a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

24/10/2020

Aspirador(a)

Ainda por causa desse mistério enervante que é a poesia: já sei! É ao ser depositada, desenrolada ou assentada em torno de um objeto funcional, completamente desprovido de alma, liso como um decreto-lei, cinzentinho qual declaração para as finanças, ainda que absolutamente indispensável, é nessa altura, dizia-se, largura ou comprimento que a poesia mais descansa, respira e rejubila. Porque aí ela pode, então, deixar o seu papel de exceder tudo, todos, o espaço, o tempo, a soberba canseira, aí pode a poesia descansar, repetimos, respirar e rejubilar, também. Se, por outro lado, a obrigarmos a ladear uma doce beira-mar, a pôr-se com o sol, cintilar com a lua ou ainda dançar ao vento primaveril, ou, coitada, a fazer parcerias de fusão com o amor, que amor, ela terá de duramente lutar para não se ofuscar. Nem mesmo quando é servida em rimas tipo isto assim.

6 comentários:

  1. Ora, muito bom... Amei :) 🙏
    **
    O presente e um futuro...num passado
    -
    Beijos, e um excelente fim de semana.

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  2. Talvez por isso Florbela tenha dito que ser poeta é ser mais alto, é ser maior do que os Homens.
    Porque mesmo em momentos de sentir superlativo a poesia conseguirá, não digo elevar-se em relação ao momento, mas, saber como equiparar-se através de um "bom tradutor", perdão, através de um poeta.
    A maioria de nós dirá: "Isto só visto, só sentido, não dá para explicar". Não conseguimos encontrar o alinhamento de palavras certo para estar à altura da dimensão daquele sentir, mas os poetas conseguem, de tal forma, que nós, comuns mortais, olhamos para certas "definições" dessas vivências superlativas, olhamos para a forma como outros souberam expressar o que nós próprios sentimos em determinados momentos, e, então, entre aspas ou apenas indicando o nome do autor, usamos o bordado de palavras que eles souberam fazer por nós.
    Para mim, o grande mistério da poesia, estará na liberdade em acontecer. Assim, poderá estar igualmente na degustação de um lombo de porco (desculpa ;-)) como num pôr de sol. Creio que não gostará do espartilho de temáticas mais apropriadas, acontece e pronto.
    A parceria de fusão com o amor, recorrente, nascerá da conjugação de sentimento superlativo mais a parte em que acontece e pronto, ou seja, da semelhança entre eles.
    Claro que sim, claro que poderá forçar-se a poesia, fazê-la caber, moldá-la, fazê-la usar um espartilho de conveniência, e, claro que sim, poderá fazer-se exactamente o mesmo com o amor, mas, nesse caso, e salvo melhor opinião, não estaremos, nem a falar de verdadeira poesia, ou poesia digna desse nome, nem de verdadeiro amor, ou de amor digno desse nome, para isso, não precisaria o poeta de ser mais alto, de ser maior do que os Homens.

    As coisas que me levas a pensar e a escrever :-). Que me perdoem todos os poetas, se não souber o que digo, mas, e para aumentar a minha culpa, adorei estar aqui a pensar nisto e a escrever ao mesmo tempo.

    Obrigada, Susana :-)

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    1. E eu também adoro conversar e conversar contigo, Cláudia.
      Obrigada pela reflexão. Como sempre, semeias (mais) empatia.
      A poesia é uma espécie de "gluão", uma partícula ínfima que tem a função de "colar" as outras, na matéria. Este gluão poesia é sem dúvida um mistério. E tanto tem facetas, para mim, aborrecidas até mais não, como as tem de me lançarem para o cimo de uma árvore e depois ser um caso sério descer dali.
      Desejo-te uma semana cheia de poesia, se puderes.
      :-)

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  3. A poesia é, de facto, coisa diversa; olhares. Tem música. Eu até sou da opinião que, para alguém chegar à poesia que vale a pena, escrevê-la, tem de ouvir carradas industriais de música antes. Mas o mais importante é que a poesia, ao contrário das qualidades de «tese» de um romance, faz-se numa construção musical simbiótica entre quem lavra e quem colhe. Qual dos gestos o mais verdadeiro, é a questão.

    Portanto, nem existem poetas difíceis de ler e enigmáticos. Provavelmente, existe é a ignorância do leitor quanto àquela música. Claro, com isto não quero afirmar que sou relativista ao extremo, anti-dogmático, senhor de uma democracia podre que tudo admite: existem poetas burros, poetas que acham que são poetas, poesia sem a ser. Mas esta é só a minha visão. Errada ou correcta, quem quer saber o que é errado ou correcto neste mundo que só fala a partir de dentro e não sai pela boca?

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    1. Um pedaço de poesia em prosa é este teu comentário, Diogo.
      E concordo, não é só saber escrevê-la (como tu sabes, por exemplo!!), é também preciso saber degustá-la. Aí é que a porca torce o rabo na parte que me toca! :-)
      De facto, tal como a música. Esta também sabe inserir-se bem dentro de um nucleo celular nosso e aí se meter a cozinhar-nos os fluidos. Ou então passa veloz ao lado e a gente nem a ouve.
      (quando editas um livro com os teus poemas, by the way?)
      Beijinhos, amigo Diogo, boa semana.

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