a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

14/02/2014

Meninice

A sala de espera da clínica médica estava cheia e quente.

O ar que paira entre nós já terá entrado e saído de todos os pares de pulmões presentes, está exausto e resta-lhe pouco oxigénio na composição, pressinto-lhe antes um cocktail de microorganismos satisfeitos com o banquete. As janelas, há janelas, deixam-me daqui ver a rua e constatar que agora, coincidência, agora não chove, estão fechadas. As minhas mãos estão guardadas uma dentro da outra, ajudam-se mutuamente a conter os espasmos de vontade de se lançarem ao puxador mais próximo para deixar renovar o ar só um bocadinho.

Fico quieta, há aqui gente doente que não quer correntes de ar, disso sei eu.

A senhora idosa sentada à nossa direita veste um casaco verde bandeira, tem o cabelo arranjado, pintado de um tom laranja que está aos gritos com o verde da bandeira, não se conseguem entender, os lábios de batom vermelho vivo desenham o resto do quadro. De vez em quando a senhora tosse com fulgor para a cova da mão que retira previamente, vejo certa elegância?, de junto da outra, sim é elegância, vestígios mas elegância.

Fiquei atenta. Enternecem-me as mulheres que não aceitam por dá cá aquela palha a chegada da velhice, que a detêm à porta da vizinha e se possível a empurram lá para dentro, que a afogam no cabeleireiro em visitas cada vez mais frequentes, que a mascaram com batom vermelho desenhado a fininho porque a carne dos lábios consumiu-se nos credos da vida, batom vermelho que com sorte não se estica aos dentes, mulheres que penduram a elegância do andar nas roupas vistosas dentro das quais se metem, que se agarram à última centelha de juventude, que querem viver e viver.

Continuei atenta.

Uma menina avaliada em quatro anos de idade pela minha filha adolescente, está no campo de visão desta senhora. A criança joga num tablet de dimensões que me pareceram infantis um jogo de manobras rápidas com o dedo pequenino, sábio, sábio mas ainda não completamente, que oiço a vozinha aguda dizer à mãe, ai morri.

Mas neste jogo as vidas são muitas e o dedito ágil retomou os deslizes e os volteios que me fazem lembrar a patinagem artística que eu gostava de ver na televisão quando tinha dedos daquele tamanho.

Mas voltemos à senhora. A dos vestígios de elegância, a que afoga a chegada da velhice, a que se desenha de vermelho, voltemos a ela que é nela que a vida é mais intensa agora: enterneceu-se com esta criança de dedos ágeis que não se importa de morrer porque neste jogo a morte não é a sério, e sorriu.

Sorriu e ficou a sorrir. A cabeça armada de cabelo laranja esqueceu-se da velhice e inclinou-se ligeiramente, estou a ver outra vez a elegância, estou estou, inclinou-se para admirar melhor, será?, admirar a meninice à sua frente.

E foi um sorriso tão bonito que acredito ter eu sorrido também.

Tão bonito que tenho a impressão de ter renovado o ar.

E me ter curado a mim do medo de um dia também envelhecer.

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