31/03/2017

Lugar 56

Quando comprei o bilhete de comboio, escolhi um lugar à janela para me oferecer os campos, as florzinhas amarelas que me encantam nas primaveras e as lilases, tão lindas as lilases. O verde sei-o garantido, tal como sei o sol que me dá um raio ao rosto, enquanto não passa a nuvem que o vai tapar ou um prédio muito feio e alto que fará o mesmo efeito. Tomo o comboio nesta manhã de Lisboa e rumo ao meu lugar. O Alfa já vem composto de Santa Apolónia, e continua a encher a oriente, sexta feira, o habitual. Descubro o meu lugar à janela ao lado de outro já ocupado por uma mulher jovem.
- Dá-me licença, por favor? - mas logo vejo que passo facilmente e corrijo - deixe estar, eu consigo passar - sento-me. A mulher jovem dá-me os bons dias.
- Bom dia - e é jovialmente que o faz. Retribuo, agradada com a comunicação.
- Vai sair em que estação? - pergunta-me.
- Em Coimbra.
- Então sai primeiro que eu; vou para o Porto.
Olhei-a agora no rosto e vi-lhe os olhos vagos, não me olhando de frente, notei-lhes as longas pestanas apontando ligeiramente para baixo que, como me disse uma vez a Márcia, indicam a presença de um bom coração (eu não sabia).
Talvez apercebendo-se da minha estranheza quanto a tanta comunicação, esclareceu sorrindo, continuando a olhar na diagonal.
- Era só para saber, obrigada.

Começo então a escrever o post que antecede este, para dar livre curso à indignação que trazia dos últimas dias, agravada pelas notícias da manhã, pensando que algumas pessoas, aliás a maioria, têm de cumprir todos os seus deveres profissionais à risca para terem direito ao seu salário no final do mês enquanto outras andam a gozar, etc, pronto já chega, quando oiço a minha vizinha dizer que está muito barulho no comboio, vai buscar os fones. E foi então que reparei na bengala, dobrável e dobrada, aos seus pés. Baixou-se, pegou nela e desdobrou-a produzindo cliques até a bengala ficar retilínea. Os seus olhos não podiam mesmo ter focado os meus. Levantou-se e foi a tatear o espaço com a bengala, em busca da carruagem-bar onde são fornecidos os auriculares a quem os solicitar. Quando regressou, perguntou se era ali o lugar 56. Era sim. Sentou-se e devolveu a bengala ao estado de repouso dobrado aos seus pés. Antes de colocar os fones nos ouvidos para se alhear do barulho, tirou um papelinho do bolso, desdobrou agora este e estendeu-mo.
- Importa-se de confirmar que este papel é o meu bilhete, por favor?
Pego no papel e leio alto o que lá está escrito, incluindo o preço deste bilhete, que é muito diferente do preço do meu.
Devolvo-o à mão estendida no ar para o receber. Obrigada, disse a mulher jovem sorrindo. Quando o fiscal passou, pedindo os bilhetes aos passageiros, furou o dela com o dispositivo metálico, mecânico e próprio que trazia na mão, não lhe devolvendo os bons dias que ela, também a ele, deu, não reparando na bengala, não vendo o olhar vago que mesmo assim lhe sorria, nem sequer parecendo notar que um bilhete de oito euros não podia ser o de uma passageira que, como eu, pôde ver o amarelo das flores, o lilás primaveril, o verde dos campos, a luz da manhã e os prédios altos e feios.

Uns amores (que somos)

Nós, portugueses, somos uns amores.

Toleramos tudo, perdoamos, é o tipo fofinhos. Por exemplo, é super querido pretendermos aliviar aquela senhora que tinha um cargo horrivelmente transcendente em termos de exigência no que toca a presenças em inúmeras reuniões, inúmeras, as reuniões da câmara municipal de Lisboa, coitadinha da senhora. E então propomos-lhe um cargo muito mais levinho, com menos responsabilidade e menos exigência em termos das tais presenças, que é para a senhora poder descansar, uns amores, nós.
E ela, coitadinha, está tão agradecida, tão agradecida com o aligeirar de tarefas que a esperam se, claro, ganhar as eleições – felizmente ainda há eleições e ainda há quem vá votar – que teve a ideia giríssima de pôr o imposto denominado IMI a zero em Lisboa, uma querida.

Bardamerda era, na verdade, o que me apetecia dizer a isto.

Mas ao invés cito a minha irmã Ana, que tem tanta graça a imitar as suas alunas quando veem gatinhos nos telemóveis umas das outras: “Oh, c’amoooooor!!”.

29/03/2017

Para além do pechisbeque

Estava há pouquíssimo tempo naquele trabalho e tinha documentos para ler, notas para tirar, outras para deixar estar. Aproveitei-me e li tudo o que apanhei com boa cara, incluindo o que era preciso e uma ou outra coisa do que não (todavia irresistível). Mas teria de interromper a leitura para uns dias fora em formação. Ora na véspera de ir, quis o acaso que viesse aconchegar-se-me na mão a definição da unidade de tempo que dá pelo nome de segundo. Li-a todinha. Eu, que aprecio pintura e arte em geral, mas que não creio haver obra mais bela que a tabela periódica dos elementos, fiquei aqui bastante bem impressionada. Não vou ver aos sítios em linha, vou escrever de cabeça, portanto cuidado: o segundo é o tempo equivalente a multiplicar por nove seguido de muitos algarismos o tempo de decaimento entre dois estados de energia do isótopo de Césio 133. Achei isto lindo, bolas.
Bem, no dia seguinte a esse entrei na tal formação, da qual faziam parte muitas pessoas desconhecidas, umas quarenta pessoas desconhecidas. E não é que a páginas tantas, estou a tentar encurtar o post, que estava a esticar-se o safado, não é que o orador, homem visivelmente cheio de si próprio, ok, não é que ele precisou de um exemplo giro para ilustrar o que estava a dizer e lembrou-se de ir buscar para ali o quê exatamente? A definição de segundo! E vai, todo vaidoso: o segundo é nove tal tal tal com muitos algarismos vezes o tempo de decaimento entre dois estados de energia de um qualquer isótopo de Césio. Ora uma pessoa saber isto ali assim, de cabeça e de repente, e descontextualizado – porque estava descontextualizado – não é pouco, é muito. Foi então uma onda de admiração na audiência, um silêncio inteiro, suspenso, que unificou as quarenta pessoas. O orador por dois segundos ou três dando tempo ao impacto de se fazer, ahá, apanhei-vos!, porém compreende-se. E eu agora?... Faço o quê?... Ele não sabe o isótopo, mas eu sei. Fico quietinha ou aproveito também eu para impactar um bocado? Pois tem de ser. Levanto o braço e, com licença, do fundo da sala, quebrando o silêncio inteiro, uno, todo ali: 
- É o Césio 133.


Por ter sido esta a única vez em toda a minha vida que fiz virar cabeças, muitas e ao mesmo tempo, por ter sido a única e ainda por cima tão fruto da sorte ou do acaso, isso agora não sei ao certo, esta vez em que brilhei para além do pechisbeque do anel ou dos brincos, por tudo isso, deixo-a aqui contada em quatrocentas e cinquenta palavras bem espremidas, que havia mais, paciência. Obrigada pela paciência.

23/03/2017

Peito de bacalhau fresco

Então esta semana lá voltei ao ginásio. Pagar a mensalidade não chega, é preciso ir e obedecer às ordens para que o efeito se dê, doa lá o que doer, que dói. A meio da aula de ontem, a professora, digo professora, não digo s’tôra, nem personal trainer, que não é pessoal, é um grupo ali de gente, portanto a professora, dizia, manda-nos apanhar um colchãozinho da pilha de colchõezinhos e ir para o chão fazer exercícios dos maus. Eu obediente, disponho-me no colchãozinho, mas é de modo a ver o relógio de parede pendurado no alto da parede (daí o nome) e que visto do chão ainda mais no alto fica: para ir contando os minutos que faltam para acabar. Ela, a professora, manda também, como se fácil fosse, desarrumar as pernas e os braços, à vez, muitas vezes, levantar o pescoço e baixá-lo repetidamente, as costas no colchão ora sim ora não, mesmo aborrecido. Para dizer toda a verdade, eu bocejo enquanto faço isto, apesar das dores, que dói já disse. A professora, então, topa-me, olha-me lá do colchãozinho dela e diz, Susana é das faltas (falto muito, sim). Mas ainda estou a olhar para o relógio de parede quando o pescoço me deixa e, quando não deixa, fito as placas feitas de um material de construção que se pode encontrar nas lojas da especialidade em várias espessuras e tamanhos, em branco, que forram o teto e têm embutidas lâmpadas muito brilhantes. E quando, por fim, o relógio de parede mostra a hora almejada, o corpo põe-se então em trânsito de voltar ao lugar, arrumado e suficientemente dorido. Rumo a casa muito mais contente, levando urgente a vontade de um duche quente, que será toda satisfeita enquanto Muzi, a minha filha mais velha, está concluindo o jantar. Curgete laminada com alho francês em tiras finas, salteados em conjunto na wok; no forno, jaz o grande e suculento naco ao qual se pode também chamar lombo de bacalhau fresco em cama de cebola diz a cozinheira, anunciando também no finzinho, já depois de tudo comido e à laia de conclusão,
- Estava mesmo bom o peito de bacalhau.


(acho que é de não levar as garotas com mais frequência ao balcão do peixe, lombo, filha, lombo)

16/03/2017

O ovo e a galinha (ou histerese de um amor, sei lá eu)

Há um livro que eu simplesmente amo. O livro tem luz dentro e por um tempo viveu na mesa da cozinha para combinar a sua luz com a da manhã; na minha pequena ideia seria esse o melhor presente para o livro (e também porque eu queria que as minhas filhas pegassem nele e lhe vissem a luz, mas elas não pegaram e se for eu a ler para elas não funciona - já tentei). Penso que o livro gostou da cozinha. E não se importou, mais tarde, que o levasse para o quarto. Levei-o para o quarto porque eu queria dormir com o livro. E acordar com o livro também queria. E quero. Mas tem acontecido que acordo dentro dele. Não me assusto com isso, posso sair deixando-me fluir de novo para fora do livro, entrando no dia assim, fluida daquela sua luz, e isto não é mentira, é verdade. Tanto é, que hoje tomei a hora do meu almoço e trouxe-a para dentro do livro comigo. Abri-o devagarinho e entrámos nele, a hora do almoço e eu, para darmos um passeio lá. Quase fiz um piquenique no livro. Mas não é isso que quero dizer, quero dizer que há tempos ouvi uma entrevista (por sorte minha) concedida pela autora deste livro que eu amo (entrevista muito antiga). O entrevistador perguntou-lhe qual o conto dela de que mais gostou. Após um momento pensativa, ela disse muito séria “O ovo e a galinha”. Porquê “O ovo e a galinha”?, ele quis saber. Porque eu não entendi nada desse conto, ela respondeu. Ora isto sou eu. Sou eu porque me faz dar um salto escrever-se um conto do qual não se entende nada. É soberbo. Claro que fui buscar o livro de contos seus – que não é o livro que amo, é outro – e li o conto “O ovo e a galinha”: também não entendi nada, fiquei feliz. Estou, então, a passear no meu livro amado junto com a minha hora de almoço e encontramos alguma coisa sobre o ovo e a galinha, que não me parece o tal conto, parece diferente, leio: “O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho atingível pela galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe realmente ovo. Se soubesse que tem em si mesma um ovo, ela se salvaria? Se soubesse que tem em si mesma um ovo, perderia o estado de galinha.” … “A galinha tem um ar constrangido.” O meu coração bate mais depressa, é do amor ao livro. Extinguiu-se a hora do almoço muito antes de conseguir fechá-lo, tornar a fluir de dentro dele para fora. Saí, mas saí precisada de vir direta escrever isto que ficou a fervilhar na minha cabeça. Não há nada em mim de Elis Regina, que eu tenha notado, não há Patti Smith, não há em mim nada de Sylvia Plath, também não há em mim Assunção Cristas ou Catarina Martins, nada, talvez um pouco de Gabriela Canavilhas haja em mim, talvez também um nada de Amy Winehouse, talvez um nadinha. Mas há em mim carradas de Clarice Lispector. Carradas. Nunca vou acabar de ler este livro que amo, nunca. Pela minha saúde.


(A Descoberta do Mundo, Crónicas, Clarice Lispector, Relógio d’Água)

10/03/2017

Ontem, hoje e a mesa livre de ecrãs

Leio ontem num artigo que nós, os pais e mães de hoje, sofremos do chamado fenómeno-do-rosto-imóvel, isto numa tradução de trazer por casa feita por mim. Sem nos apercebermos, diz o artigo, mantemos o rosto isento de expressão durante as muitas horas em que mergulhamos nos nossos ecrãs de trazer por casa, na rua e em qualquer lugar, são móveis (os ecrãs, nós, imóveis). Sofremos então desse fenómeno. E este sofrer, segundo o mesmo artigo, vai limitar os nossos filhos pequenos, bebés e por aí acima, que nos rodeiam e nos observam, vai limitá-los, é tomar nota, na aprendizagem da interpretação das expressões faciais de que os privamos, imóveis, nos ecrãs. Ontem.

Hoje o dia foi melhor e eu até já estava bastante contente a meio da tarde quando ainda fui ficar mais, devido ao que a minha filha mais nova me contou em resposta à pergunta do costume como foi a escola hoje?
- Mãe, a s’tôra Adelaide disse-me que um menino lá da escola lhe perguntou o meu nome.
- Hã? Que menino?
- Ó mãe, é um menino novo que me viu na sala de estudo e foi perguntar à s’tôra Adelaide, aquela, sabes, que é super fofinha e é tipo a nossa avozinha?
- Sei.
- Então ele perguntou o meu nome à s’tôra, disse que era a menina que estava ao pé da janela, e a s’tôra, a Joana? Mas ele sabe quem é a Joana e disse não, a outra, aquela que sorri com os olhos! E era eu, mãe, a s’tôra diz que era eu! Fiquei tããããão contente!! E ele é suuuper giro, mãe!! Eu sei quem ele é!!!!



E eu pensei logo que os pais deste menino não terão sofrido do fenómeno-do-rosto-imóvel, lhe souberam mostrar o que é sorrir com os olhos e ele, caramba, ele aprendeu.

(o artigo sugere que, ao menos, deixemos a mesa, ao jantar, livre de ecrãs)

05/03/2017

Duzentos e setenta e oito quilómetros por hora, e a viatura

(enquanto me passeio de comboio, a Alemanha passa muito depressa na minha janela - de acordo com o ecrãzinho junto à carruagem-bar passa a 278 km/h, e eu conto uma história que já fez rir muita gente)


Saiu do bar já de madrugada sabendo-se, como tantas vezes depois de uma noitada com amigos, bêbedo. Porém, sentindo-se protegido pelo hábito, mete-se no carro e começa a conduzir para casa. A meio do percurso, depara-se com uma operação stop, especialmente instalada para detetar condutores alcoolizados, isso é certo. Foi mandado parar, parou. Um dos polícias ou, vamos dizer corretamente, um dos agentes da autoridade ordenou-lhe que saísse do carro para que fosse submetido ao famoso teste do balão, precisamente o teste que ele não estava interessado em fazer. Mas, no momento em que está fora do carro, pensando que o teste vai ter maus resultados, dá-se um acidente ali mesmo, uns metros mais à frente. Os agentes da autoridade pedem-lhe para aguardar um pouco, "não saia daqui, nós já voltamos", e correm ambos para o local do acidente. Vendo-se só, ele e o seu índice de álcool no sangue, candidatando-se a punição certa após o regresso dos dois agentes, toma a decisão: mete-se no carro e segue para casa.
Na manhã seguinte, dois agentes da autoridade, muito provavelmente os mesmos, tocam à campainha da sua moradia. Ele vai abrir e, ao vê-los, pensa “agora já não me apanham”.
- Bom dia. É o Sr. Almeida de Sousa?
- Sou sim.
- Muito bem. O Sr. Almeida de Sousa pode dizer-nos onde está a sua viatura, por favor?
- A minha viatura?...
- A sua viatura.
- Está aqui, na garagem.
- Podemos ver a viatura, por favor? – perguntam os agentes.
- Com certeza, vou abrir o portão.
Almeida de Sousa apanha o comando de abertura do portão que está na mesa da entrada, pergunta-se por que razão quererão os agentes visitar-lhe a viatura, aponta o comando para o portão da garagem anexa à moradia e pressiona o botão. Enquanto anuncia aos agentes “aqui está a minha viatura”, o portão vai abrindo e mostra que lá dentro, estacionado, está o carro da polícia.

(embora não pareça, a história é mesmo verdadeira – à exceção do nome do protagonista, claro)