29/01/2015

Más umas para as outras

Estou a chegar ao trabalho mas para isso é preciso que aquele carro que ali está a bloquear a entrada avance. Então hei-de galgar o passeio e cruzar a cancela, bom dia, acho que nunca tinha escrito galgar. 

Mas como não, fico numa diagonal perigosa no meio da avenida na qual os condutores não têm o costume de circular a menos de cinquenta quilómetros à hora, como deviam, mas sim a menos de trezentos o que na verdade já não é mau, no entanto isto inclui camiões carregados com automóveis novos e tudo, portanto não queremos.

E eis que a condutora, que se encontra fora do veículo bloqueador e tem um papel na mão, gestos apressados, dirige-se a mim. Abro a janela, bom dia, a Riscaulado não é aqui, pois não? não, aqui é a Riscaumeio, digo eu, mas a Riscaulado é do grupo, não é, sabe onde fica? pergunta-me tudo seguido e eu a ver pelo retrovisor as aproximações vertiginosas dos automobilistas por trás de mim, sei onde fica, mas a senhora tem de me deixar entrar antes que eu seja colhida aqui e morra ou quase, está bem?

- Ai desculpe – correu para o carro e avançou dando-me o chão de que eu estava precisada.

Fui estacionar no meu lugar e regressei para junto dela, para as explicações. Está a ver aquela avenida toda muito comprida, aliás enorme, vê-se bem, que termina quase dentro do rio? Não. E aquela estátua extraordinária que parece abraçar os pássaros, não está a ver? Não. E se for uma bomba de gasolina com um supermercado dos muito feios logo a seguir, uma oferta que satisfaz o veículo e a família, bastante conveniente, isso vê? Não.

Suspirei. O caminho não é fácil e leva pelo menos quinze minutos. Isto a somar ao desconhecimento dos pontos de referência por parte da minha interlocutora ex-bloqueadora, não dá conta certa, ou seja, estamos a ver que sobra para mim.

- Está atrasada? – se ela me disser que ainda tem cinco horas para chegar à Riscaulado, eu fazia-lhe um croqui muito bem feitinho e croqui já tenho a certeza de não ter escrito.

Ao perguntar-lhe isto, vejo que ela tem as mãos a tremer, o papel que segura diz que sim diz que sim, que ela está nervosa, vai auditar a empresa do grupo onde trabalho, é uma auditoria, explica-me, deixa cá ver se sou má para ela ou se sou boa, penso, dizem que as mulheres são más umas para as outras e nem sou eu a dizer isto, eu digo outras coisas está-me a parecer que muito mais bonitas, hoje sou boa, que eu não gosto de ver esta senhora de mãos a tremer.

- Eu levo-a lá, venha atrás de mim.

Voltei a tirar o carro, ela seguiu-me o caminho todo, cumprimos as duas os limites de velocidade que isso tenham lá paciência mas é assim que se faz e ela chegou quase a horas à Riscaulado

Agradeceu-me e perguntou-me o nome.

Depois regressei conduzindo pela manhã solarenga tentando chegar ao meu dia de trabalho pela segunda vez e desta é que foi. 

E foi longo, o dia. 

Quando chegou ao fim, já toda a gente tinha saído. Com a mala ao ombro, na mão o casaco e as chaves do carro, apago a luz da minha sala, as outras todas já estão. Assim que entro no corredor iluminado pelo rectângulo verde por cima da porta indicando a saída, oiço-o. O alarme já estava ao serviço e fez troar a sirene de que dispõe. Alguém, portanto, se voltou a esquecer de mim cá dentro e é isto em todo o edifício, agora tenho de correr antes que venham aí aflições, ligam da central, pedem-me uma senha para provar que não sou gatuna, não sou mas senha não a tenho, tenho código, até vou já ali desligar esta barulheira nos botões, essa senha que me pede é que nunca me disseram qual é, se o senhor pudesse dar-me uma dica, não dava?, é que eu também nunca me lembrei de a pedir, percebe, fecharam-me cá dentro sem querer. Consegui convencê-lo, desliguei o telefone e digitei o código no pequeno teclado junto à porta. Silêncio. Saí para a rua mergulhada na noite fresca e lembrei-me do episódio desta manhã, as mulheres são más umas para as outras, dizem as pessoas.  

Ora eu digo que sei muito bem quem se esqueceu de mim outra vez dentro do edifício. Não é mulher.

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