Quando comprei o bilhete de comboio, escolhi um lugar à janela para me oferecer os campos, as florzinhas amarelas que me encantam nas primaveras e as lilases, tão lindas as lilases. O verde sei-o garantido, tal como sei o sol que me dá um raio ao rosto, enquanto não passa a nuvem que o vai tapar ou um prédio muito feio e alto que fará o mesmo efeito. Tomo o comboio nesta manhã de Lisboa e rumo ao meu lugar. O Alfa já vem composto de Santa Apolónia, e continua a encher a oriente, sexta feira, o habitual. Descubro o meu lugar à janela ao lado de outro já ocupado por uma mulher jovem.
- Dá-me licença, por favor? - mas logo vejo que passo facilmente e corrijo - deixe estar, eu consigo passar - sento-me. A mulher jovem dá-me os bons dias.
- Bom dia - e é jovialmente que o faz. Retribuo, agradada com a comunicação.
- Vai sair em que estação? - pergunta-me.
- Em Coimbra.
- Então sai primeiro que eu; vou para o Porto.
Olhei-a agora no rosto e vi-lhe os olhos vagos, não me olhando de frente, notei-lhes as longas pestanas apontando ligeiramente para baixo que, como me disse uma vez a Márcia, indicam a presença de um bom coração (eu não sabia).
Talvez apercebendo-se da minha estranheza quanto a tanta comunicação, esclareceu sorrindo, continuando a olhar na diagonal.
- Era só para saber, obrigada.
Começo então a escrever o post que antecede este, para dar livre curso à indignação que trazia dos últimas dias, agravada pelas notícias da manhã, pensando que algumas pessoas, aliás a maioria, têm de cumprir todos os seus deveres profissionais à risca para terem direito ao seu salário no final do mês enquanto outras andam a gozar, etc, pronto já chega, quando oiço a minha vizinha dizer que está muito barulho no comboio, vai buscar os fones. E foi então que reparei na bengala, dobrável e dobrada, aos seus pés. Baixou-se, pegou nela e desdobrou-a produzindo cliques até a bengala ficar retilínea. Os seus olhos não podiam mesmo ter focado os meus. Levantou-se e foi a tatear o espaço com a bengala, em busca da carruagem-bar onde são fornecidos os auriculares a quem os solicitar. Quando regressou, perguntou se era ali o lugar 56. Era sim. Sentou-se e devolveu a bengala ao estado de repouso dobrado aos seus pés. Antes de colocar os fones nos ouvidos para se alhear do barulho, tirou um papelinho do bolso, desdobrou agora este e estendeu-mo.
- Importa-se de confirmar que este papel é o meu bilhete, por favor?
Pego no papel e leio alto o que lá está escrito, incluindo o preço deste bilhete, que é muito diferente do preço do meu.
Devolvo-o à mão estendida no ar para o receber. Obrigada, disse a mulher jovem sorrindo. Quando o fiscal passou, pedindo os bilhetes aos passageiros, furou o dela com o dispositivo metálico, mecânico e próprio que trazia na mão, não lhe devolvendo os bons dias que ela, também a ele, deu, não reparando na bengala, não vendo o olhar vago que mesmo assim lhe sorria, nem sequer parecendo notar que um bilhete de oito euros não podia ser o de uma passageira que, como eu, pôde ver o amarelo das flores, o lilás primaveril, o verde dos campos, a luz da manhã e os prédios altos e feios.