Sentou-se na cadeira ao meu lado na sala de espera improvisada num corredor do hospital. No colo uma mala de pele vermelha, pele vermelha parece que quer dizer índia, mas quer dizer pele vermelha. Da mala retirou um pequeno livro que folheou antes de começar a ler. As folhas curvaram-se em grupo umas sobre as outras e sob a pressão do seu polegar, depois com o alívio do polegar deixaram-se cair na mesma sequência, de novo aplanadas: o som que fizeram as folhas transportou-me para as leituras que fiz nas revistas das seleções do reader's digest há mil anos ou, diria mais, há cem (esta parte lógica baseia-se numa tirada do Obélix, caso contrário eu não me teria metido nisto, evidentemente). Entretanto, ela começou a ler. O livro está escrito em francês, mas eu não consigo daqui ler nada de jeito, e até queria aproveitar porque estou precisada de treinar o francês, mas esticar-me não posso, estou torcida com a dor que aqui me trouxe hoje.
Ao fundo deste corredor feito sala de espera surge um médico que se vê mesmo que é um médico. Aproxima-se dela e diz-lhe em voz relativamente baixa, mas eu capturo tudo, que o meu português continua bom:
- Ela diz para lá ir buscar os iogurtes, tem iogurtes para si.
Depois o médico sacode a cabeça e fala de novo, perante a minha companheira de banco, que ainda não disse nada.
- Mas olhe... eu acho que ela está é nervosa.
- Obrigada - falou agora.
Na minha cabeça formou-se a cena. Esta rapariga cujo francês é melhor que o meu e tem uma mala de pele vermelha está a acompanhar uma doente que tem iogurtes para ela e que não está aqui. Satisfeita com a minha própria dedução, encosto a cabeça na parede atrás de nós e tento relaxar, controlar a dor. De vez em quando a leitora do livro em francês solta uma pequena risada e nunca mais vai buscar os iogurtes. Eu um iogurte até ia, que já não como há imensas horas (não vou repetir a lógica do Obélix para não cansar, mas apetecia-me devido a estar radiante por afinal não ter tido uma faca cirúrgica do tipo bisturi a abrir-me a barriga hoje mesmo) claro que gosto das risadas da minha vizinha, mas fico quieta e continuo sem meter conversa, quero atentar às chamadas dos nomes, o meu há de surgir muito distorcido no altifalante e eu temo não o compreender, apesar de vir em português.
De repente ouve-se uma barulheira vinda do fundo do corredor de onde surgiu há pouco o médico, uma mulher com idade para ser minha mãe e de certeza avó (ou mesmo mãe, ai lá escapou) da rapariga do livro em francês, vem agarrada a um funcionário do hospital que tenta acalmá-la, calma, calma, já vamos, calma, e ela não se acalma, ó Cristina!, Cristina!, onde estás Cristina?, tenho aqui os iogurtes para ti, ó Cristinaaaa!
O rapaz que a acompanha condu-la ao assento vago do outro lado da Cristina, que fechou o livro e está a olhar para eles. A mulher senta-se pesadamente, traz um tubo enfiado na mão, diz que não vê nada, ó Cristinaaaa!!, diz, não, grita, grita que não vê nada, enquanto mete a mão com o tubo dentro da mala cuja cor já não me lembro qual era e procura os iogurtes, Cristina!, tu não comeste nada para vires para aqui comigo e eu estou preocupada, come os iogurtes! (os pontos de exclamação vêm com os gritos).
- Leonor, eu não quero iogurtes - afinal não se trata de mãe e filha (digo eu) nem avó e neta.
- Sim, queres, vais comer os iogurtes!!! Tu não comeste nada, Cristina!!! Eu trouxe-os a pensar em ti!!! - a mão continua dentro da mala e os gritos fora, por todo o lado, eu nesta fase já me tornei admiradora da Cristina.
De repente surgem de dentro da mala cuja cor me escapou, duas embalagens de gelatina de morango pronta a comer no caso de se ter uma colher.
- Isso não são iogurtes - a Cristina pôs em palavras o meu pensamento.
- Não são iogurtes?!
- Não - não tenho a certeza se foi só a Cristina ou se eu também articulei este não.
Mas ela não se fez rogada, espetou com as duas embalagens de gelatina e de secção quadrada, agarradas por um lado no topo, quem já foi ao supermercado e ainda não se fartou deste post de grandes dimensões está mesmo a ver como é, espetou com elas, dizia, em cima do casaco da Cristina, dobrado no seu colo,onde também está a mala de pele vermelha. Não tenho fome, diz a Cristina, come!, tens de comer!, grita a Leonor, mas isso não mata a fome de ninguém, penso eu.
- Está bem. Mas não posso comer isto assim, tens uma colher, Leonor?
A Leonor tem duas e volta com a mão entubada para dentro da mala, sem nunca parar de gritar - toda a sala de espera está, obviamente, a acompanhar, mas creio que mais ninguém tira notas (que são mentais, por causa da dor que tenho). Saem as colheres semi-embrulhadas num pedaço de papel com muito mau aspeto, uma delas está limpa!, grita Leonor, vê lá qual é, Cristina! E os seus dedos esfregam as colheres a ver qual delas é a limpa, o processo dá-lhe tempo de gritar que o médico foi um mal educado!, não, Leonor, o médico teve mesmo muita paciência, paciência?! com aquele tom?!, sim, dificilmente arranjas outro tão paciente. E continua: não tenho fome, Leonor, deixa estar. Nesta altura nota que o seu casaco está sujo, uma das embalagens está a verter gelatina derretida, olha, já me sujou o casaco. E limpa-o com a mão e com muita paciência.
- Então deita isso no lixo, pronto!
O altifalante diz o meu nome seguido de gabinete cinco. Já não vi se as gelatinas foram para o lixo, mas não foi preciso. Bastou-me trazer do hospital a certeza de que os anjos existem e de que foi por ter estado sentada ao lado de um, que a dor se foi embora e a minha barriga chegou a casa inteira.
Há que ter uma infinita paciência com algumas pessoas mais velhas e doentes. Tantas vezes, depois, nem se lembram dos gritos ou da agressividade...
ResponderEliminarAinda bem que a tua dor passou!
Beijo, Susaninha, e um feliz Sábado. :)
É verdade, e nem toda a gente consegue ter uma paciência assim infinita. É uma forma de amar, a meu ver. Um amor puro, altruísta.
EliminarPois passou, miraculosamente passou...
Beijo de volta, Maria querida, e um feliz domingo. :-)
Atao mas o anjo pra mim era a entubada caraças?! Tanta merda por uma gelatina lixada.
ResponderEliminarSe calhar a entubada já foi um anjo no passado, daí ter agora outro anjo a cuidar dela, está bem visto, de facto.
EliminarA gelatina foi uma forma egoísta de dar. Quanto a mim.
Bem-vindo, Grunho! (gosto dos óculos)
Muito bom ser capaz de encontrar anjos assim, e incrível ser capaz de a ver e registar, estando com dores (se fosse eu, não iria conseguir ver ou ouvir o anjo)
ResponderEliminarQuerida redonda, claro que eras, tu, o detector mais eficaz da blogosfera! Não há concurso ou livro em desconto que não detectes, e ainda serves umas iguarias nortenhas de fazer água na boca e dás um cheirinho de compras de Natal... claro que eras. :-)
EliminarAgradeço eu.
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