15/11/2015

Amor à vida

Enquanto espero pelo embarque, o voo está atrasado, penso em poesia. Penso, sentada entre desconhecidos, que cada poema é um ser único, existe desde antes de ser escrito. Tem um nome, um determinado número de sílabas, o seu próprio adn, tem alma. E aguarda pelo seu poeta. No botão de uma rosa, num oco de uma árvore morta, no aroma do pão a cozer, numa sombra de luar, no voo da águia, num acorde musical ou no contorno de um cacho de uvas. Depois vem a brisa e leva-o. Transporta-o no seu torso até junto do poeta que o poema designou seu. Sem saber que foi escolhido, o poeta faz uma sílaba, depois outra, põe-lhe uma vírgula, uma rima, dá-lhe uma melodia até que o poema ganhe um corpo inteiro, torna-se autónomo.

Quando finalmente começa o embarque, fecho o pensamento e vagueio com o olhar pelos meus vizinhos: os dois homens que me passam à frente na fila sorrateiramente e eu deixo, a mulher jovem de cabelo cor de laranja que fala inglês alegremente com um homem de cabelo louro, muito comprido. Ela tem dentes bonitos e lembra-me a Cláudia, minha amiga de infância segundo a qual, aos oito anos, eu fazia muitas perguntas.

Logo após aterrar em Eindhoven, ainda dentro do aeroporto, passa por mim alguém que ao telefone comenta, em tom de urgência, qualquer coisa sobre o presidente francês. Os horrendos ataques em Paris tinham acabado de ocorrer.

Hoje continuo a fazer muitas perguntas, faço aliás cada vez mais. Pergunto, por exemplo, que tipo de seres são estes que, em vez de amor à vida, têm-no à morte, à deles e à dos outros.

11 comentários:

  1. Talvez a vida lhes tenha sido apresentada numa versão tão má que lhes foi impossível ganhar-lhe amor. Ou da necessidade de arranjar uma justificação para o injustificável.

    Esta outra Cláudia, que acha que também poderia muito bem ter sido tua amiga de infância, deseja-te uma excelente semana. :-)

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    1. Acho que há uma manipulação destas pessoas que é muito perigosa, Cláudia. Penso que eles realmente acreditam que se morrerem vão encontrar um paraíso qualquer. Tal como Hitler conseguiu convencer milhões de alemães, por exemplo, de que os judeus eram uma raça que os queria aniquilar.

      Essa Cláudia que também é Filipa podia ter sido sim minha amiga de infância. E de agora também podia.
      Uma excelente semana para ti também. :-)

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    2. Pois, é aquela dúvida que não entendemos, como é possível não dar valor à vida. Só semelhante aos kamikaze japoneses na II Guerra Mundial...

      Abraço

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    3. Comentando o comentário e a resposta ao comentário (pelo que peço desde já desculpa). Sim, são pessoas manipuláveis -- e com propensão para o suicídio. Na religião deles, o suicídio representa uma desonra -- a morte em batalha contra os infiéis, uma honra. A taxa de suicídios nos países islâmicos é, oficialmente, muito muito mais baixa do que nos de outras religiões (0,3 na Siria versus 8,2 em Portugal, por 100.000 habitantes). A escolha é racional, dentro do que nos parece uma irracionalidade terrível. Os verdadeiros criminosos são os que, acima deles, os recrutam, treinam, manipulam.

      Uma boa noite, a ambas :)

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    4. Teté, não dá, pois não, para entender. Somos certamente feitos de matérias diferentes, nós, os que lutamos pela vida e a defendemos.

      Xilre, os verdadeiros criminosos são esses, de facto, e são uma minoria. Mas o que me espanta é a maleabilidade dos outros cérebros todos, em massa, de acatarem ideias contranatura, sejam lá eles de que religião forem. Constato que se a política divide as pessoas, a religião ganha-lhe aos pontos nessa maléfica tarefa.
      Aqui no nosso pequenino Portugal somos praticamente todos (os lusos) da mesma religião e mesmo assim tanto que inventamos de nos dividir. Uma pena.
      Boa semana aos dois. :-)

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  2. Horário do fim

    morre-se nada
    quando chega a vez

    é só um solavanco
    na estrada por onde já não vamos

    morre-se tudo
    quando não é o justo momento

    e não é nunca
    esse momento

    Mia Couto

    Beijos, Susana.

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    1. Que lindo poema, Maria. Obrigada.
      Não era o momento destes pessoas morrerem, pois não. Ainda não.

      Beijos, Maria.

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  3. Não há como não fazer perguntas perante o horror.

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    1. E como ficar uma e outra e outra vez sem respostas.
      Um beijo, luísa.

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  4. Eu (ainda) não sou capaz de fazer perguntas sobre este assunto e outros da mesma natureza. ;(((
    Boa semana, Susana.
    Beijo

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    1. Emudecemos perante tanta monstruosidade incompreensível, de facto assim é.
      Boa semana, Isabel, outro beijo.

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