Num dia em que subi ao escadote cinco vezes, comprei um
calendário aos escuteiros à porta do centro comercial, num dia em que temperei
o peito de peru para o jantar de amanhã, em que bebi um cappuccino preparado
pela minha filha mais nova, num dia em que comprei atacadores para as botas
antes de os velhos se romperem por completo, em que ouvi numa loja uma mulher velhota e muito bem arranjada dizer a outra mais nova que quando ele se cruza com ela no elevador, por ter uns olhos azuis que
parecem água e um sorriso maravilhoso, ela ganha o dia, num dia assim percebi, numa espécie de epifania de cristal, embrulhada no calor do aquecedor que está junto de mim num sopro contínuo,
entre uma linha e outra do meu trabalho caseiro, entre uma nota e outra do
concerto para piano número dois de Rachmaninov, sentada no canto onde ainda não está armada a árvore de
natal dois mil e quinze porque o espírito natalício não me chegou este ano, ainda não, percebi que o
que me levou a criar um blogue não foi a vontade de escrever. Foi uma vontade mais
nuclear, mais essencial, foi uma necessidade. A de alargar a celebração da vida
para fora de mim. Transbordava eu, sempre foi assim, de celebrações solitárias que
caíam ao chão, enterravam-se no cimento das pedras, eram lavadas com a chuva, evaporavam-se no verão, seguiam nas asas das gaivotas que as largavam no mar, fugazes. Ó mãe tu gostas de tudo! disse
a mais nova aos quatro anos porque eu todas as manhãs achava a praia linda na
fila da marginal, meninas, olhem, a praia está linda (e estava mesmo). Nunca me importei de perder um jogo de cartas
ou qualquer jogo, ou em corridas com as minhas irmãs, jamais empurrei as outras
raparigas do colégio para subir primeiro na carrinha que nos levava a casa, subia
em último mas havia sempre um lugar para mim (apenas tinha mais trabalho em descobrir
qual). As minhas celebrações interiores de vida chegavam-me. Chegam-me. Não quis
ser a melhor, não me era
necessário, continua a não ser, fui algumas vezes a pior e até chorei sem ninguém ver, depois as mãos limparam as lágrimas, o nariz fungou pela
última vez e os minutos continuaram a passar, veio um bom e depois mais vieram.
E fui uma das melhores num momento ou noutro, dádiva que me fez subir às nuvens
de um céu azul. Basta-me olhar ao espelho e constatar que não há ninguém
igualzinha a mim, nem entre as minhas irmãs: num
caso a voz, noutro as mãos, não mais que isso. Portanto, o meu lugar é meu.
Seja ele qual for, na carrinha do colégio, na cadeira em
que me sento sem árvore de natal, o Carl Sagan tinha razão, sou única.
E tu também és.
Este momento que partilhamos porque nascemos no mesmo
século (tens entre quinze e cento e quinze anos?), estamos aqui no mesmo tempo, entendemos a mesma língua, não te importas de ler o português do acordo ortográfico de que pouca gente gosta e dás a tua
voz às minhas palavras: era mesmo isto que eu queria. A celebração já não é
minha, é nossa: cresceu, viverá.
(estou aqui estou a achar que isto é amor… mas no natal pode-se,
alarga-se o amor um bocado, ninguém estranha nem dá medo e depois faz bem)
(ou seja, acabou de me chegar o espírito)
Querida Susana Rodrigues,
ResponderEliminarFeliz Natal.
Beijo,
Outro Ente.
Feliz Natal para si também e para os seus, Outro Ente querido.
EliminarBeijo retribuído.
eu que tenho a mania de que nada acontece por acaso, e que já nem sei como vim aqui parar, a este blogue, tenho a certeza de que foi o meu batalhão de anjos, que mo pôs no caminho, para me fazer bem. que bom! obrigada Susana (e a eles, claro) !
ResponderEliminarPois eu cá acho, ana, que esse seu batalhão de anjos aprende a sê-lo consigo. Quem agradece sou eu, querida ana.
EliminarE chegou-lhe tão bem, Susana.
ResponderEliminarEu que não gosto de tudo mas que adoro quando encontro algo que me agrada, sairei daqui a sorrir. Obrigada.
Olá Ava, bem-vinda!
EliminarObrigada eu, por partilhar esse seu sorriso que ilumina o blogue.
"Para isso fomos feitos:
ResponderEliminarPara lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente."
Vinicius de Moraes / Poema de Natal
Querida Susaninha, há muito que entraste no meu coração e fizeste dele um lugar melhor. Obrigada por comemorares o Natal sempre que publicas um post.
Um abraço apertado :)
P.S.: E a praia é mesmo linda na fila da marginal!
Muito querida Miss Smile, que lindo poema de Natal que serve tão bem em qualquer dia das nossas vidas! Muito obrigada. :-)
EliminarEsse teu coração é um lugar melhor. (o "é" devia estar em itálico e negrito, mas eu não sei fazer aqui nos comentários)
O mesmo abraço, este, apertado. :-)
P.S. :-) muito, mesmo.
até acho que me atingiu a mim e eu nã sou de espiritualidades... :) mas escrever é isso, é transbordar e de vez em quando "atingir" os outros, de preferência com coisas boas :)
ResponderEliminarés oficialmente a primeira pessoa a quem desejo um feliz natal este ano, Feliz Natal!
Ainda bem que te atingiu em forma de coisa boa, Manel. A mim também me atingem com muito prazer comentários como o teu. :-)
EliminarUm Feliz Natal, para ti e para os teus.
E passamos por aqui, e encontramos tal celebração da vida, que sorrimos, e ficamos com vontade de a celebrar também com toda a alegria que consigamos arrebanhar.
ResponderEliminarVotos de um óptimo domingo, cara Susana :-)
Querido xilre, e se a alegria, quando partilhada assim, se multiplica em gordos expoentes de vida pulsante! :-)
EliminarÉ um enorme prazer tê-lo por aqui.
(e como já estou toda imbuída do espírito de Natal, não vou reclamar da impossibilidade de fazer comentários no seu blogue)
Tenha um excelente domingo. :-)
Aproveito para deixar os votos de um Natal feliz e boas festas.
ResponderEliminarCaríssimo Observador, muito obrigada.
EliminarRetribuo os votos de um Feliz Natal para si e para os seus.
Olha olha, quem andou a fazer a árvore!
ResponderEliminar:)
Tinha planos para isso, pois tinha, mas ainda não foi desta.
EliminarNo entanto, o espírito natalício já cá está, portanto agora é fácil ir à arrecadação remover toda a tralha que está em cima dos enfeites de Natal, trazê-los aos arrancos para casa, a árvore pesa mais cada ano, armar aquilo tudo uma beleza ao som do mais Jingle bells que houver, pode até ser um piroso, afinal o lado piroso da vida é garantidamente um lado feliz. (puxaste por mim, Cuca)
Susana, a tua celebração da vida tocou-me porque foi amanhada entre o apelo do universal e o enorme poder dos "pormaiores".
ResponderEliminarQuanto ao designado espírito do Natal de Dezembro (digo "designado" porque não sei do que se trata; não tenho capacidade de o entender) não há uma nesga que me toque. Mas respeito quem está noutro comprimento de onda.
Beijos e boa semana.
Querida Isabel, o que me ocorre ao ler este teu comentário é uma espécie de: quem está todo o ano em bom espírito (do tipo natalício :-)), não lhe toca nada de diferente em Dezembro, para além talvez do frio.
EliminarBeijos e boa semana para ti também.
Há pessoas que nos contagiam de vida, e agora que aqui entrei, encontrei no seu espaço mais um ser especial e contagiante :)
ResponderEliminarFiquei muito sensibilizada com a sua postura perante si e perante a vida. É verdade Susana, cada um de nós é um ser único no mundo. A Susana para além de ser única no mundo, é única e especial.
Não costumo deixar votos de Natal, mas aqui no seu canto respira-se diariamente o espírito de Natalício. Por isso Susana, deixo votos que a vida lhes seja generosa e proposta, e que continue a contagiar o mundo com o seu dom natural de fazer Natal todos os dias.
Muito obrigada.
Querida Sandra, é muito bem-vinda aqui. Aliás este seu maravilhoso comentário foi um presente para mim. Nem precisava de ser quase Natal para o sentir assim.
EliminarMuito obrigada eu. Especiais, afinal, se virmos bem, somos todos. Por isso é que a vida é tão bonita se lhe abrirmos o coração.
Um abraço apertado e um Feliz Natal todos os dias do ano para si também.
Ainda bem que mostras aqui a tua capacidade infinita para gostar, ainda bem que mostrar aqui a capacidade para te encantares com a vida a acontecer, ainda bem que mostrar aqui que o deslumbramento, o prazer da descoberta, pode manter-se pela vida fora, e que tudo isso aquece por dentro como se no coração se transportasse sempre uma lareira acesa. Manter o encantamento pela vida fora, é uma forma de se nascer efetivamente para o mundo todos os dias.
ResponderEliminarSim, Susana, somos todos únicos, e há lugar para todos, e nos blogs descobrimos muitos de nós que de outra maneira não passariam pela nossa vida, e era uma pena, mesmo, digo eu, que faço questão de ser tua cúmplice nisso de alargar o amor.
Deixo-te um presente de Natal, deixo-te um daqueles sorrisos que aparece em mim quando encontro alguém a quem quero bem.
Querida Cláudia, antes de chegar ao teu presente já eu estava a abrir o meu - sorriso - com a tua declaração de seres minha cúmplice nisto de alargar o amor. Talvez por contraponto das coisas horrendas que se têm passado no mundo, sinto ainda mais intensa a vontade de ----- o mudar. No meu metro quadrado seguramente é possível, e ainda melhor é constatar que de facto há muitos mais destes metros quadrados.
EliminarObrigada pelo teu presente, que é sempre a tua presença, Cláudia. Outro sorriso de volta.
E é por isso que é bom estar aqui, neste sítio virtual, porém muito real, onde se sente bater o coração de quem escreve, de quem lê.
ResponderEliminarNatal
Natal, antes e agora
imutável. Feliz
noite branca sem hora
no pátio da Matriz.
Natal: os mesmos sinos
de repiques iguais.
Brinquedos e meninos,
Natal de outros natais.
(...)
Mauro Mota
Um abraço natalício, ou seja, quentinho, terno e solidário.Ah! E beijos repenicados, claro!
Ah, minha querida Maria, muito obrigada pelo poema. Hoje já recebi tantos presentes, que me sinto em festa! :-) Gosto tanto do teu abraço, aliás gosto tanto sempre da tua presença aqui e na blogosfera. Tu também fazes o Natal muitas vezes.
EliminarBeijos repenicados de volta e um pouco emocionados. Feliz Natal, Maria.
Venho aqui apanhar cada migalha, beber cada som, inspirar cada perfume, sentada num cantinho onde nem sempre me vês. Gosto de aqui ficar e de me maravilhar por ter, por exemplo hoje, entre 15 e 2500 anos, e não me enganei! Tenho a certeza de que aqui vou voltar muitas vezes, às escondidas.
ResponderEliminarUm beijinho, Susana, e obrigada pelo teu talento-árvore-2015.
Há aqui uma coisa curiosa. Eu escrevo porque preciso, quero, apetece-me. Escrever, para mim, é prazer a cem por cento, puro. Só bom. E depois, a somar ao bom que é escrever, ainda vêm aqui pessoas como tu oferecer-me um cálice de céu para eu tomar. Por vezes nem sei como agradecer, o que dizer. Acho que não mereço tanto...
EliminarMuito obrigada, minha querida Teresa, do coração. E beijinhos também, muitos.
Que post tão bonito! E como compreendo tão bem isso de "transbordar de celebrações solitárias"!
ResponderEliminarVou daqui muito bem disposta...
Feliz Natal.
Olá MC, bem-vinda! :-)
EliminarAntes de lhe agradecer as palavras, tenho de dizer que fui ver o seu Estendal. Estendi-me por lá uns minutos, deliciada com o que li. Já lá pus uma cadeirinha, se não se importa.
E agora agradeço as suas palavras e acrescento que me faz feliz saber que sai daqui bem disposta.
Um Feliz Natal para si também.
Ora essa, Susana. Mi casa es su casa. :D É uma honra.
EliminarGosto muito, mesmo muito de te ler. Tens o condão de serenar, através das palavras.
ResponderEliminarUm bom Natal para ti e para os teus, Susana. :)
E eu gosto muito, mesmo muito que me leias, Pseudo. (e eu estava a ler sobre o teu ovo preto ao mesmo tempo... não sabia que os ovos ficavam assim todos pretos inclusive a casca... mas que estilo)
EliminarMuito obrigada pelas tuas generosas palavras. E um muito Feliz Natal para ti e para os teus também. :-)
A Susana tem o dom de saber explicar as coisas difíceis. É uma pessoa bonita.
ResponderEliminarE o Pipoco tem o dom de estimular o que de melhor há nas pessoas.
EliminarMuito obrigada.