Falta uma hora para acabar este fevereiro e lembro-me que há dois fevereiros atrás comecei o blogue. Exactamente neste seu derradeiro dia.
Apetece-me sempre escrever, mas normalmente é preciso trabalhar ou ficar parada nos semáforos, fazer o jantar e arrumar a loiça, passar a ferro ou aspirar o chão, ir a reuniões nas escolas das miúdas, a festas de aniversário ou ao supermercado. E no supermercado não dá jeito nenhum.
No entanto, hoje pôs-se uma tarde boa. A serra esteve fechada dentro de uma nuvem que se espreguiçou desde manhã, branca e espessa, depois espessa e escura. As árvores que se deixaram avistar pareciam adormecidas, não se moviam tal qual não quisessem fazer barulho, o ar sustenta uma humidade de quase cem por cento, mas é relativa, como tudo. Na lareira ardem dois ou três troncos, a música erudita enche o ambiente que já está morno, não tenho nada para fazer, nada para fazer, isto é um luxo especial, sento-me a escrever e a vizinha que se mudou ontem para a casa em frente bate à porta.
Visita para lá, venham ver a casa que bonita ficou, festa na cadela, a vizinha tem uma cadela, visita para cá, aqui está quentinho, é vinho e queijo e compota de pêra faz favor, faltam os guardanapos, onde se come bem aqui, onde se compra lenha, onde isto onde aquilo, passam as horas, no fim a vizinha precisava era do secador de cabelo, se eu tivesse um. Eu tinha um.
O problema de escrever posts muito longos, para além de aborrecer de vez em quando as pessoas, é de repente já ser o dia seguinte. Ora sucedendo isso hoje não poderia mais celebrar este fevereiro, por conseguinte vai de encolher cortar e encurtar.
Assim, ficou o post magrinho, raquítico, desenxabido. Sem interesse nenhum. Mas ficou.
28/02/2015
27/02/2015
Manter o cavalinho à chuva
O lugar que o sistema de compra de bilhetes online me atribuiu no comboio situa-se à janela tal como eu pedi, pode-se pedir. O que não vinha lá na informação disponível era a cortina verde-alface-tecido-duro-como-pau-e-plissado. Mas porque fazem eles isto, eles quem não sabemos, que não se consegue nem por nada recolher a cortina para descobrir o resto da janela e por conseguinte o tecido vai o caminho todo de Lisboa a Coimbra a bater-me na face esquerda de cada vez que o comboio curva para esse lado? Isto passou-se no sábado e eu ainda me lembro, vê-se bem que foi inesquecível a viagem.
Nos intervalos das visitas que a cortina me foi fazendo à cara, dispus de liberdade suficiente para fazer o que me apeteceu, portanto escrevi um texto para o meu blogue. As viagens de comboio são muito boas para o blogue, que pena tenho de fazer poucas, pode dizer-se pouquíssimas.
Nos intervalos das visitas que a cortina me foi fazendo à cara, dispus de liberdade suficiente para fazer o que me apeteceu, portanto escrevi um texto para o meu blogue. As viagens de comboio são muito boas para o blogue, que pena tenho de fazer poucas, pode dizer-se pouquíssimas.
Levanto a cabeça para me concentrar na história que me sai dos dedos ao embalar do pouca terra, procurar paisagem a perder de vista para dar mais corpo às palavras, coisa tão rica, e do lado de fora
da janela vejo passar, lentamente, a cidade de Vila Franca de Xira; aliás vai a cidade cada vez mais depressa, que o comboio acelera a marcha, muita terra.
A cidade de Vila Franca de Xira não se apresenta em toda a sua potencial geometria à minha vista devido à cortina plissada-dura-como-pau-de-cor-alface-verde, a ordem dos adjectivos é indiferente, porque quem inventou uma cortina destas nunca andou de comboio como deve ser, ou seja, nunca escreveu para um blogue coisa nenhuma (isto é uma ideia). Mesmo descortinando apenas uma parte da cidade - repare-se na aplicação feliz da palavra descortinando... já está? - vemos, os que estiverem a olhar pela janela, que a cidade poderia ser mais feia, mas muito dificilmente. Repito muito. Repito dificilmente.
Tenho esta tristeza que me oferecem as edificações lusas na sua generalidade: a de constituírem verdadeiros hinos à fealdade em expoente máximo; arquitectos, por favor.
Mas não foi isto que me trouxe aqui. Foi outra coisa da qual ando a fugir, daí os rodeios.
Lembrei-me há dias dela, aliás dele. Ia a dirigir-me ao carro que tinha deixado estacionado perto do supermercado (como se chama o tipo de estacionamento que não é em espinha e pelo qual não dá jeito nenhum optar?), eu e mais quatro sacos de plástico carregadinhos à farta, dois em cada mão, a fazerem dos meus dedos uma quase-sopa que tanto me doíam e reparei, numa olhada rápida, que se tinha metido uma largura considerável de piso alcatroado entre o meu automóvel e o passeio, situação que fazia o meu destoar um bocado dos restantes.
E foi aí que me lembrei do colega de faculdade que era muito engraçadinho. Chegava tarde às aulas e, ao entrar, voltava-se na minha direcção e dizia em voz alta a frase que muitos já conheciam: estive quase para arrumar o meu
carro entre o teu e o passeio, mas depois não cabia.
Aquilo era muito bom para despertar as mentes mais dormentes porque fazia explodir uma gargalhada geral, ele ficava feliz de ser engraçadinho, eu encolhia os ombros e formou-se muito boa gente assim.
Não creio que isto seja um problema de todas as mulheres e isto aviso já não vá alguém querer manter o cavalinho à chuva. Estou certa de se tratar de tema sobre o qual detenho exclusividade, caso contrário as outras viaturas à porta do supermercado não estariam todas tão bem alinhadas junto ao passeio, isto não havia de ser para aqui chamado e agora bolas, que Coimbra está a chegar e eu vou ter de fechar o texto, sim isto demora, pois demora.
21/02/2015
Alvorada
Estamos os dois
velhos, mas só a mim custa fazer o corredor do nosso apartamento, que é
comprido. De manhã chego à cozinha cansada. Acendo a luz e o interruptor, que é
antigo, faz o clique parcialmente oco dos interruptores antigos. Preparo-lhe o
pequeno almoço, a chávena do café com leite fica cheia até à gota antes de
entornar, sempre foi assim.
Não gosto de o
ouvir sorver o leite mas consegui habituar-me. Os dias são todos iguais. Faço
sopa de feijão encarnado e lombarda, batata e cenoura, nabo. Nunca me esqueço
do sal e ele nunca diz se gosta. Comemos em silêncio.
Depois ele sai
para ir à farmácia e traz o jornal do dia. Eu sento-me a ler o meu livro junto à
janela que dá para o belo jardim do casino. Não fui capaz de ler Gunter Grass,
desisti da sua ratazana.
Estou velha e
custa-me percorrer o corredor do nosso apartamento, que é longo. Chego à
cozinha, lenta, respiro com dificuldade. Acendo a luz e o clique do interruptor
parece querer acordar a alvorada que ainda dorme. Os dias são iguais uns aos
outros. Há muito tempo.
Preparo-lhe as
torradas e ele, quando chega, liga a telefonia que está em cima do balcão.
Ouvimos as notícias em silêncio. Não gosto de o ouvir sorver o leite e ponho de
parte a posta de pescada para o almoço. Verifico que ele toma os comprimidos.
Depois sai para ir comprar laranjas à mercearia, as nossas netas vêm no domingo. Traz também pães de
leite e amêndoas torradas, que vai pôr na caixa oval de plástico cor de
laranja. Eu sento-me a dar um pontinho num pano da loiça; a alça de pendurar
descoseu-se de um lado.
Estou velha e
levo muito tempo a chegar à cozinha para lhe preparar o café da manhã. Às vezes
lembro-me e ligo eu o rádio, não oiço as notícias, não penetram na minha tristeza
opaca, igual todos os dias, mas as vozes dos locutores, que vêm de um mundo
jovem, talvez feliz, e a camisola de lã vermelha que hoje vesti dão-me um
nadinha de ânimo, convenço-me.
Dentro do
envelope de algodão onde há décadas bordei as suas iniciais, J. E., está o
guardanapo dele e eu junto-lhe as sacarinas com que vai adoçar o café com
leite. Ponho a manteiga e a marmelada na mesa.
Depois de comer,
ele sai para ir buscar um garrafão de água e chocolates, as nossas netas vêm no
domingo.
Estou a arrumar a
loiça quando a campainha toca. A campainha nunca toca. Não a esta hora. Não é domingo. Quem é?
Abro a porta, são as minhas netas. Vêm sozinhas? O vosso pai? Elas estão na
penumbra da escada, não lhes vejo os rostos mas fico feliz, fico sempre feliz
quando elas vêm.
- O vosso pai?
Entrámos e em
silêncio conduzimos-te ao cadeirão de cabedal, onde te sentaste.
- O avô ainda não
chegou das compras – disseste. E o vosso pai? – insististe. Não era costume
aparecermos sem ele.
Tínhamos
combinado entre nós que era eu a falar. O nó na minha garganta estava duro e as lágrimas
queriam continuar a correr, há horas que corriam.
- O vosso pai?
Fiz um esforço imenso, os teus olhos outrora azuis tinham ficado pintados de cinzento pela tristeza que carregavas sempre, nunca soube donde vinha.
- Morreu, avó.
- Morreu?!
Passou um minutp ou o tempo de uma vida. Depois, levantaste-te em
silêncio, desapareceste no longo corredor, nenhuma de nós te seguiu. Reapareceste alguns minutos depois.
Tinhas trocado a camisola vermelha pela preta e
perguntaste-nos como foi.
19/02/2015
Aviso laranja ou então dormir
Tenho andado a pensar se continuo a não ser capaz de mudar os
comentários neste blogue ou se me lanço num novo caminho precursor de uma
partilha mais aberta. É que já foram várias as pessoas ilustres que me disseram
que não conseguem comentar aqui.
No momento da criação do blogue, parto que se fez em duas
horas (fiquei impressionada), eu conhecia dois ou três blogues, não, quatro se
contar com o do José Saramago.
E não prestei atenção a comentários, se é que os havia nalgum
destes quatro blogues (os outros três, por ordem de chegada: TEMPO CONTADO,
Quarks e Gluões e Ana de Amsterdam).
Assim, a plataforma que me ajudou a pôr o meu lado mudo cá
fora (espero que se trate mesmo de uma plataforma), tomou algumas decisões por
mim, evidentemente. Uma delas foi a dos comentários.
Os meses foram passando e eu ia publicando posts para mim
mesma. A dada altura, começou a aparecer na minha caixa de
correio electrónico, de vez em quando, um email assinado com google+, e eu
achando que era spam de venda de
cosméticos, apagava imediatamente (se eu sem cosméticos já sou de arrasar, com eles então nem quero pensar). Afinal tratava-se de comentários ao blogue (com certeza devido ao jeito que tenho para as rimas).
Conseguir responder-lhes foi outro tanto. Via os emails,
guardava-os, responder em reply não é possível, nem clicando oito vezes seguidas, e no blogue não os encontrava
(juro). Estavam, descobri depois, bloqueados por motivos da segurança que eu não encomendei e isto é
tão aborrecido que já estou quase a dormir com a conversa.
Portanto decidi descobrir, ontem à noite, depois de um
bate-papo sobre este assunto com esta ilustre colega, como havia de fazer para
mudar isto.
Há um preço a pagar e baixo não é. A malta do google+ diz
que sim senhor, voltas para o blogger (o “voltas” é deles que eu nunca… certo,
já sabemos) mas os comentários que tinhas esfumar-se-ão. Todos. (até lhes deve doer serem assim tão queridos)
Ora desaparecerem os comentários não é o meu sonho, nem de
infância (onde foi que li isto recentemente) nem de nada.
No entanto, tenho-os todos (à excepção dos primeiros da
venda de cosméticos que afinal não era) guardados nos emails a que deram
origem.
Portanto, embora hesitante, que isto custa exterminar da
face do blogue os meus queridos comentários, pois custa, vamos lá mudar.
Aceitam-se reclamações, claro. Prometo que, quando aprender
a responder, responderei. O melhor possível.
(aviso laranja - nem tudo neste post se pode dizer que é a verdade mais pura)
18/02/2015
O melhor possível
Passavam alguns minutos das sete quando o meu cérebro
decidiu, na passagem do dorme-bem para o acorda-lá, lembrar-se de uma coisa.
Alguns textos de Ana de Amsterdam são como os quadros da
Paula Rego.
A seguir, já perfeitamente desperta pelo efeito de alavanca de
que semelhante pensamento foi capaz, pergunto-me: e os que não são Paula Rego?
Levanto-me, vou à cozinha e ponho a fazer o café cujo aroma se
vai espalhar pela casa e eu aspirar de olhos fechados quando sair do banho.
Tomo banho, visto-me o melhor possível e a seguir espremo
duas laranjas, hoje está sol e deito o sumo num copo.
Ergo-o perto da janela para que um raio de sol atravesse
o líquido, beijando-o, degustando-o, tornando-o translúcido, uma simbiose destas mostra que ainda
está vivo este sumo e eu com tanta sede matinal. Bebo-o de um trago sem
respirar e sinto as papilas gustativas suspirar de prazer e depois ajeitarem-se
satisfeitas dentro do sítio delas, localização cujo termo médico só não me foge
porque nunca cá veio.
Duas horas depois estou sentada à minha secretária de
trabalho e estou ao telefone com um colega de profissão que vejo de quando em
vez, trato formal, discutimos a participação num evento que ele organiza, se
isto se aquilo, como será melhor, talvez assim, que lhe parece.
Nisto, vejo a Cristina assomar à minha porta e desatar a
fazer gestos com uma mão enquanto levanta os calcanhares do chão e torna a
baixá-los, numa indicação de urgência iminente, eu não ouvi o alarme de
incêndio, muito embora ele tenha o costume de tocar quando não há incêndio
nenhum. A mão da Cristina alterna entre apontar para a própria boca e fazer
círculos no ar em redor da zona da orelha que pôs dentro da minha sala e torna
a repetir a coreografia, calcanhares acima, abaixo, mão, um gira, dois aponta.
- Diga, desculpe, acho muito bem, sim, depois confirmo-lhe,
obrigada – isto digo eu ao colega de profissão do trato formal mas ele ainda
tem um já-agora na manga, ó Cristina que coisa.
Terei eu feito uma expressão de peixe a morrer na areia, que a Cristina acrescenta mais um quê à dança, agora também mexe os lábios caricaturando
palavras sem som, eu ainda com o já-agora em desenvolvimentos, se eu sou membro
sénior?, acho que não, isso soa-me a muito velha e muito velha, compreende, tal
tal.
De modo que de um lado registei aquilo do membro sénior, que vinha do já-agora, enquanto do outro
despachei a Cristina abrindo e fechando a boca exageradamente, a ideia do peixe
foi muito boa, já falamos foi o que eu lhe quis dizer, acenei com a mão, ela
retirou-se; tive muito gosto em ouvi-lo, com licença, até breve.
Quando desliguei, veio, de súbito, a resposta.
Os textos de Ana de Amsterdam que não são Paula Rego podem
muito bem ser Armanda Passos.
Era isto, Cristina?
14/02/2015
Mal, mas cantavam
Ontem, quando o rádio despertador me acordou, fê-lo com uma
valsa de Strauss. Era o Danúbio Azul. Ainda de olhos fechados, remeteram-me estes acordes para a sala de casa dos meus pais, aquela em que eu li os livros da
Patrícia e do Mistério, aprendi a tricotar e fugi de ver o Espaço 1999 que me
metia um medo tremendo, mas só a mim, às minhas irmãs não, e onde tocavam
valsas de Strauss se fosse a minha mãe a pôr os discos.
A sala tinha uma
alcatifa azul escura que servia de fundo às construções de LEGO e ao tabuleiro do Monopólio e também às leituras que tinham de ser feitas no chão, eram leituras de chão: o Tio Patinhas e os
livros da Anita, por exemplo (não se vê ninguém lendo Tio Patinhas no sofá de perna traçada, como é evidente). Ter alcatifa era portanto muito bom, mas quando os microscópios se
tornaram capazes de mostrar aos cientistas os ácaros, nós ai-que-nojo e tirámos
as alcatifas todas. Embora não tenha dado nas notícias, tenho a certeza que a operação se estendeu a todo o país, eu a princípio pensei
que era ideia da minha mãe, mas não, atacou as casas todas que eu conhecia. O
chão de madeira é tão lindo, dizia ela a tentar convencer-nos. Tão lindo o
tanas, que ninguém se senta num chão de madeira a jogar Monopólio. Quando os
microscópios nos conseguirem mostrar os quarks e os bosões e calhar eles terem
bigodes e patas com pêlos, vamos tirar o quê? Tadinhos dos ácaros.
Já parada na passadeira de peões para uma mulher atravessar,
acordo pela segunda vez, desta com o carro nas mãos. Agora foi a Diana Krall. Lança-se na sua voz extraordinária, tão bom que é ouvi-la. De forma que me fez pensar ser um bocado excessivo
juntarem-se numa mesma mulher tanto talento e tanta beleza. Muitos há que nem uma nem outra e isso poderia parecer injusto. Poderia.
Não fosse a gente ter a certeza que mesmo sem talento nem beleza, se pode andar contente.
Certeza que encontrei um dia, deitada de barriga para baixo no chão, pouco antes de ter sido arrancada a alcatifa azul escura.
Ana de Amsterdam
De manhã, veio parar ao ecrã do meu computador o
livro de Ana Cássia Rebelo, “Ana de Amsterdam”. Esperei pela hora do almoço e, assim
que saí da cantina, fui à Fnac.
Mal entrei na loja, cruzei-me com uma mulher que vestia um casaco igual ao meu.
Vermelho e tudo. Ela caminhava depressa, já me tinha visto o traje, percebi, e era mais pequena que eu. Voltei-me e quase corri até ela para a cumprimentar, mas que bom
gosto, não é todos os dias que se encontra alguém com um casaco igual, no entanto não
o fiz. Eu gosto de pessoas desconhecidas porque não tenho razão nenhuma para não
gostar delas (todas as pessoas de quem não gosto, conheço), mas elas nem sempre gostam de mim. Quando voltei a cabeça outra vez para a frente não choquei com
uma estante redonda carregadinha de livros de capas cinzentas, por um triz.
No andar de cima, procurei nas novidades em
língua portuguesa, autores portugueses, literatura lusófona ou sei lá como lhes
chamam ali. Não vi a capa florida em lado nenhum.
Pus-me então na fila de um dos vários balcões de informação.
A atender os clientes estava um rapaz que podia ser meu filho, envergava a
camisola amarela e preta da loja e tinha borbulhas na cara sem sombras de barba.
Eu nunca tive borbulhas destas na adolescência, apesar de ter sido a feia da
turma. E da escola, creio. Mas chegou a minha vez.
- Procuro o livro Ana de Amsterdam, por favor, sei que é
muito recente, deve ter saído... hoje? Ontem?
- Ana de quê? – a falta das sombras de barba no rosto do
empregado fez-me sorrir e, sem denunciar impaciência que de resto não
sentia, repeti.
- A-M-S-T-E-R-D-A-M. Amsterdam. Editado pela Quetzal.
- Deixe ver - tac tac tac – não, ainda não chegou. Estamos à espera.
Agradeci e tomei o caminho inverso. Ainda no piso superior,
contornei outra estante insurgente, cheia dos livros cinzentos. Desci as escadas rolantes e, de novo no andar de baixo, ainda uma -
não, duas - tropeçaram em mim.
No fundo, senti-me satisfeita. É reconfortante verificar que
o livro que eu procuro (e do qual já li se não todo, quase, no blogue homónimo, portanto conheço-lhe a alma, também sou mulher) não
está a sufocar naquele espaço de marketing de trazer por casa. As pessoas, quando vão comprar um livro, normalmente sabem que livro querem e encontram-no, isto se a loja o tiver, evidentemente; não são burras e não precisam que as estantes lhes saltem para cima.
Saí e fui à Bertrand.
Encontrei o meu livro em segundos, não precisei de perguntar.
E não tropecei em nada. A Bertrand, se tem sombras - tê-las-á - eu não as vi.
E não tropecei em nada. A Bertrand, se tem sombras - tê-las-á - eu não as vi.
(Sobre o Charlie Hebdo,
não escrevi uma palavra; li muitas. Nascida
da incapacidade de compreender guerras, quaisquer que sejam, a minha indignação foi e é maior que as palavras que sei usar. Sobre o tema da semana, no entanto, escrevo
duas. Porque me entrou casa adentro e com ele me vi obrigada a esgrimir. E não
escreverei mais.)
12/02/2015
Este título devia ser prefiro pilinhas, mas penso que ficava mal
Só que estou praticamente a ferver, o problema é esse. Irrita-me que quando há uma
coisa, só se fale duma coisa.
Por isso vou falar doutras. Para me distrair.
Ando a enganar-me quanto a fazer ginástica e só hoje é que
vi. Os meus joelhos tentavam aninhar-se dentro da boca
para não esborrachar o nariz e as mãos foram para outro lado mandadas chegar
onde não dá. Dores localizadas, a cãibra no estômago a querer aparecer e um
olhar de esguelha ao relógio pendurado na parede do ginásio, detesto ginástica.
Detesto e acho que não é nada saudável aquilo. Dores agora e dores depois de recolher as partes do corpo ao sítio original.
Se não fosse aquele professor ter dito, todo engraçado, com
umas sobrancelhas fartíssimas muito despenteadas, a inclinar-se para a frente e a pôr nas mãos um
pedaço de metal imaginário, a sustê-lo com todo o cuidado para não o magoar, se
não fosse esse professor, naquele muito momento (tradução do original em inglês in that very moment) ter dito que o
material se sentia quentinho, eu nunca teria criado um blogue.
Porque nunca as fotografias de gatinhos tão fofos esbatidos em fundos
indefinidos e as de bebés metidos em malmequeres gigantes com toucas de folhos
na cabeça e os dedos das mãos a segurar os dos pés, dobrados como eu na
ginástica, mas eles a rir, nunca estas coisas me fizeram inclinar a cabeça e
expelir ohhhhs de admiração, e eu gosto de gatos e de bebés, principalmente de
bebés, mas nunca isso me teria trazido aqui. No entanto temos a tabela periódica
dos elementos, já o tenho dito, ela é que me extrai a inclinação de
cabeça e o ohhhhh de fofura. O estrôncio, o carbono e até o urânio, embora seja
provavelmente proibido gostar de urânio e até parece que já me estou a distrair.
Só falta a dona Esmeralda, que é a senhora lá da cantina. Hoje,
quando eu disse que não queria o peixe frito que estava marcado para mim, ai hoje
está muito esquisita e não sei quê, perguntou-me então, duas vezes seguidas, se
eu gosto de pipis. Duas vezes seguidas porque a minha cabeça estava noutro
lado, se calhar no hidrogénio, que é o meu preferido, ao que se está mesmo a ver o que lhe respondi e até o fiz directamente o que foi boa ideia. Olhou-me por cima dos óculos com a colher do arroz cheia de
arroz colado, suspensa no ar, e uma cara muito estranha e a dona Esmeralda é muito
gira com esta cara muito estranha.
É que irrita-me
que só se fale duma coisa, e se fosse apenas nos blogues, uma pessoa abre, vê o título, uma
pessoa fecha logo a seguir, é na descontra, como dizem as minhas filhas.
Mas
não é só nos blogues: elas querem ir as
duas ver o filme, quando eu nem sequer li o livro (e não quero ler) para saber se podem. E agora? Levo-as ao museu de arte antiga ou faço o
quê?
(quanto a isto, adoraria receber dicas extraordinárias)
10/02/2015
Marília
Estava a entardecer e na praia havia uma festa qualquer.
Uma festa qualquer e uma torre que se erguia muito acima do
chão, calculei de repente trinta metros. A torre está localizada quase à beira-mar,
construída em estrutura metálica de uma cor clara, uma espécie de tom muito natas batidas, que me dá ideia de ter sido
pensada para torre de vigia por ser exageradamente alta, aliás altíssima. Eu e duas outras mulheres estávamos no topo da
torre, provavelmente a vigiar a costa. Não há cadeiras ali.
De repente ouvimos um barulho que parecia um estrondo sinusoidal bem orquestrado, não obstante assustador, e olhámos as três para a água, ao fundo, junto
à barra (havia uma barra). Penso que o fizemos com muito estilo e pose. A mulher mais nova é a minha filha segunda e a mais velha é
a Marília, mulher muito corajosa que me colhe admiração profunda, sobrevivente de um acidente de aviação e
ganhadora de muitas medalhas em ginástica na modalidade paralelas (por exemplo). Eu sou a
mulher do meio. Apercebemo-nos as três de certeza ao mesmo tempo que estão a abrir as
comportas brutais e em poucos minutos ou muitos segundos a praia será inundada e a
festa afogada. A mais nova abeira-se da escada e não desce, salta. Vejo-a lá em
baixo do tamanho de um feijão inteiro, conheço-lhe a fibra e não me
admiro nada. De seguida vou eu mas não salto, este é o momento em que invoco a memória da decisão que tomei em cima da prancha mais alta da piscina da praia das maçãs há p'raí milénios, e eram só dez metros, quando fazia cabriolices mas não assim tão doidas, saltei da prancha do meio e bem sei o que doeu entrar naquele tipo de betão armado transparente, adiante, que é na torre de tom leitoso que estou. Viro-me então de costas e desço a escada de
ferro deslizando com as mãos pelas barras laterais abaixo, penso que se imagina a cena, não uso os pés, foi limpinho. No
início da descida, esquecia-me de dizer, gritei para a Marília que pode vir já a seguir, vamos lá que nem rangers salvar isto.
Quando cheguei ao chão, já a mais nova tinha tirado algumas coisas grandes da areia, coisas da festa. Depois, eu e ela arrastámos os dois automóveis antigos que serviam de decoração à praia, situação intencionada para modo chill out, penso eu, e vai um de cada vez, uma de cada lado, foi puxá-los para cima e foi fácil. Conseguimos salvar tudo mesmo antes de a água embater, momento em que acordei.
Quando cheguei ao chão, já a mais nova tinha tirado algumas coisas grandes da areia, coisas da festa. Depois, eu e ela arrastámos os dois automóveis antigos que serviam de decoração à praia, situação intencionada para modo chill out, penso eu, e vai um de cada vez, uma de cada lado, foi puxá-los para cima e foi fácil. Conseguimos salvar tudo mesmo antes de a água embater, momento em que acordei.
E é aqui que chamamos o Morfeu, deus grego dos sonhos, qual Olimpo qual quê, chega-te lá aqui à gente.
Primeiro, ninguém percebeu que festa era aquela. Segundo, a torre
havia de saber-se a altura certa, eu calculei trinta metros mas podiam ser
quarenta e dois e isso impressionaria muito mais as pessoas, compreendes? Terceiro e mais importante, que foi feito da Marília?
- Marília foi encarregar-se das pessoas enquanto vocês, as mais fracas, se ocuparam das coisas. Disposições divinas.
(Marília ajudou outros
passageiros a desembaraçarem-se dos cintos para se porem de pé, enquanto tentava chegar, no escuro, à porta do avião, que estava virado ao contrário, de rodas para o ar, só com uma asa e fora da pista. Foi há muito tempo. Felizmente sobreviveu quase toda a gente. E tanto me impressionou isto, que sonho com ela.)
06/02/2015
Em postas de caldeirada
Descobri por acaso que apenas dois meses de calendário separam os nascimentos de Fiódor Dostoievski e Gustave Flaubert. Dois meses e um par de milhares de quilómetros, mas os dois meses é que achei imenso.
Imenso aqui quer dizer coisa de relevo, é tomar nota. Depois, agora já não por acaso, mas por interesse, apurei que morreram estes mestres da pena em anos consecutivos, o que não é pouco coincidente, é muito. Resultado, escolhi Fiódor para se seguir à leitura de Madame Bovary, como aliás se estava mesmo a ver.
A minha filha diz que adora a professora de matemática e pôe-se a tecer durante um pedaço de tempo bem medido em minutos nada magrinhos um rol de elogios, após o que conclui que a referida professora se parece comigo. Com as devidas correcções, acrescenta com prontidão, no que toca ao enfoque em marcas de produtos, será roupas será malas, que na professora se evidencia claramente e em mim uma instalada escuridão revela a ausência de semelhantes interesses. Não é verdade, eu gosto de marcas mas ainda é segredo não registado fora daqui.
Há dias, encontro-me manhã bem cedo no autocarro que me leva e a outras pessoas minhas desconhecidas até ao embarque no avião da TAP que está algures longe do alcance das mangas, acontece. Uma destas pessoas, de idade muito tenra, eu dava-lhe dois anos se ela quisesse, tem o cabelo encaracolado e senta-se ao colo de uma mãe farta. À medida que vamos passando pelos aviões estacionados ora aqui ora acolá, chama-os pelo nome, chamar é favor, o que ela faz é gritar entusiasticamente, numa familiaridade a plenos pulmões, os nomes dos aviões. Nomes dados por ela que não pude reter devido ao sotaque conferido pela parca experiência demonstrada no falar, uma pena. Eu também sofro de fascínio por aviões há muito tempo, mas nunca o tinha diagnosticado numa miudita a quem dei dois anos (terá ficado com quatro), quanto a mim é de assentar.
Hoje no museu Kroller-Muller (Kroller leva trema em cima do "o" mas eu não sei pôr), fiquei a saber que a pintura de Vincent van Gogh começou a ser conhecida e apreciada em círculos cada vez mais largos muito depois da sua morte. O casal com aquele nome que leva trema em cima do "o" gozava de larga abastança financeira e fez a primeira aquisição, depois a segunda e assim sucessivamente, os números não gostam de mudar de lugar e o jeito que isso dá, uma após outra compraram ao todo largas dezenas de obras do Vincent. A primeira foi esta, caso haja interesse, para mim houve, que nunca tinha visto esta orla desta floresta assim.
Estou, portanto, deslassada, desgarrada e desfiada, como já se vê, não sei que me fez isto. Nada de história coesa, nada de fio a pavio, tudo assim servido em postas de caldeirada, fatias de bolos diferentes, missangas de vários colares, o problema é a vontade de escrever. Estou aqui estou a pedir perdão.
Imenso aqui quer dizer coisa de relevo, é tomar nota. Depois, agora já não por acaso, mas por interesse, apurei que morreram estes mestres da pena em anos consecutivos, o que não é pouco coincidente, é muito. Resultado, escolhi Fiódor para se seguir à leitura de Madame Bovary, como aliás se estava mesmo a ver.
A minha filha diz que adora a professora de matemática e pôe-se a tecer durante um pedaço de tempo bem medido em minutos nada magrinhos um rol de elogios, após o que conclui que a referida professora se parece comigo. Com as devidas correcções, acrescenta com prontidão, no que toca ao enfoque em marcas de produtos, será roupas será malas, que na professora se evidencia claramente e em mim uma instalada escuridão revela a ausência de semelhantes interesses. Não é verdade, eu gosto de marcas mas ainda é segredo não registado fora daqui.
Há dias, encontro-me manhã bem cedo no autocarro que me leva e a outras pessoas minhas desconhecidas até ao embarque no avião da TAP que está algures longe do alcance das mangas, acontece. Uma destas pessoas, de idade muito tenra, eu dava-lhe dois anos se ela quisesse, tem o cabelo encaracolado e senta-se ao colo de uma mãe farta. À medida que vamos passando pelos aviões estacionados ora aqui ora acolá, chama-os pelo nome, chamar é favor, o que ela faz é gritar entusiasticamente, numa familiaridade a plenos pulmões, os nomes dos aviões. Nomes dados por ela que não pude reter devido ao sotaque conferido pela parca experiência demonstrada no falar, uma pena. Eu também sofro de fascínio por aviões há muito tempo, mas nunca o tinha diagnosticado numa miudita a quem dei dois anos (terá ficado com quatro), quanto a mim é de assentar.
Hoje no museu Kroller-Muller (Kroller leva trema em cima do "o" mas eu não sei pôr), fiquei a saber que a pintura de Vincent van Gogh começou a ser conhecida e apreciada em círculos cada vez mais largos muito depois da sua morte. O casal com aquele nome que leva trema em cima do "o" gozava de larga abastança financeira e fez a primeira aquisição, depois a segunda e assim sucessivamente, os números não gostam de mudar de lugar e o jeito que isso dá, uma após outra compraram ao todo largas dezenas de obras do Vincent. A primeira foi esta, caso haja interesse, para mim houve, que nunca tinha visto esta orla desta floresta assim.
"Bosrand", Vincent van Gogh, agosto/setembro 1883
Estou, portanto, deslassada, desgarrada e desfiada, como já se vê, não sei que me fez isto. Nada de história coesa, nada de fio a pavio, tudo assim servido em postas de caldeirada, fatias de bolos diferentes, missangas de vários colares, o problema é a vontade de escrever. Estou aqui estou a pedir perdão.
05/02/2015
Canapé solitário
Depois do jantar, adormeci com o Dostoievski no colo. O Idiota. Não que não esteja a apreciar a leitura, estou até muito - escrita cem anos antes de eu nascer, é obra sobreviver assim - mas o dia foi longo, cheio de afazeres.
De cima das suas noventa e três primaveras, Anton descascara as batatas para o jantar, limpara a loiça que eu lavei e fizera o café. A sua recente condição de viúvo chama muito o telefone, mas foi o estrondear da campainha que me acordou. É a vizinha muito alta que passeia sempre o cão ao colo. Vem, sem o cão, apresentar as condolências. Ficará só um quarto de hora, como combinado quando a encontrámos à tarde no elevador, para não o cansar. Os holandeses não tomam a peito que lhes sejam limitadas as visitas, ou mesmo negadas, aceitam e colaboram genuinamente. Mesmo assim ofereci-lhe uma bebida, oferece-se sempre uma bebida, este é um povo de costumes fixos e organização extrema. A vizinha começa, depois de recusar a bebida delicadamente, a fazer a despesa da conversa, que não há tempo a perder, despesa que não sou capaz de pagar, não na mesma moeda, do que ela diz não percebo mais que algumas frases soltas. Deixo-me, então, escorregar para dentro de mim, mas antes de mergulhar no meu mar de silêncio interior, Anton recorda à vizinha a minha nacionalidade.
Ao ouvir isto - ze is portugese - sinto aquele salto no coração que não tenho a certeza de se chamar orgulho ou se é saudade, talvez tenha dos dois, que resulta nesta vontade urgente de estabelecer ligação contigo, vou-te contar.
Tão extrema é a organização deste povo, queres ver, nas festas, por exemplo, oferecem-se as quantidades que dão conta certa com o número de convidados. Não se produzem desperdícios, mas eu naquela altura ainda não sabia.
Comemoravam-se os trinta anos de casamento dos donos da casa. Organizou-se uma espécie de ceia, havia muita gente. Primeiro as bebidas à chegada, música a tocar, as segundas rodadas, terceiras, os copos parece que nunca estão vazios muito tempo e, depois de muito se beber, declarou a dona da casa que estava na altura de se comer. Toda a gente se levantou das cadeiras espalhadas aqui e ali, se aproximou prontamente da mesa e a rodeou. Havia sanduíches triangulares com recheio apetecível e côdeas aparadas, um bolo fatiado e canapés feitos com pedacinhos de peixe nem sempre cozinhado, azeitonas, tirinhas de pimento, queijo, anchovas, muita cor, lá isso havia, os meus olhos comiam e os dos outros provavelmente também.
- São dois canapés por pessoa, duas sandes e uma fatia de bolo, podem começar - a dona da casa ditou as regras e eu, divertida, pensei que era a brincar.
Entremeadas com as conversas à esquerda e à direita, as sandes não foi difícil tratar das duas que me competiam, que boas eram, e que faço eu, que fazes tu, onde estudaste, onde trabalhas, na aparelhagem lembro-me de ter ouvido fado, fado?!, que boa música têm vocês, aqui na Holanda gosta-se de fado, a fatia de bolo, não sendo grande, também a comi bem, e o Algarve é maravilhoso no verão, as praias, a água quente, o peixe fresco tão barato, queremos voltar, lá cordiais são os holandeses, e quanto aos canapés é que me fiquei pelo primeiro, não me tendo agradado este ao paladar não me lancei ao segundo, tempo de fechar a loja, como se costuma dizer.
No fim dos comes, sobram as conversas, que rolam bem entre todos, a mesa exibe os pratos das sandes vazios, no do bolo vestígios, fatias nenhuma, os pratos dos canapés idem, não fora um ter ainda, orgulhosamente intacto, aquele que eu não comi.
- Quem não comeu os dois canapés?
Fez-se silêncio para que se pudesse ouvir a voz faltosa. Corei e acusei-me. A dona da casa, então, que é preciso despachar isto e lavar a loiça, já são horas, pega no canapé solitário e vira-se para mim.
- Abre a boca!
Ontem, de dentro do carro em andamento, fotografei a neve que caía lá fora. Esta coisa tão linda meteu-se-me na lente assim, toda direitinha.
Ede, Países Baixos
03/02/2015
Abraços, sim, beijos e um farrapo perdido de bacalhau
Começaram a chegar. Eu estou na cozinha a terminar a salada que
arranjo dentro da taça de cristal oblonga e o Rodrigo vem a correr agarrar-se às
minhas pernas, esta parte é inventada que ele fica é ao colo da mãe, mas
inventar aqui pode-se, Rodrigo dá um beijo à tia. Tomo nos braços estes dois
anos de gente e ele enrola os dele tão pequeninos à volta do meu pescoço,
empenhado lambuza-me a cara com um beijo também oblongo e depois desmancha o abraço
e olha-me sério com a expressão de estás-a-gostar-do-efeito? E esta é tão boa
que eu não a podia ter inventado, foi mesmo assim, dá outro abraço à tia,
caramba, começas bem.
Ponho o miúdo no chão com vontade de lhe dar mais uns apertos,
suponhamos, torno aos meus afazeres e chamo a Sofia para ajudar com os queijos,
preciso de uma tábua de queijos. O Tiago abre as garrafas de vinho e a Marta
está tão crescida. A minha mãe chega com o bolo de anos e a caixa vem pingada
de sangue, mãe o que foi? Entalei-me na porta do carro, olha para isto, tens aí
um penso? Alguém vai buscar um penso à avó? A salada já está, Miguel, levas
para a mesa? E de caminho chama a tua prima; Mafalda, leva os sumos. A Maria e
a Beatriz vêm de igual, nestas idades ainda se pode, beijo à tia meninas,
ponho-me de cócoras e recebo a encomenda nas faces, dois abraços simultâneos,
um maior que o outro, levanto-me, o Tomás já tem barba, estás bonito, Tomás, e o Diogo, como vai a
escola, Diogo? A minha mãe volta de penso enrolado no dedo e dá cá um abraço à
mãe, sou eu a ser esmagada agora, que viçosa está a minha mãe.
Quem quer sopa? Toma, Lourenço, leva também a do tio Luís. Mateus, anda cá, já me esqueci em que ano estás, quarto?, sim, quarto, o que gosto mais
é de saber história, tia, as invasões francesas é brutal, ui Mateus, isso é de
homem!, toma a sopinha, amor. Quem falta? Meninas, a sopa ao avô e às tias,
levem lá.
Enfio um prato cheio na mão da minha irmã mais nova, estás magra, miúda, come
(magra mas linda). Tiro a lasanha do forno, está quente e cheira bem, cuidado, amor,
não te queimes, vamos embora, trazes essa colher grande, Maria?, sem correr! Quem
me serve um pouco de vinho? O queijo com gengibre foi barbaramente atacado, a bola de carne que a avó fez com farinha integral está daqui (na
ilustração vê-se bem que agarro e puxo a orelha direita enquanto digo daqui), mas continuo a não querer uma bimby, não me ofereçam uma bimby, já me bastam as snapchats a toda a hora enviadas aos
amigos das minhas filhas, já não se pode andar xepa em casa, não me apanhas na
foto, ouviste?, vê lá o ângulo disso.
No fim, a sala deserta exibe um chão povoado de bocados de bolo
de chocolate esmagados, pedaços muito pequenos de batatas fritas, uma mini bola
de gelado derretida, um farrapo perdido de bacalhau, só um e, para fechar, dois
bocados de tostas, estas não pisadas caso contrário eu teria escrito dois
montinhos suspeitos de migalhas, resultado, vassoura e pá que já é tarde para o
aspirador e amanhã é dia de trabalho.
Que hoje foi de abraços. Muitos.
(e de mudar nomes, uma trabalheira)
01/02/2015
Tripas dobradas em três
Se não estivesse a pagar contas na internet de casaco
vestido, podia ir comprar um selo para te mandar a carta que não te escrevi à
mão.
Mas estou a pagar contas na internet de casaco vestido. Fui
apanhá-las dentro da caixa metálica encastrada na parede da entrada do prédio; abro a caixa com a chave mais pequena e com pouca vontade, porque já sei.
Lá dentro, com as
contas, todas em envelopes de janela com vista sobre o meu nome a encabeçar
esta morada, não estará a resposta à carta que não fiz para ti. Meto a mão,
retiro os envelopes e depois vejo, acamado neste leito frio e habitualmente escuro,
um cartão de tamanho esquisito anunciando, em letras azuis e vermelhas, experiência
em caixilharia de alumínio com orçamentos grátis. Subo as escadas enquanto o
leio e me pergunto quem fará o arranjo gráfico destes cartões caseiros que não
deito fora por serem assim. Já em casa, guardo-o na caixa de madeira junto dos que falam de serviços bons para as canalizações ou os que acalentam a esperança
camuflada de virem a reparar estores a preços baixos. Ora eu não sei a esta
data se noutra qualquer terei precisão de uma caixilharia de alumínio com
orçamento grátis, pois não? Então pronto (não te rias).
Depois é os envelopes com janela. Abro-os por trás com
cuidado, que o papel gosta de afinfar (afinfar?!) na pele dos meus dedos
cavando-lhe um caminho estreitíssimo, golpada para ficar a doer vários dias, se
bem que hoje não. De dentro, então, lhes retiro com dedos intactos as tripas dobradas
em três, aliso-as, sento-me a pagar as contas de enfiada, não compro selo
nenhum e foi aqui que começou.
Quando acabou, tirei o casaco. Ainda cheira ao teu abraço.
(foi por ter lido isto,
que este post germinou e se veio meter aqui)