Desta vez custa-me erguer
a mala acima da minha cabeça para a enfiar no espaço vazio da bagageira do
avião. O meu ombro direito melindrou-se há dias com um alongamento que lhe
impus na aula de dança e já contaminou o braço, agora não gostamos de erguer malas
assim. Sento-me no meu lugar ao lado de um casal luso de meia idade, ele
resmungão profissional, já o topei lá fora, sempre zangado, ela doce e como que a
desculpar-se por estar ali, sim querido, desculpa eu ter nascido, desculpas,
amor? Olha, queres uma bolachinha que eu tenho aqui? Toma, toma. E pastilha
elástica por causa dos ouvidos, já te dei?
Dentro da minha mala a
fazer aquele peso estão dois utensílios de cozinha para esmagar muito bem batatas
cozidas, e o que eu gosto de batatas cozidas, um pão holandês inteirinho, o
vestido que usei no único jantar praticamente de gala a que fui, no qual comi
uma sopa de caranguejo com tangerina quente servida ao aperitivo, em pé, eu
naqueles saltos tremendos, a sopa numa tacinha do tamanho duma chávena de café, coisa assim, e depois com dois golos mal medidos lá se foi o caranguejo com tangerina quente, impressionante,
adiante, um número substancial de cêdês que também trago e se não me falha
mais nada para além do braço direito, três livros, tenho ali três livros, que o
quarto ficou de fora para ler na viagem, aqui está ele, coisa rica da mamã.
Ah, mas a dor de levantar
a mala enervou-me o braço, que agora me põe a mão a tremer se quero segurar o
livro, espera aí livro.
De maneira que dá tempo de voltarmos ao
casal enquanto o braço se acalma. Perguntei-me por que razão gostam algumas
mulheres de estar casadas com homens que a cada novo momento encontram um
motivo para resmungar, como se todos os tempos de espera (o voo atrasou uma
hora) ou os contratempos inesperados (as mulheres querem coisas e fazem coisas
e dizem coisas, nas filas, fora das filas e em todo o lado) fossem um
inferno oferecido às postas com espinhas, esses tempos e contratempos, temas que lhes ferem as vísceras, mas só as deles, as
mais delicadas, entranhas habituadas a serem servidas sempre a
contento, desculpas, amor? E depois vocês quiseram ficar a fazer não sei o quê, vocês
é a própria mulher e as outras que iam no mesmo grupo, e a gente aqui ta ta ta que eu já nem ouvi. Porque não fazem eles o embarque por filas, organizado, isto assim é
uma confusão. Olha como estes arrumam as malas, que belo serviço que está ali. E mais coisas destas, todas muito inúteis e todas muito cheias de um propósito imaginado na cabeça do marido zangado, seguidas de exclamações tolerantes e ligeiramente aflitas da sua mulher, desculpas, amor? Ela é
doce e tem palavras doces até para mim, assim que me sento, a esfregar o ombro
direito: o seu lugar é esse? É que eu sentei-me aqui à janela, mas não tenho a
certeza, sim sim o meu lugar é este, não se preocupe. Ah, ainda bem, senão
podíamos trocar. Ela sorri e eu simpatizei, lá fora já tinha simpatizado com ela, eu tenho a mania
de engraçar com as pessoas que deixam ver uma fraqueza.
Abri outra vez o livro. Uma fraqueza?! Tenho a mania de engraçar com as pessoas que deixam ver uma fraqueza?! Pois tenho, uma fraqueza, tenho. E mesmo duas, qual é o mal? duas também.
Mas isto, estes maridos resmungões, arrotando opiniões dispensáveis, desagradáveis, as vísceras sensíveis, profissionais de verter intolerância grátis em cima das suas mulheres, desculpas, amor? mostrarem assim ao mundo as muitas fraquezas que têm, tantas tantas, imensas, engraçar com estes é mania que não tenho mesmo nada.
O meu braço acalmou e a mão já não treme. Meu rico livro, vamos lá.
Abri outra vez o livro. Uma fraqueza?! Tenho a mania de engraçar com as pessoas que deixam ver uma fraqueza?! Pois tenho, uma fraqueza, tenho. E mesmo duas, qual é o mal? duas também.
Mas isto, estes maridos resmungões, arrotando opiniões dispensáveis, desagradáveis, as vísceras sensíveis, profissionais de verter intolerância grátis em cima das suas mulheres, desculpas, amor? mostrarem assim ao mundo as muitas fraquezas que têm, tantas tantas, imensas, engraçar com estes é mania que não tenho mesmo nada.
O meu braço acalmou e a mão já não treme. Meu rico livro, vamos lá.
Cara Susana,
ResponderEliminarO título é muito bom. Como o é o texto. As distensões musculares são aborrecidas, mas enquanto for dando para ler...
Boa noite,
Outro Ente.
Muito obrigada, caro Ente.
EliminarEm dando para ler (e escrever), está tudo em ordem.
Boa noite. :-)
Também simpatizei com ela. É mulher que consegue, delicadamente, retirar as espinhas do peixe, :)
ResponderEliminarÓ Luísa, intriga-me que digas (escrevas, lá no teu canto florido, tão lindo) que não tens jeito para as palavras. Intriga-me.
EliminarQue bom também teres simpatizado, era isso que eu queria :-)