Estou na porta de embarque para regressar a Lisboa, estou muitas vezes em portas de embarque para regressar a Lisboa, mas desta tenho a mão enfiada dentro do saco, que já sabemos que não tem dívidas para com o tamanho, à procura de dois bocados do meu coração que me fugiram do peito não sei se foi no controlo por raios X se no porto de Roterdão, a minha mão às voltas às voltas, ai que vos apanho ó bocados, o meu olhar preso no tecto isso é que não sei porquê, e é quando ela passa por mim.
Caminha devagar, o peso do seu corpo alterna o descanso entre um pé e o outro, demora-se nas transferências, carrega a vida toda, a dela e a de mais quem, arrasta uma cauda de fardos que vi.
A minha mão parou dentro do saco e eu então vi os muitos almoços cozinhados ao calor dilatante do fogão, as infindas horas em pé a engomar os panos dos seus amores pequeninos e os dos grandes, será que vejo dos grandes, o vergar deste corpo tantas vezes repetido, mãos espalmadas no colchão para que o lençol fique bem esticado, é bem esticados que os lençóis são, mãos que terminam a reconstrução do quarto depois do sono que vai medrando os seus meninos, consolando os seus amores, esquecida de si própria, transporta latente a hesitação num caminhar mal ensaiado, aprendente, a hesitação que desencoraja quem sempre serviu de ser agora servida.
- Venha para aqui, mãe - a filha estende o braço oferecendo a ilusão de que a mãe precisa, já falta pouco.
Não tiro os olhos dela, ainda não vi tudo. Leio-lhe no cabelo estragado aos sábados em cabeleireiros baratos, que procurou as palavras que vinham sempre no final, um final tão igual.
- Que bonita está, dona Emília!
Será Emília, aqui para nós. E então brilhar-lhe-iam os olhos um bocadinho, um brilho comprado em pacotinhos nesses sábados antigos, já mortos, às raparigas que lhe penteavam histórias ao toucador.
Engoli qualquer coisa que tinha na garganta, a querer sair, e olhei para o avião, lá fora. O meu coração está inteiro, afinal.
E depois percebi que foi hoje que comecei a envelhecer.
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