A rotina é coisa estruturante na vida de uma pessoa e tudo.
Mesmo quando uma pessoa almoça vai para um século no mesmo refeitório a
cheirar, já o temos dito, a gordura vintage de banha de porcos mortos há um
tempão misturada com lixívia, e com as mesmas gentes que, tal como uma pessoa,
mudam pouco. Na verdade, sabemos todos praticamente tudo sobre os gostos
culinários, alergias, forma de dobrar a roupa, horas a que se passa a ferro, supermercado
onde se compra o pão, doenças familiares e clubes desportivos de toda a gente,
não, esperar aí um pedaço, que não se tornam as conversas nada monótonas como
já vamos ver.
Há quem saiba largo sobre o que se faz às vacas em tendo
vacas. Eu nasci nesta Lisboa que cheira a fado (de onde tirei eu isto?) e nada
de possuir vacas ou cabras, tampouco uma galinhita ou assim. Nem eu nem os meus
progenitores nem os progenitores deles, etc, absolutamente (ando a copiar o etc
do Herberto Hélder, gosto muito do etc dele, etc).
Portanto inquiri sobre as vacas. Então vamos lá saber quantos
litros de leite dá um bicho desse porte por dia? Vinte? Toma, vai buscar.
Embrulhei, e a seguinte pergunta foi o peso, p’raí uma tonelada, não? Aquilo
cheio de leite… caramba.
- Eh! - diz-me o Zé - nada disso, depois de ordenhar é uns
trezentos quilos. O depois de ordenhar
é para me gozar, mas eu gosto de continuar isto.
Trezentos quilos acho pouquíssimo, uma vaca não se torna nada
pequena depois de crescer, mas fingi que sim.
- É uma vida dura – continua o Zé, certamente viu-me os
olhos brilhar imaginando-me a adquirir casa no campo e vida santa em vez deste
stress de nos consumir as vísceras que nem as vemos.
- Dura, como, Zé? Há por acaso reuniões de cinco horas em
salas com ar condicionado sem janelas com os animais? Não há! - o meu entusiasmo não se abala assim do pé
para a mão, mas o Zé é formado em ser uma grande melga e continua.
- Olha, é levantares-te às cinco da manhã se tiveres só uma vaca
e morares relativamente perto da (ai que me foge o nome) leiteira (contentor
comunitário que recolhe o leite das bovinas moradoras na zona), para dar tempo
de entregar o leite fresco que aquilo fecha cedo, às sete se não me engano.
- E se tiver duas? – penso nas economias de escala,
naturalmente.
- Duas leva mais tempo a ordenhar, aí levantas-te às quatro
e meia. Mas podes arranjar uma máquina para tirar o leite – continua o sabido –
sempre cansa menos.
- Uma máquina parece excelente ideia. E quantas vacas cabem
numa máquina?
- Uma. Uma máquina tira leite a uma vaca.
- Então não estou a ver a vantagem, para isso faço eu o
serviço.
Há-de ser exercício todo aproveitadinho para o tónus
muscular dos meus braços que não vão para novos, em vez de ficar a olhar que
ainda adormeço.
E a olhar pus-me eu sem querer para o relógio. Catorze e
vinte e cinco, horas de ir andando para a reunião.
(se não tenho
olhado ao relógio, tinha-me distraído com a conversa por causa da miúda que
mora aqui por cima e anda sempre aos saltos com o cão, havia de ser boa para me
ajudar com as vacas, estou agora a pensar, ela e o cão)
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