O
Professor tem, agora, o dobro da minha idade.
Costumávamos,
duas vezes por ano, ou três, almoçar.
Eu,
muito direita na cadeira com as pernas firmemente posicionadas para que o
guardanapo não me escorregasse do colo, mantinha o trato formal que a ocasião
pedia. Mas, ao mesmo tempo, não escondia completamente uma dose de
deslumbramento enquanto ouvia as suas histórias.
Certa
vez contou-me como tentou levar uma embarcação de Peniche à praia da
Consolação, ou vice versa, e quase morreu afogado naquele mar revolto, tendo
terminado a viagem na praia de onde tinha saído, muitas horas e muitos
mergulhos depois.
Por
vezes esquecia-se de comer, ou talvez comesse as recordações que lhe iluminavam
as histórias, os novos não se interessam por estas coisas, dizia-me, sabe qual
é a diferença entre um país desenvolvido e um país subdesenvolvido como o
nosso? É que num país desenvolvido, se a tarefa não foi realizada, apresenta-se
alternativa, as pessoas buscam soluções, num país subdesenvolvido justifica-se
o incumprimento com desculpas e ficamos assim. Disse-me isto tudo a olhar-me
por cima dos óculos, como se avaliasse em qual dos lados eu me encaixo.
De uma
outra vez, no restaurante do Museu do Azulejo, local eleito para os almoços,
com a carta das sobremesas na mão, fruta da época, mousse de chocolate não,
pudim, hum, doce da avó, não, pausa, e depois, outra vez por cima dos óculos,
quase em surdina, sabe o que me apetece mesmo? E eu a arregalar os olhos, o
Professor vai-me dizer o que lhe apetece mesmo, vai?, pensei. Vai: era outro
prato de tostas fininhas com manteiga, daquelas que serviram no couvert.
-
Parece-lhe despropositado?
Ora eu,
para quem a vida é com as cores todas que se vive e o mais intensamente
possível, chamei de imediato o empregado e fiz o pedido, acenando com a cabeça
para confirmar, quando vi os olhos do rapaz abrirem-se mais, interrogativos.
- Só
isto? - perguntou o Professor perante o pratinho parco de fatias fininhas de
pão tostado que lhe puseram à frente.
- Mais,
traga mais, se faz favor.
- Muito
mais! - corrigiu ele, com um sorriso que eu não lhe conhecia.
Deixámos
de almoçar depois do engasgo. O arroz de bacalhau não quis descer, nem a água
que ele bebeu ajudou a empurrar, voltou o arroz para trás, o bacalhau e a água,
o guardanapo fez as honras da casa, recebeu tudo, ele correu à casa de banho e
eu apanhei um grande susto.
Quando
saiu trazia os dentes na mão, um sorriso de menino envergonhado, a cabeça
curvada, parecia mais baixo. Na minha garganta formou-se um nó mas guardei as lágrimas
para depois.
Primeiro,
conduzi-o a casa no carro dele.
Hoje,
passados um par de anos, telefonou-me. Disse-me que os engasgos passaram por
completo porque foi ao médico e o médico tirou-lhe os bloqueios. Que está
velho, que não lhe renovaram a carta de condução, que a vista piorou
muito.
- Mas
comprei um veículo com quatro rodas e cinto de segurança, uma espécie de mota,
sabe?
- Uma
mota?!
- Uma
espécie, não é bem uma mota, tem quatro rodas - repetiu. Mas para irmos almoçar
eu apanho um táxi. Está cá para a semana ou vai de férias?