18/09/2024

As rosas (toma e vai buscar)

De um lado, a estrada que atravessa o vale tem casas, do outro, uma eira onde por vezes pastam ovelhas. As casas são muito velhas. Algumas têm as paredes mesmo à face da estrada, outras erguem-se um pouco afastadas, para lá de um muro. Porém, não estão desabitadas. Por trás de um desses muros sobressai uma linha de roseiras oferecendo uma forte densidade de rosas cujo colorido vigor combate, como numa frente militar, organizadíssima, o decaimento evidente em redor. Sempre que por ali passo, ainda que a conduzir, deito um olhar rápido àquela fileira de rosas, só para dar prazer aos olhos. Um dia, ainda vinha longe, mas já a focar a vista para as flores, não as vejo na sua formatura. O muro parece abandonado. Ao aproximar-me, dou então de caras (atrás do vidro do carro, mas dou) com os cotos e, no alcatrão, caídas na estrada, vejo uma faixa de pétalas. Fiquei escandalizada! Pensei feio, achei o pior. Alguém malvado que passasse a pé tinha destruído as rosas todas! Há pessoas que não sabem ver uma beleza, uma coisa linda e logo querem destruir, são cruéis! E assim por diante.
Mas, como a natureza tem o víço lá dela e sempre vence a parada, algum tempo depois as rosas tinham florido de novo e o quadro que elas pintavam, ali no seio de casas tão velhas, regressou em pleno. Eu passava de carro, sorria cá para dentro dos meus acessórios (botões, fechos de correr, presilhas e fivela), muito satisfeita.
Mas, após alguns dias, ou semanas, de esplendor rosado, eis que, de novo, o tapete de pétalas estendido no pavimento e, encabeçando o muro, só a linha de cotos despidos. Ai valha-me deus! Como é isto possível! A minha cabeça, neste ponto, mudou logo as ideias para outra mais cabeluda e miserável: alguém odeia os donos desta casa pobre, ainda que rica em roseiras, e está a vingar-se de alguma coisa! Ah, se a polícia passasse no momento do golpe e autuasse o diabrete que faz isto! Não há direito, umas flores tão bonitas! E por aí fora.
Todavia, conforme já estamos à espera, as rosas regressaram na potência toda que eu, humilde observadora das suas vicissitudes, lhes conhecia. Tão lindas outra vez! Ou mesmo mais viçosas ainda! Que alegria! Rejubilei ali bastante para o para-brisas, o volante, o retrovisor. Toma e vai buscar ó ser demoníaco que estragas as flores! 
Só que, tal como nas novelas da televisão, a história repete-se e, passado mais um tempo, de novo as flores desfeitas na estrada. 
Ei! Espera aí! Isto merece uma análise mais aprofundada. Tu não me digas (o tu sou eu para os meus botões, colchetes, rebites e alças), que a destruição é propositada! Tu não me digas que é a dona, ou dono, (perdão, tutora ou tutor!) das rosas que lhes faz isto para lhes atiçar o vigor! Tu não me digas que é por seres uma ignorante destas ações sábias, que as tuas próprias roseiras são uma mistura esquisita de flores mortas e botões promissores mas mirrados!
Pois bem, meus pacientes amigos que chegaram até aqui: há dias passei lá e apanhei a cena em flagrante! Era a própria dona da casa e das rosas (quero dizer, tutora) que estava, com um jeito especial de mãos, meticulosamenre, a destruir as suas próprias rosas! Com ar de quem sabe muito bem o que está a fazer! 
De modo que aprendeste a lição (digo para com os meus botões, bainhas, coses e atacadores), a não julgar logo à primeira.
Nem à segunda nem à terceira.

14/09/2024

O pior bolo de chocolate do mundo*

O biquíni azul desistiu de esperar pela sua vez. É compreensível: muitos verões passaram desde a última visita a um areal. Encheu-se de tristezas, ali dobrado no escuro de uma gaveta de cidade. Vê-se isso pelos elásticos do cós que passaram a plásticos e em bocados se desfizeram (talvez pelo último natal). O mofo ganhou tempo e entranhou-se na licra de tratamento metalizado. Libertou o seu aroma quando puxei o biquíni azul para fora da sua última morada. Portanto, com receio que o calção me caísse na primeira onda ou ainda antes, resolvi trazer o vermelho, comprado no mesmo dia muito antigo, mas mais robustinho, ainda jeitoso nos rebordos, apresentando a resiliência dos materiais intacta incluindo o bordado inglês a imitar lençóis.
Felizmente, não pereceram ambos.

*inspirado num lugar longínquo para os lados de Campo de Ourique

11/09/2024

Ó rio conta lá

Faltavam cinco minutos para as oito quando chegava ao lugar onde costumo tirar a fotografia à ponte, sempre a mesma fotografia, sempre o mesmo lugar, mas nunca a sair igual. À minha frente um pescador vindo de norte, virando à sua esquerda, caminhava ao longo do passadiço. Então desviei a mira e resolvi diferente, captei-o.
E só depois vi o que levava na mão. 

10/09/2024

Uma incerteza

Por causa da Maria Judite de Carvalho, fico a pensar coisas novas e diferentes.
Não na cozinha que está a pedir renovação total com muita intensidade, ou no trabalho que por vezes me exige mais cérebro do que o meu, também não nas expressões que se usam como "ter mais mundo", quando alguém não é fútil, ou "não estou a saber lidar", quando se acha outro ser demasiadamente adorável e se o quer esmagar de "amor" (e me irritam muito, grrrr). Nem, por exemplo - é só mais isto -, nas manchinhas muito feias que vêm cobrindo a minha pele.
Com a Maria Judite de Carvalho, a minha cabeça afasta-se do próprio umbigo e fica maiorzinha por dentro.
Agora mesmo trouxe-me a divertida interrogação sobre quando virá o dia em que, pela primeira vez, alguém me vai dar o lugar no autocarro. Tenho um bocado de medo desse dia. Quero que ele nunca chegue.

(Mas não tenho a certeza.)

08/09/2024

Oh!

Tivesse eu poder e os energúmenos que conduzem veículos a urrar propositadas ondas sonoras violentamente para longe propagadas, capazes de despertar uma leoa enfurecida em mim, tivesse eu poder, digo, e esses atrasadinhos cerebrais seriam todos enfiados numa masmorra nojenta onde poderiam ouvir independentemente da sua vontade os piores rugidos ensurdecedores ininterruptamente a mais de cento e cinquenta decibeis durante aí uma semaninha.

06/09/2024

A janela fingida

No ano muito antigo em que imensas pessoas, entre as quais eu, nasceram, não havia Internet nenhuma. Nem sequer a palavra Internet havia. E portanto também não havia blogs, posts, likes, etc. Era o tempo da telefonia, dos automóveis que pediam água para acalmar as temperaturas cansadas do caminho, e às vezes também óleo mas por outras razões, era o tempo da Crónica Feminina, uma revistinha que contava mentiras de amor e que a nossa empregada lia muito. Era o tempo da acetona, dos panos para engomar as calças do fato, da mioleira. Das resistências que os miúdos ofereciam às mães - e só a elas, se as tinham - quando estas lhes punham no prato os nojentos miolos de vaca misturados, para disfarçar, com ovos mexidos. Era o tempo dos domingos, dos passeios de automóvel, das idas ao Estoril. 
Nesse ano muito antigo, não havia portanto blogs nem os posts que os "alimentam". Mas, ao contrário do que possa parecer, havia-os com outros nomes: textos publicados num jornal diário (feito em papel).
Estava aqui a ler alguns destes textos publicados, agora, em dois mil e vinte e quatro, eu já quase a ficar velhinha, e os textos (publicados) no quarto volume das Obras Completas de Maria Judite de Carvalho, um volume com três títulos: A janela fingida, O homem no arame, Além do quadro.
E estou a fazer-me não só sua seguidora, como sua fã. A deitar likes por todos os lados, é lindíssimo.
E por isso venho recomendar muito e com entusiasmo esta imensa leitura. Por favor.