a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/07/2015

Tinha de vir parar ao blogue

O que fiz foi cortar uma batata em fatias da espessura de rodelas e com jeito dispô-las na frigideira, há lugar para todas, um pouco de azeite e mais uns truques do momento, inspirados no apetite ou nos sons que se captam da rua, não sabemos tudo. Cozinhar é com os sentidos que se faz, tal como o amor; não queremos livros de receitas.

Enquanto a batata não se apercebe do que lhe vai acontecendo, ai uns calores, o que é isto, é sal, e isto, é tomilho, faz cócegas o tomilho, lembro-me da mais incrível coisa que me aconteceu e que um dia tinha de vir parar ao blogue, é hoje o dia (enquanto esperamos pela batata).

Estávamos no casamento da minha irmã mais nova, doze verões atrás, uma quinta em Sintra, uma tarde de junho e de sol, a minha colecção de sobrinhos e filhas no grupo etário sub-oito, eu de vestido azul e sandálias muito novas e muito altas. Ainda estamos na fase das fotografias com os noivos no jardim, é deste lado da tenda que tem as mesas postas, lá dentro, que estamos. Do outro lado da mesma tenda há mais jardim, mas eu ainda não sei que há mais jardim.

Passam empregados com bandejas cheias de copos ou então com aperitivos, coisas pequenas. E agora passa um por mim com croquetes em forma de bola, bolinha, coisa muito capaz de fazer felizes as minhas filhas, tiro duas da bandeja, uma em cada mão, onde estão elas? Olho em volta, não as vejo, aqui só está gente grande. Olho agora para os dois croquetes que podia meter na boca de um trago e resolver o assunto sem dar corda às sandálias muito novas e muito altas no chão muito relvado e pouco firme. As minhas mãos, porém, não mas levam à boca e os pés começam a andar, onde vão pés, digo eu, procurar as miúdas, dizem eles, doem-me mas não sou senhora de mim para os parar, talvez queira vê-las de boca cheia, são giras aquelas boquinhas a mastigar croquetes, deve ser isso. Aqui não estão, neste lado não estão. As minhas pernas levam-me à tenda. Entro e só há silêncio, mesas lindas, cadeiras vestidas de laçarotes, copos, muitos, reluzentes, que bonito é um casamento, doem-me os pés, já chega mas não paro, deixei de ser dona do meu corpo, os croquetes se os comesse acabavam-se as dores, mas não vais comê-los, continua. De repente oiço a criançada do outro lado desta linda sala, no jardim que agora mesmo percebo que existe.

Atravesso pelo meio das mesas, o piso aqui é melhor para sandálias muito novas e muito altas, e assim que saio para o chão do outro jardim, agora é de pedra, os meus pés ai já chega, come tu os croquetes, as minhas mãos nada, seguram-nos bem, os pés doridos avançam, mas afinal onde estão as miúdas. E se bem pergunto melhor me respondem, ali vêm elas, descem aquela escada de pedra, finalmente, as minhas princesas a correr com um batalhão de mini primos, vem tudo a rir, chocam comigo alguns, tia sai da frente, ó meninas olhem aqui, croquetes, abram a boca. Abriram, comeram, continuaram a correr, desapareceram no interior da tenda, cuidado meninos!

E aquela escada, onde irá dar? Não, não vais subir a escada, vais-te sentar um bocado, descansar, olha que depois nem dançar consegues, mas eu vejo-me ir, os pés não me obedecem, já aqui estou, subo a escada sim senhor.

Em cima há um relvado muito bem cuidado, muito verde, um relvado que termina para dar lugar ao azul muito azul da água de uma piscina, a superfície da água ao nível da relva tão verde, não há interrupções entre eles, nem desníveis, quem vai na relva segue para dentro de água, mais bonito o quadro só se fosse Vermeer.

E ali vai a Marta a correr, trôpega mas a correr, a minha sobrinha que nem dois anos tem, relva fora, de costas para mim, direitinha ao azul muito azul da piscina, a Marta e mais ninguém. Corri. Apanhei-a a dois passos de cair na água. Segurei-a junto a mim com tanta força que o meu coração me saltava pela garganta a cada batida. Por um momento não me consegui mexer, a miúda apertada nos meus braços. Ela deixou-se ficar, talvez sentisse o meu coração bater-lhe no rosto pequenino.

Foi a única vez que salvei a vida a alguém e também a única em que o meu corpo não me quis obedecer. Foi a coisa mais inexplicável que me aconteceu.

Por isso tinha de vir parar ao blogue. Desligo o fogão, junto as rodelas de batata agora coradas, um pouco estaladiças, ao resto dos legumes e sento-me a jantar. Obrigada pela vossa atenção.

21 comentários:

  1. Impulso? Destino? Quem sabe...

    Beijos, Susana, e até já. Chamam-me uns dias de descanso. :)

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    1. Até já, Maria. Bom descanso. Beijos de volta.

      (não sei o que foi. mas foi)

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  2. Talvez exista uma mão invisível que protege os meninos e as meninas; talvez existam um sexto e um sétimo sentidos; talvez exista mais, muito mais no céu e na terra do que aquilo que Shakespeare diria que é explicado pela nossa filosofia.

    Um caso assim leva-nos a crer que não existem é acasos.

    Que momento marcante; e que arte para o contar.

    Boa noite e muitos parabéns, por tudo, cara Susana.

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    1. Querido Xilre, o seu generoso comentário fez-me corar. Muito obrigada! Por tudo.
      E sim, claro que há mais, muito mais do que Shakespeare ou a filosofia ou mesmo a ciência podem explicar. E que bom serem assim as coisas, não acha? :-)
      Uma boa noite para si.

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  3. Que prosa tão boa, Susana. Imagino o tambor a bater dentro do seu peito. Há momentos assim, que agradeceremos para o resto da vida.

    (e acompanha divinamente com essas batatas coradas :) Héctor Abad deve andar a roer-se de inveja (e com razão ;)

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    1. Claro que tive de ir ver quem é Héctor Abad e fiquei cheia de vontade de ler o livro dele das receitas. Para ver se era desta que eu sentia isso da inveja :-)
      Muito obrigada, querida G.
      (eu ainda estou à espera do nosso JRC e agora de si também, hã?)

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    2. Querida Susana, só faz falta quem está :)

      (um segredo: SIC Notícias - J. Rentes Carvalho - Sábado dia 8 às 15:30)

      Beijinhos

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  4. Querem lá ver que o tal do sexto senti existe mesmo?

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    1. Se não é o sexto sentido, terá outro nome, mas existe. E actua quando é preciso, pelo visto. :-)
      Um beijinho, Loira (espero que a Su tenha chegado bem)

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  5. Um dia salvei a vida a uma amiga, que ia ser passada a ferro por um autocarro.

    Acho que só demos por isso 5 minutos mais tarde. Curiosamente, não houve adrenalina no momento mas houve estado de choque a seguir.

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    1. Estado de choque, sim. Quando nos apercebemos do que podia ter acontecido. Que bom teres conseguido tirá-la da frente do autocarro, Mak. E obrigada por teres contado, é bom saber.

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  6. Muito belo, e redentor, o que seria um dia de tragédia, transformou-se num dia mil vezes mais feliz, e como os dias felizes ficou suspenso no tempo, a aguardar pacientemente a sua vez, para poder ser eternamente partilhado.
    Obrigada, Susana.

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    1. Faz lembrar aquele filme do Woody Allen que começa com uma bola de ténis a rasar a rede, a imagem pára e surge no ecrã a pergunta, a bola passa ou não passa. É aquele momento ínfimo que pode mudar o curso de uma vida. Ou de muitas. São momentos fortes. E este tinha que vir aterrar aqui, sim, ser partilhado.
      Um beijo, Teresa.

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  7. Houve aqui uma mão previdente... a sua!
    Eu acredito que um bom coração que está ligado com o mundo e com os outros tem realmente um sexto sentido.
    Muitos parabéns, querida Susaninha :)

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    1. Querida Miss Smile, que comentário tão bonito, muito obrigada! Talvez eu tenha visto qualquer coisa pelo canto do olho e não tenha guardado isso no consciente, sei lá. Nunca saberei.
      Beijinho, Miss Smile, com um abraço apertado. :-)

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  8. Que relato fantástico.

    (de facto a Susana tem um dom)

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    1. O que eu tenho é muita sorte. E os leitores mais queridos de todos.

      (e corei outra vez... muito obrigada)

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  9. Susana, já poderias ter salvo a vida a mais alguém sem o saberes
    Mas essa sabes e está muito bem contada.
    Beijo.

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    1. E talvez todos nós de vez em quando salvemos a vida a alguém. Por exemplo da solidão. Ou da dor.
      Um beijo, querida Isabel, obrigada e bom fim de semana.

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  10. Queria dizer o que foi dito no último comentário e respetiva resposta, mas já foi dito. Acredito mesmo que darmos atenção uns aos outros, olharmos em vez de nos limitarmos a ver, escutar em vez de nos limitarmos a pôr os ouvidos à disposição, salva um pouco a vida de todos, todos os dias. Que bom teres efectivamente salvo uma vida. Acredito que já foste salvando aos poucos muitas mais.
    E sim, ainda bem que certos assuntos quando abordados de certa maneira, por certas pessoas, vêm parar aos blogs (e durante a leitura consegui sentir o cheirinho e ver as batatas ainda mais coradas, por estarem tão envolvidas com os legumes).
    Beijinhos, Susana.

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    1. Tocaste um ponto fundamental, escutar, saber ouvir os outros. É um privilégio quando se encontra alguém assim.
      Eu salvei a minha sobrinha por acaso, um muito feliz acaso.
      Obrigada pelas tuas palavras, gosto sempre tanto delas, Cláudia.
      (Tenho uma predilecção especial por batatas. :-))
      Beijinhos e bom domingo.

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