Saio do edifício e atravesso a estrada, alcanço o passeio do outro lado, ladeio os arbustos aparados que servem de sebe ao espaço comum de um prédio, contorno a curva e estou na rua principal. A tontura vem atrás de mim mas no ginásio ficou fora da coreografia quadrada, só sabe as piruetas que ali não temos e eu quase me esqueci dela, apesar de levar o medo de cair. Agarrando a folhagem do arbusto com os olhos, concentrei o cérebro no frio da noite, continuei a caminhar depressa e levei a mão ao cabelo. Puxei o elástico que o prende num rabo de cavalo como se nada fosse, isto para a despistar. Chegada à passadeira atravessei para o lado onde começa a fieira de prédios que inclui aquele em que vivo. Meto a mão dentro da bolsa da mochila e troco o elástico que me prendia o cabelo pelo molho de chaves, anseio por entrar em casa e tomar o melhor duche de todos que é este (a seguir ao ginásio).
- Olá!
Viro a cabeça e dou com o rapaz que passeia os cães, vem a sair do primeiro prédio e vem sozinho, foi decerto entregar uma encomenda de quatro patas. Sorri, como sempre.
- Olá Renato! - ele abre os braços, abre sempre os braços quando me vê, mas não me abraça, baixa-se parece que meio metro - não sou eu assim tão baixa, é antes ele assim tão alto - e dá-me dois beijos na cara, tem o capuz enfiado na cabeça. Está mais magro, está muito magro e, assim de noite, não se lhe veem as cicatrizes do rosto nem sequer o brilho dos
piercings - como estás?
- Cansado.
A resposta é esta, na verdade é sempre esta quando o encontro e, sem deixar de sorrir, continua - comecei às seis para levar os cães antes de os donos saírem para o trabalho, os que não me dão chave de casa, e hoje ainda vou trabalhar, agora trabalho num bar, ali em baixo perto do rio mas é só apanhar copos, copos por todo o lado, até na casa de banho há copos, é só o que eu faço, mas esses que estão na casa de banho pego com um guardanapo (ri-se). Sem eu perguntar, explica-me o porquê do guardanapo, mas o leitor, que é esperto, não precisa de explicação, eles estão bêbados, continua, lá para as tantas já estão bêbados e às vezes o dono do bar põe-nos fora, eh! fora! (Renato faz o gesto do dono do bar a pôr os bêbados fora, uma espécie de pontapé na noite), e volta aos cães - pega no telefone, que também é esperto mas muito menos que o leitor, evidentemente, e mostra-me as fotografias da cadela arraçada de serra da estrela e do
beagle (o
beagle é lindo, a minha irmã a seguir a mim tem um
beagle daqueles) a brincarem na relva ao sol, a esta tenho de a cansar, conta-me, é muito forte e depois, à noite, se não a canso quer brincar com o miúdo, joga às escondidas com o miúdo, joga joga, eles têm um miúdo, ainda é bébé, o casal que mora ali (aponta para outro prédio), ele é dentista, e no outro dia ela empurrou o bebé para fora da cama, ah! mas não o magoou, queria brincar às duas da manhã, eu bem lhes disse que ela ia crescer e eles não acreditavam, agora ela já me dá por aqui - a mão a marcar a altura da cadela na perna fininha. Eu estou a transpirar e começo a sentir frio, preciso do tal duche que me vai tirar uns poucos de anos ao aspeto, borrifar-me as pétalas, rosar-me as faces, quem toma duches destes sabe muito bem como é.
Por isso não lhe perguntei mais nada, ele está a sorrir e gosta do seu trabalho, agora tem dois, parece feliz o Renato, apesar da vida sem pai e sem mãe e sem ninguém, apesar dos maus tratos da infância, apesar de ser só ele e os cães e agora os copos do bar junto ao rio. Ah! E a velhota de um cão que já morreu e que o chama quando precisa de arranjar o esquentador ou mudar uma lâmpada, o Renato sorri e eu vou tomar duche.
Adeus, Renato, gostei de te ver, bom trabalho!, entrei no prédio. Subi a casa e, só quando uma nuvem de vapor já me escondia de mim própria, me apercebi que a tontura passou.
(Renato tinha tudo para estar no desemprego e levar a vida a queixar-se e a revoltar-se. Mas não foi essa a sua opção.)