- Ó mãe, quando tu morreres temos de comprar outra. Quanto
custa? Mil e um contos?
Ainda não tinhas três anos, lembro-me bem. Estavas já na
cama, dentro do teu pijama de flanela azul que fazia sobressair os teus
caracóis escuros e, antes de eu começar a contar-te a história do coelhinho
branco, fizeste a pergunta.
- Quando a mãe morrer, filha, não se pode comprar outra. Mas
a mãe só vai morrer daqui a muito tempo, muito. Primeiro vou contar-te imensas
histórias.
A ansiedade foi minha em apaziguar o que não precisavas de
apaziguar. Não posso saber o que pensaste. Recordo que ficaste serena e ouviste
a história, penso que a sabias já de cor. O coelhinho branco foi à horta buscar couves para fazer um caldo.
As histórias foram mudando, o tempo trocou os escudos pelos euros, os
contos passaram a ficar só nos livros.
- Ó mãe, sinto uma coisa na garganta, aqui… E estou
sempre a pensar no Bruno, mãe…
Aos dez anos apaixonaste-te. Eu, sentada na tua cama, à hora
da história, também senti uma coisa na garganta; o tempo estava a passar tão depressa.
Cresceste muito, cresceste acima de mim.
Foste mergulhando no teu mundo cada vez mais fundo, embora ainda
te movimentes no nosso. Encontrei o pacote do leite no armário das
chávenas. E o teu guardanapo na gaveta dos talheres. Esqueceste-te de me trazer
o livro que te pedi dois minutos antes, quando te liguei a dizer-te para
desceres, ia levar-te ao dentista. Já não me contas muito, o que contas é
escolhido de uma colecção que adivinho vasta, e pensas que eu não vejo os nós na
tua garganta.
Já não te leio histórias antes de dormires, os teus livros cresceram
contigo, vais sozinha pedir autógrafos pela segunda vez ao teu autor preferido.
- Mãe, não vais acreditar, o José Luís Peixoto lembrava-se
de mim! Olha o que me escreveu! – abriste o livro autografado à frente dos meus
olhos, tens as mãos a tremer e os nossos mundos tocam-se, voltam a confundir-se,
a iludir-me, é o instante em que o meu coração abraça, apressado, o teu.
As tuas saídas com os amigos também cresceram, em frequência
e em duração. Não podes saber que os nós da minha garganta, depois de muitas
horas à tua espera, começam a doer.
O barco em que viajas está a afastar-se do porto de abrigo que
foi a tua infância, eu sei. Estendo os braços e em aflição te reclamo de volta,
mascaro coisas que não conheces, exijo outras, declaro estados de inquietação
que te parecem patéticos, abro fendas desastradas e tu choras, indignas-te,
esfregas a cara, quem te pôs essa raiva aí, filha? Meteu-se um muro entre nós e
eu não o sei saltar. Magoei-te, tu viraste-me as costas.
Creio que já dormes, mas eu não posso ainda. Fui à estante. Peguei no livro do coelhinho branco. Está velho, filha. As
folhas mantêm-se unidas por fios de linha gasta, penso que estão cansadas de tanto
as ter virado, à tua cabeceira. Voltei a ler a história, agora em silêncio. Ainda
a sei de cor.
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