Lembro-me bem dela, chamava-se Helena e o nome assentava-lhe bem, pela elegância. Eu tinha onze anos e ela era alta, o seu cabelo bonito. Era a minha professora de matemática. Mandava-nos ao quadro fazer exercícios e falava com voz firme, quente e calma. Era mulher que me inspirava respeito e admiração, era muito bonita a professora Helena e eu queria ser como ela. Naquela altura eu tinha - tínhamos todas, era uma moda - um livrinho de autógrafos. No final de uma aula de matemática, pedi um autógrafo à professora. Ela escreveu que me desejava felicidades na minha vida académica e privada. Fui ver "académica" ao dicionário. A letra dela era alta e elegante, a condizer-lhe com o nome, Helena. Lembro-me que escreveu a azul. Um dia a professora de matemática faltou, um dia, dois, uma semana, ouvimos dizer que estava doente. Doente também eu tinha estado, e as minhas irmãs, o xarope ajudava e as atenções da nossa mãe também, por isso não me importava nada o estar doente, pensava que era normal estar doente. Continuei a correr no recreio com as minhas colegas, a jogar ao mata ou a saltar à corda, que era a minha especialidade. As meias de lã até ao joelho que tínhamos de usar - era um dos requisitos da farda - tinham a mania de escorregar até formarem um fole no tornozelo. Havia muitas meninas a puxar as meias para cima no recreio, uma meia, depois a outra.
Quando a professora de matemática voltou, aproveitei o final de uma aula, aproximei-me da secretária quando ela estava a escrever no livro dos sumários e perguntei-lhe que doença ela tinha tido. Olhou para mim e hesitou. É uma doença das senhoras, disse por fim. Doença das senhoras. Fiquei mais um segundo ou dois à espera de saber qual doença era essa das senhoras, mas ela baixou a cabeça e continuou a escrever. A professora Helena tinha duas filhas a estudar lá no colégio, eram mais velhas do que eu e por isso não me atrevi a perguntar-lhes de que doença das senhoras se tratava. Pouco tempo depois a professora Helena tornou a faltar e veio outra cujo nome não me lembro, nem se era alta ou como era. A professora Helena desta vez não voltou. Soubemos pouco depois que morrera da doença das senhoras. Fiquei muito triste e horrorizada por ela ser tão nova, pensava que só as velhinhas morriam, pensei que se a minha mãe morresse eu também morreria, que uma mãe não podia morrer, era proibido as mães morrerem e senti uma dor aflita e terrível pelas filhas dela, não sabia como se respirava se a mãe morresse, como se fazia para o coração bater. Não me atrevi a aproximar-me delas quando retomaram as aulas, limitei-me a observá-las discretamente no recreio. Mas notei, nestas observações, que elas continuavam a correr como dantes, que as meias também lhes escorregavam para os tornozelos, tal como as das meninas que, como eu, tinham mãe. E que elas também as puxavam para cima, uma meia, depois a outra. E foi precisamente isto que, ao fim de algum tempo, me sossegou.
Há pessoas no nosso percurso que, de tão bonitas que são, se tornam imortais aos nossos olhos. Eu, que não gostava de Matemática no 8º e 9ºs anos, lembro-me bem da Professora Cristina, que nos deixou há menos duma década, com uma doença de senhoras. E depois tudo continuou e continua...
ResponderEliminarÉ verdade, querida Homónima, a vida de facto continua, e estas pessoas que plantaram alguma coisa na nossa vida, continuam também, dentro de nós. Ao menos isso consola um pouco.
EliminarQue texto tão lindo Susana :)
ResponderEliminarA minha professora primária também faleceu enquanto eu andava na terceira classe. Foi muito triste. Chorei muito. Fui ao funeral e tudo. Ainda hoje me lembro dela. E peço-lhe ajuda quando preciso e tenho a certeza que ela me ajuda. Era tão boa...
Deste-me um ideia! Espero que não te importes se algum dia também eu escrever um post sobre a minha professora.
Beijinhos**
www.pensamentoseepalavras.blogspot.pt
Claro que não me importo, Hélder. Até fico satisfeita de te dar uma ideia sem querer. :-)
EliminarObrigada pelas tuas palavras.
Beijinhos de volta.
a última vez que ouvi falar da minha professora de matemática do 10º ano (e 11º e 12º), foi precisamente com a notícia de que sofria de cancro... nada soube depois.
ResponderEliminardevo-lhe muito. nunca julguei que fosse capaz de voltar a dominar a matemática, depois de a abandonar na rebeldia do 8º ano.
não me recordo do nome, mas, ao contrario de quase todos os outros, se não todos, continuo a lembrar-me muito bem da sua cara. diziam que era má, fria, intransigente. foi a melhor professora que tive. maus foram as três professoras que tive no 7º ano, despejando matéria até ao toque da campainha. foi por causa deles, que os números me começaram a parecer insuportáveis, logo a mim, que sempre gostei deles e das suas soluções definitivas. na matemática, ao contrário do português, nunca havia segundas leituras nem dúbias interpretações. não é maravilhoso, algo assim?
Um professor pode de facto fazer uma diferença que não tem preço e da qual beneficiamos toda a vida. Tenho muito respeito por professores como essa tua de matemática, flor. São gente excepcional, tenho-me cruzado com alguns. É maravilhoso, pois é. Também gosto muito de matemática.
EliminarPois é, querida Susana(permita-me que a trate assim), independente da dor, continuamos a saltar, a comer, a respirar. Primeiro com alguma dificuldade, depois e aos poucos com a naturalidade de sempre. Mas há pessoas que nos marcam. Tão bom que as há, não é? Até servem para belos posts.
ResponderEliminarE é também nesses "continuares" apesar da dor cá dentro que nos apercebemos da força que temos. Ou que podemos ter, se preciso for. Acho que quase qualquer coisa serve para posts, é só haver vontade de contar a estória ou história (eu prefiro história :-)) e dar o nosso melhor.
EliminarClaro que sim, querida Ava! :-)
Eu não gostava mesmo nada da minha professora da primária. Era muito rígida e fria. No entanto, quando soube, anos mais tarde, que veio a morrer da "doença das senhoras", fiquei muito triste. Na altura, pensei que se soubesse que isso iria acontecer, ter-me-ia portado melhor. Acho que foi um dos meus primeiros impactos com a morte de uma pessoa próxima.
ResponderEliminarUm beijinho, querida Susaninha
Pois eu não consigo imaginar-te a não te portares melhor que toda a gente.
EliminarMas de facto esse é um bom ponto, podemos arrepender-nos da falta de tolerância mas talvez não nos arrependamos do inverso.
Outro beijinho, Miss Smile querida.
A minha professora primária, era a nossa "mãe" na escola. Nós também achávamos que ela era muito bonita e elegante, e era, e sorridente, e alegre. Um dia soubemos que ia casar e decidimos que cada um de nós, com a ajuda dos nossos pais, lhe ofereceria um presente de casamento, e assim foi, e vimos os olhos da nossa professora rasos de água. Passado um tempo, a nossa professora, continuava bonita e elegante, mas já não era sorridente, nem alegre, muito pelo contrário, andava triste e passou a perder a paciência muitas vezes nas aulas e a ralhar alto, e parecia outra pessoa, e nós acabámos por ouvir, sem querer, conversas de adultos, e foi então que eu fui para casa perguntar: "mãe, o que é violência doméstica?". Esta também é uma história verídica, não é sobre a tal "doença das senhoras", mas...
ResponderEliminarPs:(soube, anos depois, que se libertou do que tinha de se libertar e tinha voltado a gostar de estar viva)
Beijinhos, bonita e elegante, Susana :-)
Ah, Cláudia, os teus comentários são histórias, esta é mais uma e com final feliz! "Gostar de estar viva" é o mínimo que qualquer pessoa merece.
EliminarBeijinhos, Cláudia, obrigada pela tua presença sempre luminosa. :-)