O melhor é ir lá atrás. Onde deixei o cabelo mais escuro, a
pele mais lisa, o passo, porém, mais trôpego. Tanto, que não travei a fundo, como tinha de ser, para
imobilizar a viatura diante de um sinal que está ali a passar do laranja para o
vermelho num instantinho. O carrito branco, feiinho feiinho, que já lá parou é
que fez bem, mas está o piso molhado, faltam cinco minutos para começar a aula
de ginástica da miúda, e nós aqui. Elas pequenas, as duas, eu grande (não muito).
Passei, faz de conta que é verde tinto, vamos lá meninas, está
quase, elas a dormitar, iam sempre a dormitar por causa do trajecto que se
fazia em mais de hora e meia todas as manhãs em modo arranca e pára, progresso
intermitente no qual a chuva costumava colaborar. Pelo retrovisor tento captar o efeito admirativo que causei
na certa ao condutor do carrito branco, feiinho feiinho, viste eu, carrito?
- Olha, achou boa a minha ideia e saiu do semáforo, está a
avançar, que giro.
E, na manhã chuvosa, cinzento-cintilante, prateada não
obstante (gosto muito de rimar aqui nas prosas, fica muito bem), ouve-se no ar
uma sirene umhó umhó, igualzinha às
da polícia (muito parecida). Mas não foi preciso mais que um reles nanosegundo
para eu captar toda aquela mensagem matinal e encostar o carro com as duas
garotas menos estremunhadas, entretanto, mãe, porque vais parar aqui?
- Bom dia senhora condutora, sabe porque a mandámos
encostar, não sabe?
- Sei – digo isto de cabeça baixa, lembro-me bem dessa parte
da cabeça baixa, mas continuo – o vermelho tinha acabado de cair, senhor
agente. E o piso está molhado e… vamos atrasadas para a aula de ginástica…
Mas isso não interessa nada, uma vez que já tinha caído o
vermelho, o resto já sabemos, os seus documentos, a morada, senhora
condutora, tem duas moradas nos seus documentos, mora em alguma delas, moro
sim, vou já corrigir para a semana, estava mesmo a pensar nisso, acredite
senhor agente, posso pagar por multibanco, pode, tão simpático, obrigada, vá lá
mas para a próxima leva também a da morada, vá tratar disso, vou vou senhor
agente, prometo senhor agente.
Fui poupada, por conseguinte, a uma das duas multas a que tinha
direito, a das moradas não coincidentes. No entanto a história ainda não acabou.
- Ó mãe, tu disseste uma mentira ao polícia.
- Eu, filha? Que mentira? – é a mais nova, que tem quatro ou
cinco anos.
- Disseste que tinha caído o vermelho.
- E tinha. Mas tu se calhar não viste, vais aí atrás, quase
a dormir...
- Não, mãe, eu não vi cair nada e depois olhei para a rua
enquanto falavas com o polícia, não há lá vermelho nenhum.
Susana, o que eu me diverti com este texto. Se me conseguisse ver, veria uma pessoa a sorrir enquanto lia cada linha. Cá coisas minhas ;)
ResponderEliminarBeijinho ao entardecer.
Fazer as pessoas sorrir é capaz de ser das melhores coisas da vida. Ou isso ou fazê-las rir. :-) Obrigada por mo dizer, Maria.
EliminarUm beijinho de volta, a horas de dormir.
Bom, primeiro, não podes negar a tua formação académica... Nem te deves aperceber! Nanosegundos, nanopartículas... Isso não são coisas de pessoas normais;)
ResponderEliminarPois, Susana, tiveste azar com o agente. Só me mandaram parar uma vez, com direito inequívoco a pagar três multas, e fui perdoada de todas. Julgo que o diálogo simpático ajudou;) A atitude de cabeça baixa não veio a teu favor. Acho.
E espero que te lembres sempre que as crianças não mentem.
Beijos, Susana.
Querida Isabel, eu sou bastante normal, mas de fato nano-normal se considerarmos certas aplicações. :-)
EliminarSe tu te livraste de três multas em três e eu de uma em duas, não preciso de dizer em que aplicações sou nano-normal. Preciso? :-)
Beijos, Isabel persuasora.
Que azar...
ResponderEliminarSe depoimento de filha mais nova pudesse ser tido em conta, já não haveria autuação :)
Isso é que tinha sido uma boa ideia, Redonda. Como não me lembrei de usar a criança, como?! :-)
EliminarO meu sorriso é que ainda não (des)caiu desde que comecei a ler este texto! Delicioso :)
ResponderEliminarUm beijinho, Susaninha
Querida Miss Smile, esse seu sorriso é um presente para mim. Obrigada.
EliminarEu é que fiquei com um bem grandão ao ler a sua parte III de hoje. Um conto maravilhoso!
Outro beijinho.
Impugna a multa e junta a miúda como testemunha. Ela pode jurar que não havia um único vermelho na rua :))
ResponderEliminarFaltou-me esse jogo de cintura, essa lucidez na hora, raios... :-))
EliminarA miúda tem razão, ela devia ter refutado com o polícia :p
ResponderEliminarEla esperou que ele desaparecesse para esclarecer comigo essa coisa de andar a mentir a polícias. :-)
EliminarCostumava dizer ao meu filho, passámos um vermelho directo, e foram várias vezes, os atrasos, as filas, quem não o faz, e nunca fomos apanhados. Mas se fosse, acho que dizia - Ai foi, senhor guarda? Ia com tanta pressa que nem dei conta...
ResponderEliminarE vai sempre à frente um nano-carrito, feinho, culpado, absolvido.:)
Beijinho, Susana.
Bem, Teresa, para ser franca, deixei de passar vermelhos assim, mesmo à tangente. Páro nos amarelos e os condutores atrás de mim costumam adorar...
EliminarNano-carrito, lindo. :-))))
Beijinho de volta, Teresa.
Há vermelhos assim, atrevidos. Caem quando menos o desejamos. :)
ResponderEliminarBeijos, Susana, e um bom fim-de-semana. :)
E há vermelhos lindos, poderosos como as paixões. :-)
EliminarBeijos, querida Maria.