é da idade e dos óculos de ver ao perto que agora tem de ser e por acaso vou comprar mais e uma agenda para dois mil e dezasseis também. Engordei dois quilos e meio desde há um ano disse-me a médica e essa parte não me agrada nada, mas hoje havia molotof na cantina e eu vinguei-me e comi molotof na cantina, mas vinguei-me não sei de quê, e agora aproveito para dizer que a vingança é a coisa mais feia de todas e a inveja a segunda mais feia. Ontem fui almoçar com uma filha das duas que tenho tão lindas as minhas filhas, e fui para repor os níveis de alegria à hora do trabalho e repus os níveis de alegria, até os ultrapassei quando parámos ao lado da montra da Porsche e a minha filha me diz os nomes que deu aos quatro carros que estão lá dentro a brilhar há que tempos sem parar, mas estão parados, porque passa por eles todos os dias a caminho da escola e portanto vai de lhes dar nomes, eu não sabia que ela gostava tanto de Porsches, carros absolutamente inúteis de dentro dos quais normalmente saem homens feios, aliás o problema dos homens é acharem que o carro que guiam se for bonito estão safos, não estão, que quando saem de dentro dele o contraste até valha-me deus ai jesus, o melhor era voltar lá para dentro se faz favor num instante. Uma pena os homens pensarem que têm de ser bonitos, o melhor era pensarem noutra coisa mais útil como aspirar a casa ou ir às compras que ficam logo mais bonitos, imprescindível vibrarem com alguma coisa, isso é preciso ser dito, pelo menos uma, acreditarem no seu coração e rirem quando é para rir e ouvirem quando é para ouvir e não terem a mania que sabem tudo e não se porem com paternalismos que ninguém pediu e nunca dizerem as mulheres não sei quê como se nós fôssemos todas iguais, mas se no fim souberem que nas escadas vão eles à frente, tanto a subir como a descer, então está bem, ok, venha lá o Porsche então.

(é que o outono é a minha estação preferida e o verão está a irritar-me porque não sai de cima,  portanto o post deu nisto)

Clara

Quando quero lá ir à loja, guardo mais tempo do que o necessário às compras, pode ser preciso. Desta vez foi.

Aproximo-me da porta e através do vidro da montra vejo a empregada em cima do escadote a alimentar as prateleiras mais altas com camisolas dobradas. Nunca a tinha visto em cima do escadote, pareceu-me um bom sinal, entrámos, o meu sorriso e eu, olá. Ela olha para mim com uma expressão estéril, pousa as camisolas na prateleira e começa a descer os degraus, agora vejo que está a chorar.

- Então?... - normalmente, quando chora, começa já eu estou lá dentro, já lhe perguntei como vai a vida, não posso fingir que me esqueço, se entrei tenho de perguntar.

Então?... repito. Cumprimentamo-nos com dois beijinhos, ela molha-me a cara com as lágrimas, limpa-as às costas da mão, desculpe querida, já há tanto tempo que não chorava, e agarra-me no braço, esqueço-me sempre do seu nome. Susana. Isso, Susana, desculpe, é que eu não chorava há muito tempo, sabe? por causa dos comprimidos, e agora olhe, é isto. As lágrimas continuam a escorrer embora ela esteja a tentar sorrir para mim. Esfrega a cara com uma mão, depois com a outra, é o meu filho.

Eu sobressalto-me - que de todas as desgraças nos livre deus os nossos filhos - mas ela já está a explicar, partiu o tablet ontem, com a raiva, irritou-se e partiu-o. E eu ainda só paguei a primeira prestação, comprei-lhe o tablet para ele ficar feliz, sabe? a gente faz tudo pelos filhos, e nem estava caro, oitenta euros não achei caro, mas tem de ser a prestações que eu daqui não levo quase nada e do outro trabalho também não, e há a luz para pagar e a renda, sabe como é querida, as contas, e eu disse-lhe, ó filho, a mãe ainda nem pagou o tablet e tu já o partiste. E depois, querida, Clara continua a falar sem parar de chorar, e depois, agarrou-se ao meu telemóvel e também se irritou, atirou-o ao chão, partiu-me o vidro do telemóvel.

- Que idade tem ele agora, Clara? - eu nunca me esqueço do nome dela, que não é este, mas Clara ficar-lhe-ia bem, talvez lhe desse uma vida melhor, Clara é um nome tão lindo.

- Tem oito. Mas está violento, como o pai, ele assistia ao que o pai me fazia, querida, já lhe contei, não já?

Já, já me contou. E continua a contar-me agora, o rol de fracassos, de tristezas, de desesperanças, chego a casa às dez da noite, tão cansada, vou buscá-lo à ama, não faz os trabalhos da escola, o pai não quer saber dele, mas também, se for para lhe bater é melhor assim, as lágrimas a cair, há tanto tempo que eu não chorava querida, por causa dos comprimidos (querida sou eu mas também as outras clientes da loja, quando as há) e agora partiu o tablet, nem entrada dei, oitenta euros, e eu queria ver o meu filho feliz, mas ele irrita-se com tudo, é dos comprimidos, ele também os toma, querida, não sei o que fazer, eu também tive uma infância muito má e acho que a gente carrega a infância toda a vida, não acha?... eu nem devo ser uma boa mãe, de certeza que não sou.

Clara, oiça, mesmo depois das dez da noite, leia uma história ao seu filho, na cama, antes de ele dormir. Cinco minutos, dez, mesmo que esteja a cair de cansada, faça isso, experimente. Tem livros de histórias lá em casa? tem, isso tem. Então experimente. E no seu dia de folga faça um programa com ele, só os dois. Arrisquei: as crianças precisam de ter coisas boas no horizonte próximo, motiva-as para o resto, um momento diário bom, a história ao fim do dia, se possível um programa semanal com a mãe, ele vai sentir-se mais calmo, vai ver.

- E daqui a alguns dias passo por cá a saber como correu. Promete que experimenta?

Ela prometeu e eu saí da loja mais de uma hora depois de ter entrado, com as minhas compras no saco e a esperança ténue de que pelo menos um livro de histórias seja aberto e faça aquilo para que foi criado: dar aconchego a uma criança e fazê-la sentir o arrepio de prazer que na infância nos percorre a espinha quando estamos no calor da nossa mãe.

08/11/2015

Natal de 2038

A passos tantos da descida da avenida da liberdade, mudou o dia, é domingo. A peça que vai no Tivoli terminou há dez minutos ou quinze e eu interrompi os comentários que acerca dela tecíamos, estaquei junto à montra de uma loja, parei as minhas filhas e disse.

- Esta loja é um dos exemplos de que falávamos - tinham-me perguntado horas antes qual a rua em Lisboa com lojas mais caras.

Na montra, o manequim exibe um casaco de fazenda (também pode ser caxemira, admito) em tons outonais, castanho-pastel, padrão escocês não muito intenso, a respirar bem, botões alongados, aberto. Por baixo do casaco, vê-se perfeitamente uma camisa de algodão branco com motivos verde-bandeira (a camisa só pode ser de algodão), não muito bem passada a ferro, não estivesse a loja fechada e eu até ponderava oferecer-me para dar ali um jeitinho. Para além da camisa, o casaco deixa ver uma tira em forma de trapézio da minissaia amarelo-limão, de plástico brilhante (já a saia, se não for de plástico há de ser de borracha), em padrão que imita a pele de um crocodilo de grandes dimensões, talvez mesmo capaz de preencher a avenida na transversal e tocar, em simultâneo, à campainha de um número par com a cauda e à de um número ímpar com o nariz (e depois fugia a correr a esconder-se nas águas do rio). Junto a este manequim assim trajado, está um par de sapatos preto e uma pequena mala de mão.

Então agora vejam lá o preço da saia de plástico, seiscentos e cinquenta euros, mãe, e a camisa de algodão, quinhentos e quarenta, e o casaco, atenção, é comprido, o casaco dois mil e oitenta, faltam os sapatos, setecentos e cinquenta euros. Já passa da meia-noite e dos quatro mil euros nesta montra e ainda não vimos a mala. Bom, a mala é esta, precisamente.

Se não pensar muito na pele de cobra aplicada nas laterais desta peça, nem desgosto. Coubesse lá dentro o meu porta-moedas e eu era ver se não começava já a juntar dinheiro para oferecer a malinha à minha pessoa no natal de 2038.

04/11/2015

Os blogues para alguma coisa?... ai servem servem

Isto torna-se aborrecido.

Eu tenho um blogue pouco movimentado em posts devido a coisas que não interessa nada referir não vá isto assumir o ar de uma queixa e estragar o ramalhete à gente. Mas torna-se aborrecido, dizia, porque eu queria fazer um post muito especial - e vou fazer, não é - e já passou a onda, ou seja, é um post atrasado, enfim. Mas é um post.

É que isto divertiu-me. Imenso. E por me ter divertido tanto (eu não me divirto facilmente, sou sisuda), lanço-me a abrir a caixa de comentários, quero mais, deixa cá ver, mas eram para lá de milhões os comentários (pudera), e entornaram-se todos aqui em cima de mim mas ainda consegui ler o primeiro, a sugestão muito adequada de óculos (usar óculos) e depois a resposta à sugestão, que essa então, deu em desabrir (abrir com muito ímpeto) uma família de gargalhadas aqui no meu peito, é que foi mesmo bom.

(eu disse que este post era especial e além de especial é dedicado, claro)

E então pensei pensei e descobri uma maneira de fechar este assunto em grande, de retribuir, de - em vez de ir lá pôr mais um comentário naquela caixa tão cheia - fazer uma coisa melhor (em princípio): um post que consiste em contar uma anedota das muito boas, aliás ótimas, ou seja daquelas que sempre que contei ninguém conhecia - o que é promissor! - anedota que (espero) vá originar uma família de gargalhadas como a minha, lá na autora daquilo que eu já linkei (vou fingir que não sei os nomes das pessoas que estou a referir, para ser mais engraçado, uma tentativa de brincar ao halloween seja lá isso o que for, que eu normalmente detesto o halloween, e por acaso também já venho atrasada nisso, mas também detesto o dia dos namorados e há outro que agora não me lembro, ah! o carnaval), adiante, dizíamos que vai sair uma anedota que fala de óculos - ou seja, segue a sugestão referida - e fala - atenção - de cães (não a temos visto, pois não?...), mas aqui escuso de explicar, evidentemente.

A anedota.

Dois homens passeiam os seus cães. Um homem tem um Dobermann, o outro tem um Chihuahua. O dono do Dobermann diz para o companheiro: e se fôssemos àquele restaurante comer qualquer coisa? O outro, sensato: acho que ali não nos deixam entrar com os cães.

- Ai não? Então observa lá isto.

O dono do Dobermann saca dos óculos escuros, coloca-os na cara, atravessa a estrada e dirige-se ao restaurante, à entrada do qual está um porteiro, que o detém.

- Não são permitidos animais de estimação no estabelecimento.

- Ah, não, mas o senhor não compreende, eu sou cego e este é o meu cão-guia!

- Um Dobermann?!?!?!.......

- Sim sim, hoje em dia são muito usados, são ótimos cães-guia...

- Pronto, está bem, então entre lá.

O dono do Chihuahua (e o próprio Chihuahua - o atraso do post também se deve ao tempo que se demora a escrever Chihuahua sem erros) observaram a cena e o homem diz para consigo: bem, não custa tentar, porque não?... Saca dos óculos escuros, coloca-os na cara, atravessa a rua e dirige-se ao restaurante.

- Desculpe, não são permitidos animais de estimação no estabelecimento.

- Ah, não, mas o senhor não compreende, eu sou cego e este é o meu cão-guia!

- Um Chihuahua?!?!?!?!?!?!?!?!?!?!??!?!?!?!?!??!?!?!?!?!??!?!?!?!?!?......

- O quê?!?!?...... Deram-me um Chihuahua??????

(estou agora a pensar que se calhar já contei isto no blogue... devia ter tomado nota num papelinho, bolas...)

Um nó horrível na garganta

Já vamos no dia três, faltam doze minutos para o dia quatro e eu com duas histórias para contar e nada até agora. Mas esta noite fiz sopa. E fazer sopa dá-me vontade de escrever. Mais vontade.

Artur tem quinze anos e na escola em que andava no ano passado e no outro ano e no outro antes desse, era gozado por alguns colegas. Sovado, pontapeado, esmurrado. Uma vez foi visto no chão, sem se conseguir levantar, com sangue na cara. Artur tem quinze anos e mudou de escola. Continua um menino calado, isolado, que puxa sozinho a sua mala com rodas e se enfia no canto oposto ao grupo de colegas. Os colegas da nova escola.

Na primeira aula de Física, o professor pediu aos alunos da turma do Artur que dissessem que estudos pretendem seguir depois do secundário. Chegou a vez do Artur.

- Quero ser médico, professor.

Mas o futuro médico manteve-se calado e afastado dos colegas nos intervalos, dia após dia, apesar de um ou outro terem tentado que ele se aproximasse. Ninguém lhe bateu, ninguém o tratou mal na nova escola. Ainda não, pelo menos.

Na semana passada, na aula de Inglês, alguns alunos apresentaram o trabalho que a professora tinha mandado fazer em casa.

O do Artur era sobre bullying. Não precisou de traduzir a palavra, que se enquadrou na mesma língua das outras; o Artur conhece-lhe bem o significado. A apresentação do Artur decorreu no silêncio absoluto, prendeu toda a turma. E terminou assim.

Do you think I enjoy being out of the group? Lonely?

Or do you think I'm shy? Or against my class mates?

Perhaps you think I'm awkward? Selfish? Feeling special?

No. I am only a boy who has a voice inside saying permanently: be careful. Be very careful.


- Mãe... no fim da apresentação do Artur, eu tinha um nó horrível na garganta; não chorei, mas estavam cinco meninas da turma a chorar...

A minha filha andou na mesma escola que o Artur e continua com ele nesta nova escola, desta vez na mesma turma. Hoje perguntei-lhe, ela respondeu: o Artur agora já se chega mais a nós, sim, havemos de conseguir, aos poucos vamos conseguir. Ele vai ficar bem, mãe.

Enquanto passava a sopa com a varinha mágica, pensei se um dia este futuro médico, doutorado em vítima de bullying, não irá por acaso salvar a vida a um dos cobardes que o sovaram.