a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

03/01/2015

Crocâncias estaladiças ou os buracos das minhocas

Não é que o ano não tenha entrado bem, entrou. O sol, que beleza, os passarinhos, que maravilha, a ausência do vento que assolou o verão e manteve os biquínis novos e os velhos na gaveta, isso foi pena, mas agora a paz, o verde, a família reunida, a lareira, os livros, tudo. Bem, quase tudo. Ainda o ano é uma criança e já assisti a uma injustiça, coisa feia.

Devido a ter-me esquecido que já não gosto de ir ao cinema, fui ao cinema. O filme puxa-me a atenção para as espirais que a minha mente gosta de inventar mas que desta vez não foi preciso, é só seguir o guião, as naves espaciais, a gravidade, a relatividade, o tempo dobrado por exemplo ao meio para os buracos das minhocas nos entrarem no entendimento, os wormholes, também se podem chamar wormholes, outras galáxias ali a espreitar ao lado de Saturno, que não tira os anéis e que giro fica no grande ecrã, eu por acaso também gosto imenso de anéis, uma sopinha com jeito de me fazer sair dali cheia de ideias brilhantes para me entreter nas horas ociosas, mas assim não foi, houve a tal injustiça. 

Era uma família de gente sentada na fila de trás. Família que não foi tratada como devia. Alguém lhes meteu nas mãos quantidades industriais de pipocas crocantes e estaladiças servidas em baldes e os pobres mal davam conta daquilo, tão difícil, mastigar teve de ser com a boca aberta, que grandes são as pipocas, procurar as maiores foram obrigados a fazer no escuro, escarafunchar dentro do balde, a mão a dar a dar, onde estás tu que te apanho, anda cá filha, um chinfrim de ano novo, uma tristeza para quem quer comer pipocas crocantes e estaladiças à vontade, como se estivesse em casa e nada, pespegam-lhes com um filme e nem uma mesa, uma toalhinha, uma jarrinha com uma flor de plástico, um guardanapo, uma falta de respeito por quem tem um ratito a meio da tarde, tão injusto que depois me saem parágrafos enormes como este. 

Por conseguinte, como projecto de ano novo, eu sugeria ao estabelecimento dos cinemas arranjar-se uma salinha do tipo restaurante, uma música ambiente mas tem que ser alto o som para se ouvir acima do mastigar das crocâncias estaladiças de boca aberta, que boas devem ser, lá isso devem, em vez de enfiarem as pessoas numa sala escura e lhes espetarem com o incómodo de um filme, está bem? 

E nós, os que ali estão sem ratito a meio da tarde e com o propósito de assistir à longa metragem no silêncio que se requer para assistir às longas metragens, sempre conseguíamos ouvir as explosões sem ruído de fundo produzido em boca aberta - não sei se me repito, é dos nervos que me deu - e nas profundezas sonoras dos baldes em busca das mais gordas crocâncias, estarão, acredito, a ver a ideia.

Eu vejo-a perfeitamente; devido a ser muito boa, torna-se fácil. Embora não tanto como os buracos das minhocas. Mas ainda assim.

nota de rodapé: "crocâncias" é palavra muito recente, não se encontra ainda em todos os dicionários.

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