Já quase toda a gente saiu. Instalo-me na espécie de hangar, no canto do fundo, ainda iluminado, a usar da minha mão-de-obra para avançar um trabalho que não é bem meu. Os colegas que vim render deixaram-me o rádio ligado numa estação que é do gosto das minhas filhas, mas que bem isto me soube. Até ouvi uma canção de que gosto muito. O trabalho é repetitivo, mas serve-me para descomprimir da batalha da reunião da tarde. À excepção de parteira e segurança pessoal, talvez eu gostasse de fazer quase tudo, desde que faça avançar o mundo um bocadinho (parteira não podia porque desmaio com sangue e segurança pessoal também não por ter pouco músculo nos braços).
Mas eis que passa a dona Esmeralda desfardada, com o seu cabelo à lua, no passo apressado que não a larga, e me deita lá do fundo um cumprimento em voz bem alta: até amanhã, menina, então hoje está aí?, estou sim, dona Esmeralda, calha a todos, até amanhã! E então é que fica o edifício todo vazio, tirando o rádio e eu e mais uma data de tralha inanimada, estou sossegada que é como gosto. Olho para a quantidade de trabalho que ainda tentarei fazer hoje, e decido que é até ali, depois deste monte é mais um.
Quando vou a meio do segundo monte, surge, proveniente do escuro do lado oposto desta sala-hangar, o segurança que traz intenções de fechar tudo à chave (e se calhar também traz músculos, mas eu daqui não vejo). Eu preparo-me para lhe recordar que tenho chave e que ligo o alarme antes de sair. Ele para a uns dez metros de mim (muitos metros) e quase grita de lá: ainda fica muito tempo? fico mais um bocadinho, eu depois fecho, não se preocupe (grito eu daqui). Ah... mas olhe que estão ali a fazer o piso e depois tem de esperar, aquilo vai ficar mole.
- Vai ficar mole?!
- Sim, fica mole e depois o carro cola quando sair, tem de esperar que seque!
Estão a preparar-se lá fora, nesta quase penumbra do fim do dia, para deitar um tapete novo de alcatrão na passagem estreita pela qual o meu carro passará e na qual colará (segundo a opinião do segurança) se ainda estiver mole o piso. Caso eu opte por passar a pé, colar-se-ão os meus sapatos de salto alto que eu hoje não trouxe outros e não há forma alternativa de sair daqui. Pensei na Teresa, que já estaria a caminho para o nosso jantar, combinado e adiado duas vezes. Desligo o que estou a fazer, separo bem a metade do monte feita da não feita, arranco uma folha de papel do bloco que está ali a ouvir música comigo, rabisco uma nota à pressa para o colega da manhã que vai continuar, arranco a ficha do rádio da tomada da parede, corro para o quadro elétrico e desligo as luzes, vou à minha sala também a correr, passo pela casa de banho mas não entro, não dá tempo, dispo o equipamento de trabalho, pego na mala e no casaco e corro porta fora, subo a rampa a correr onde já vejo máquinas a rugir e a posicionarem-se para iniciar os trabalhos, uma delas com cilindros de calcar estradas mas o piso ainda está intacto e eu tenho boas hipóteses. Dirijo-me ao condutor da máquina-cilindro e meto a cunha: olhe se faz favor, o senhor...
- Hello?! - o condutor do cilindro parece irlandês e eu acabei de perceber por que não foi o segurança a mandar esperar este homem.
- Hello?! Do you speak english?!... - eu admirada e esbaforida.
- Yes. Only english, sorry.
- Ok... Will you please wait with that machine until I take my car out of here?
- Sure, madam. Go ahead.
Enquanto passava com o carro no piso ainda esburacado, pensei que talvez não tivesse sido muito esclarecedor escrever no bilhete para o meu colega da manhã, "fiz até aqui, tive de sair à pressa para o carro não colar".
Colar às vezes é grave, lembrei-me da expressão, " o motor colou", mas não seria o caso, visto que por aí era o carro todo que colava. :) Por outro lado, colar pode ser bom; se for uma asa partida ainda deve dar para voar...
ResponderEliminarEspero que tenhas jantado bem com a Teresa que não sou eu. :)
Boa noite, querida Susana, que divertido foi ler o teu texto. Oxalá os sapatos do teu colega não fiquem colados ao chão antes de conseguir ler o bilhete...
Jantei muito bem com a Teresa que não és tu (mas por acaso falei-lhe de ti). :-)
EliminarColarmo-nos ao que é bom e descolarmo-nos do que nos pesa nas asas e não nos deixa voar. Tu eras pessoa para escrever qualquer coisa boa sobre isto, Teresa, aí na companhia desses pardais sortudos (e azuis). :-)
Ninguém ficou colado ao chão hoje, mas ainda estava fresco de manhã...
Se o colega for homem percebe de certeza. Caso contrário, primeiro sorri e depois imagina pelo menos meia dúzia de hipóteses.
ResponderEliminarIsto porque é uma linguagem mais masculina.
Beijo, Susana!
Este meu colega anda todo feliz da vida porque vai ser pai e acho que no momento presente nem pensa noutra coisa, carros incluídos :-) aliás, não chegou a ver o meu bilhete, porque eu cheguei a tempo de o retirar. :-)
EliminarOutro beijo, Isabel.
Ufa... E isso é assim? Sem aviso prévio? Sem sinalização? Olha se o segurança não fazia a ronda pela sala-hangar nesse preciso momento...
ResponderEliminarSem nada, luísa. Mas como já era uma hora oficialmente fora do horário laboral... enfim, desculpa-se. Felizmente, safei-me a tempo.
Eliminar:-)
Carro a colar é que não, que o carro é necessário para voltar para o ninho a toda a pressa. Já o colega deve ter achado o bilhete no mínimo estranho, ou então não. Com os homens nunca se sabe :))
ResponderEliminarPor acaso eu gostava de saber o que teria acontecido com o carro a colar e a - quem sabe - arrancar duas tiras de tapete de alcatrão fresco que grudavam nas rodas e depois com elas aumentar imenso o tamanho dos pneus até já quase não se ver carro... :-) (pelo menos é engraçado de imaginar, não é?)
EliminarO meu colega não viu o bilhete... (mas ele já sabe que eu sou um bocado estranha... às vezes... por isso talvez não estranhasse)