a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

21/09/2015

Fazem falta

Nunca aqui escrevi sobre este meu colega que hoje vem ter comigo e me pede duas coisas, põe um bloquinho de papéis azuis em cima da minha mesa para eu escrever as coisas que ele me pede quando tiver tempo de as encontrar se faz favor e depois eu digo espera aí um bocadinho que já levas mas a rede está lenta nesta segunda feira de verão que isto é um verão que aqui está, ele à espera o bocadinho que eu pedi, sem vontade nenhuma, a mexer-se para se ir embora, depois dás-me quando puderes, não é pressa, e eu é a rede que está parva, a ver se vai agora, que eu quero é despachar-me, espera lá e depois sem eu querer acontece-me pegar nos óculos de ver ao perto e pô-los na cara.

Esta parte se fosse num filme seria rodada em câmara lenta para lhe conferir o essencial, os meus imprescindíveis e recentíssimos companheiros do dia a dia, muito bonitos os meus óculos de ver ao perto, o meu colega já traz os dele, feios, pendurados num colarzinho desde que o conheço há muitos natais, é rapaz entradote, o meu colega, e está a olhar para mim como quem pensa que nunca me tinha visto os óculos e eu a fazer conversa enquanto a rede não quer vir, digo isto assim

- Foi num instante. Já preciso deles, há um mês era ainda capaz, ou dois, mas agora... foi num instante. Estamos velhos, meu caro.  

Ora o meu colega, nada caro, em vez de dizer o que devia ter dito do tipo tu nada velha muito nova e eu é que sim muito velho, porque afinal seria essa a verdade mais adequada, estica-se todo a olhar por cima da minha cabeça, sem óculos nenhuns na cara, o gajo, os óculos feios pendurados no colarzinho ao peito e lê, para mostrar que ele nada velho

- Fazem falta.

Pendurei-o na minha parede em novembro de dois mil e treze, leio-o de vez em quando desde então e sempre que necessito de refrescar a prece, o pedido, a reza, o desejo. O meu colega só lê o título, o resto ele não consegue de onde se encontra nem eu o convido, isso é que era bom, o post é meu e é a mim que (também) fazem falta pessoas assim.

10 comentários:

  1. Isso assusta. Escrito nas paredes é responsabilidade a mais.
    (a mim também já fazem falta uns óculos de ver ao perto)
    Um abraço, Susana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. "A mais" não acredito que seja, querida MP. Aquele escrito na parede há quase dois anos tem-se aguentado bem a todas as vicissitudes a que assiste. :-)
      (a si também? tão jovem?)
      Outro abraço (dos valentes, como os seus escritos).

      Eliminar
    2. Dobrando os quarenta, é inevitável. Deixar de ver ao perto não é doença, é fatalidade. Creio que deve assemelhar-se ao que acontece à memória. A partir de certa idade, escapa-nos a lembrança do filme de ontem, do compromisso marcado para mais logo, do que comemos ainda hoje ao pequeno-almoço, mas sobrevivem intactas as recordações remotas, os mais impertinentes detalhes da infância, a decoração das casas que entretanto ruíram, as palavras e os percursos da rotina que já não temos.
      Adio a compra dos óculos porque ainda consigo ler livros. Mas sms e bulas... nicles.
      Até já.

      Eliminar
    3. Os meus quarenta já os dobrei há sete e só agora é que me caiu esta mosca na sopa. Ainda me sinto um pouco atordoada e os meus olhos também, principalmente o esquerdo, que chora muito, coitadinho. :-)
      Quanto a sms é de facto pena já não conseguir ler, agora bulas.... será só para quando precisar delas, não é?... :-)
      (e o que me sabe bem tê-la por aqui a conversar connosco?)
      Até já, MP.

      Eliminar
  2. Um texto nada piegas, esse do blogue que citaste no final.
    Sabes que eu também tenho uns recentíssimos companheiros desses? E aconteceu o previsto e previamente explicado: os olhos deixaram de fazer a ginástica habitual, tornaram-se preguiçosos, e a sensação é a de ver pior do que via. Dizem que depois estabiliza.
    Contudo, as pessoas continuam a fazer-me mais falta do que os óculos.
    Beijo, Susana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Nada piegas e muito menos inútil, eu que o diga.
      Companheiros de leitura, esses, relação que se antevê duradoura, esta. :-) (aposto que os teus óculos são quase mais giros que os meus, quase)
      É mesmo, as pessoas primeiro, Isabel, fazem falta. Mas não todas.
      Outro beijo.

      Eliminar
  3. Ao colega até fazia falta conseguir ler o post do link...

    Quanto a óculos, uso-os desde criança e agora, com as lentes progressivas, aparentemente iguaizinhas às outras, quem é que vai saber que estou mais velha? :))

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Luísa, com um pezinho como aquele que mostraste no outro dia dentro de água, ninguém te acha velha. E já vimos que há jovens a precisar de óculos...será dos blogues? ai...
      (na mouche, querida Luísa, aquele colega precisava de ler o post sim, se precisava)

      Eliminar
  4. E o que há por aí de gente que só consegue ler os títulos...pronto, não vou bater mais nos ceguinhos ;-).
    Obrigada pelo texto que me deste a conhecer, nessa altura ainda não lia blogs. Fazem falta, fazem. E é bom existirem pessoas a dizê-lo tão bem. Um dia escrevo um mail a uma blogger que, tanta vez através dos seus textos, me confronta com o que eu própria tenho em falta. Em sede própria e de forma mais completa, hei de dizer-lhe.
    Beijinhos, minha querida e jovem Susana :-)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E o que há por aí de gente que, em lendo só os títulos, fala dos conteúdos como se deles muito soubesse? Ceguinhos são aqueles que os ouvem, a estes.
      Eu comecei a ler blogues em 2010, ou melhor, um blogue, o Tempo Contado, porque lhe vi o url no final de um livro do seu autor. :-) por acaso o mãe preocupada estava na lista dele de blogues, nessa altura ele tinha lista.
      Desejo-te um óptimo dia, querida Cláudia. E retribuo os beijinhos.

      Eliminar