15/09/2022

Mas continua a chover

A carrinha do padeiro anuncia a sua chegada com a buzinadela habitual. Agarro na moeda de um euro e abro a porta. O padeiro está a pendurar o saco de plástico com as carcaças contadas na cerca retorcida da vizinha inglesa do botox, do outro lado da estreita rua. Depois volta-se para mim, sorri e eu digo a quantidade de pão para hoje. Enquanto ele prepara o saco para me dar, a vizinha sai de casa e desce a rampa até à provisória cerca. Traz o seu cabelo escorrido apanhado num rabo de cavalo, uma camisola sem forma que suspira por lavagem, umas leggings em condições semelhantes e um par de chinelos já sem cor revelando uns pés deformados pelas agruras de uma vida apertada, muito triste. Em silêncio, apanha o saco com o seu pão e regressa pelo mesmo caminho até desaparecer atrás da porta da casa. Eu também não a cumprimentei. Aceito que ela prefira ignorar quem tem a sorte de carregar na alma uma mínima dose de paz. Aquela que, quando falta, incita o coração vazio, inquieto, doente, a presumir inimigos em cada canto. Mesmo que numa aldeia de três ruas, muitos gatos e um par de veados que já entraram na brama.

2 comentários:

  1. Pois, gostei do estilo, embora a chuva me deixe encharcado. Ah, há um grilo a cantar dentro da minha casa. A chuva o trouxe ou veio com a sua palavra tão criativa.
    Um abraço,

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    1. Olá, Caderno de San.
      Muito obrigada pelas palavras. Esse grilo deve estar contente depois da chuva.
      Outro abraço :-)

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