29/08/2013

Tons pastel

Hortaliça.

Foi a palavra que a dona Esmeralda, que serve o almoço na cantina da empresa, hoje pronunciou, em jeito de esclarecimento quando alguém perguntou o que é isso.

Como gosto desta palavra! Normalmente vem-me aos lábios couves. Depois mastigo e engulo, que também são boas. Mas hortaliça é muito melhor.

Vou progredindo na fila, chegando-me lentamente à frente, sonolenta, empurro o tabuleiro com a mão, devagarinho, pelos varões corridos que me conduzem todos os dias ao prato que vou comer. A palavra soa-me ainda, hortaliça, que linda. Chega a minha vez, sou servida. Gosto dessa palavra, dona Esmeralda. Ela olha-me por cima dos óculos a pensar se vou outra vez chamar ervilhas às azeitonas, que é das verdes, ou se agora é a sério.

Sorrio-lhe, gosto desta mulher. Desenfiei-me para o meu lugar, com o tabuleiro nas mãos, o almoço a fumegar à minha frente. À hortaliça chamei-lhe um figo, ou dois, comi-a toda.

Até ao fim do dia dispus-me a encontrar mais duas palavras que com esta compõem uma ode ao Português. Para serem três que é a conta que Deus fez e a rima também veio, senta-te aí, toma mais um copo.

Numa pausa dos ensaios, a meio da tarde, escorreguei nela. Assim, no plural. Algerozes. Guardei-a no bolso, fica para quando surgir o momento, a necessidade. E vão duas.

Mais tarde, já no fim do dia, arrumava os despojos do trabalho e vem o sol empastelado, cansado de brilhar, pousar-me nas mãos. Trouxe-me a palavra que faltava. Interstício. É pelo insterstício da arquitectura da escada do piso de cima, projectada num plano imaginário por cima de mim, que o raio de sol me visita. Ah, mas esta é uma velha amiga, uso-a muito, forço-a, imponho-a, meto-a a martelo, gasto-a, tanto me apraz dizê-la. Interstício.

Se eu soubesse escrever, escrever mesmo, compor a melodia que a leitura faz soar mentalmente, entrelaçar as palavras em bordados literários, proporcionar autênticas massagens neuronais, inventar novos termos graciosamente, sem doer, se eu pudesse em linhas simples, direitas, inculcar emoção, medo, paixão, pressa, pausa, se eu pudesse fazia um livro.

A hortaliça, os algerozes e um ou outro interstício entoariam o refrão da história do meu livro.

A capa havia de ser em tons pastel, daqueles que o sol aconchega antes de se deitar.

À falta do talento, que não chegou para mim, fico-me a pensar o que será amanhã o almoço.


(A minha filha veio encostar-se, diz que gosta de me cheirar quando cheiro bem.)

26/08/2013

Torres gémeas


Quando, há dias, subi à montanha galega, a que toca nas nuvens e se deita a Caminha, levava comigo uma dose de coisa pegajosa, pesada, esta tristeza. Para expurgar, com a ajuda das torres.

Alguém as pôs ali, às duas, gémeas da comunicação.

A da esquerda, há muito tempo, para comunicar com Deus.

A da direita, há menos tempo, para comunicar com os homens. E com as mulheres.

É a banda larga completa: seja qual for a inclinação que cada um leva, ali pode comunicar.

Assim fui eu, com a tristeza às costas, à procura de comunicação que me aliviasse.

Mas não resultou. Tentei com as duas, com a torre da esquerda e com a da direita. Não consegui ligação.

Então sentei-me no chão, vergada pelo peso, esta tristeza que se pegou. Olhei lá para baixo, perguntei ao rio. O que hei-de fazer?

O rio não me respondeu, mas eu vi.

Vi que não posso fazer nada, o ferry roubou-me a ligação. Anda a brincar com ela, para cá e para lá.

A ligar as margens do rio.

A largar à popa a espuma branca que a água lhe empresta, a divertir-se.

A rir.

- Ris-te de mim, ferry - digo-lhe, cá de cima da minha tristeza.

- Rio, rio, diz ele. Rio Minho.

21/08/2013

À beira do rio

Ponte medieval, Rio Coura, Vale de Mouros                                                       

Lá está o velho Mercedes estacionado à beira do rio. Com as janelas abertas.

É o casal sexagenário que ali vai passar as tardes soalheiras de domingo.

Gostam de ver as águas correr, sentir-lhes o borbulhar, admirar a velha ponte, ouvir os pássaros que ali vivem e já conhecem o roncar do motor, sabem a que horas chega.

Nos últimos três domingos, o rio sentiu-lhes a ausência. O filho e a nora tinham vindo da França, com os netos, ficaram o mês das férias, encheram-lhes a casa. Partiram ontem, fizeram-se ao caminho antes do meio-dia.

Ela faz crochet. Enrola o dedo indicador direito na linha branca de algodão e revira-o por cima da outra mão na laçada rápida, automática. Entoa baixinho uma canção do Tony Carreira, busca-lhe o ânimo. Para o rio levanta os olhos de cada vez que termina aquele lado e vira o trabalho para recomeçar na outra ponta.

Ele recosta-se no banco do Mercedes, inclinado no maior ângulo de que a tecnologia de então o permitiu equipar, e passa pelas brasas. Cruza as mãos que apoia na barriga proeminente. Respira pesado.

Ficam assim por duas horas ou três. Ficam até o sol deitar na água corrente as sombras das árvores.

Depois ela arruma o trabalho, são horas de tratar da janta.

Ele sente-lhe o quebrar do cântico e desperta.

- São horas, mulher.
- São.
- Cantas mais uma?
- Porquê, homem, a canção não tos traz.
- Canta, vá. P’ra me distrair.

Ela retomou o crochet, cantou mais duas. Sabia que tinha de o distrair até ao próximo verão, quando os meninos trouxerem mais um palmo de tamanho, medrado lá na França.

20/08/2013

Espanha


Deita-se à beira deste rio, a que combinámos chamar Minho. Por não ser Meu, ser nosso, diz Portugal.

Deita-se Espanha que, agradecida, lisonjeada, quer conquistar Portugal.

Dizem que nas tardes quentes de verão põe o véu, veste-se de noiva, faz-se a Caminha.

Tivesse Camões nascido galego e ter-nos-ia deixado escrito o que querem as terras a norte da Lusitânia.

Isto assim, por exemplo:
N’ água nunca dantes navegada,
à fluvial praia nortenha,
deita-se ela muito ousada,
galega de amores, a montanha,
p’la sua lusitana vizinha,
Caminha.

Ontem eu ia a passar. E vi.

Parei o carro, corri para a margem, mal acreditei.

Lá está Espanha a deitar-se a Caminha.

Pestanejei, continuava lá, fotografei.


Que pena Camões não ver isto.


18/08/2013

Diogo

Está bronzeado, o meu sobrinho.

A sua tez apresenta uma penugem fina, branca, que contrasta com o tom dourado escuro da sua pele.

Quando o vi pela manhã agarrei-lhe o queixo, virei-lhe a cabeça, deixa a tia ver.

A luz brilhante do sol de Agosto tilinta como cristais mudos na penugem que lhe cobre a face à sucapa e lhe desenha muito bem a raíz dos cabelos castanhos.

Abracei-o, és tão lindo Diogo.

Ele sorri, não sabe o que dizer. Conhece bem os meus abraços sufocantes, sabe que não os posso evitar. E faz-me o favor de não tentar escapar.

Normalmente pergunto-lhe como vai a escola, mas agora, ah, agora esta penugem que o sol pintou da cor da neve mandou-me engolir a pergunta. Fiz-lhe outra. Então o que andas a ler?

Torceu-se um pouco, olhou de lado para o chão, não estou a ler nada, agora são as férias.

Depois levantou a carinha bronzeada para mim e disse, orgulhoso, mas já li dois livros do clube dos sete!

E eis que faz a declaração, os dentes enquadrados pelo sorriso que me oferece, ainda demasiado grandes no seu rosto de menino. Tia, vou ler um livro até ao fim do Verão!

É o abraço dele para mim.

Quando o acabares contas-me a história, prometes?

Ele prometeu. 

E eu, enquanto espero, ponho a tocar o concerto de Mozart para clarinete, aquele que costumo tomar contra a impaciência.

16/08/2013

Pobrezinha

Muita gente leu. Ainda mais gente comenta.

E eu vou fazer o mesmo.

Cristina Espírito Santo diz que brinca aos pobrezinhos na Herdade da Comporta.

E que gosta dos mosquitos porque eles a ajudam a afastar pessoas.

Tem piada.

A senhora, coitadinha, não percebeu que os mosquitos estão lá para a afastar a ela. Das pessoas.

Enganou-se, a pobrezinha.

Antes brincasse às pessoas grandes, às pessoas boas.

Tão pobrezinha de espírito!

Santo?!

12/08/2013

Cadeiras siamesas

Tenho de vos contar esta. Ainda da semana no barco, o Erik e eu.

Parámos no parque de campismo de Stroobos, plantado numa ilhota no meio de um canal que atravessa esta cidade frísia.

Para abastecer de água potável, para deitar o lixo, para aceder a uma ligação wireless, comunicar com o mundo e outras coisas mundanas de que os seres humanos nos dias de hoje precisam ou pensam que precisam. É o meu caso.

O relvado com os bungalows dispostos em diagonal a fazerem-se à água do canal, agradou-me. Em madeira, design moderno, janelas muito generosas.

Dois homens de calções, camisa de fora e chinelos andavam atarefados a mudar mesas, cadeiras, vasos com flores por todo o lado, ferramentas a denunciar trabalho-pesado-em-curso espalhadas pelo chão. Haveria festa? Dei-lhes os bons dias e comentei que aquele era trabalho pesado, hã?
O mais velho respondeu-me que estava de férias, por isso aquilo não era trabalho, sorria e suava em bica. Estava calor nessa manhã, estava.

A meio do espaço com os arranjos que eles andavam a montar, a convidar os passantes a sentarem-se a admirar as águas do canal, estão estas quatro cadeiras siamesas, nascidas na mesma árvore. E arranjadas para a festa, cada qual com a sua cor, deve ser moda, ora vejam isto.


Gostei delas, meti as cadeiras no bolso, codificadas em bits que a máquina fotográfica  registou. Não percebo mesmo nada de moda, mas que cores são estas?

Os holandeses são um povo sensível às cores, isso já eu sei, rodeiam-se das que mais gostam ou de todas, orientam a luz a seu bel-prazer. É tal qual como um dia ouvi a uma portuguesa que neste país vive: os holandeses são um povo de pintores, assim como os portugueses são um povo de escritores. Nem mais.

O dia foi escorregando pelas horas tépidas que nos acompanharam no itinerário aquático. Admirámos a fauna e a flora que abundam por estas paragens, ouvimos Bach ou Bruckner, os dois estiveram lá, tomámos café à farta, saboreámos enfim o ar. Que hoje parecia abraçar-nos.

Quando parámos no local escolhido para pernoitar, o sol ainda ia alto.

Erik lançou-se à pesca, eu deitei pão aos patos que se chegaram a nós e que lutaram como bárbaros para abocanhar o mais possível. Felizmente o pão acabou-se a tempo e com ele a chapinhada colossal que me distraía.

Mantive os olhos colados à água até as ondas se transformarem em espelho. Ouviam-se os gansos ao longe.

E depois olhei para cima. E vi a mensagem que o dia tinha para mim. Esta.


Não só meti no bolso a mensagem codificada, como não mais me sairá da memória.

O céu, com o girar do planeta, a ajuda das nuvens e o ardor do sol poente, desvendou o código de cores das cadeiras siamesas.

Da esquerda para a direita, elas vestiram-se de ar, terra, água e fogo. Os quatro elementos.

Fui ver. Era o tema da festa no parque de campismo, que bem me quis avisar. Mas eu, tolinha, só agora percebi.

07/08/2013

Cremoso com cheiro a limão


As férias num barco como este exigem uma visita ao supermercado, de vez em quando, para abastecer de mantimentos.

Foi o caso de hoje.

Planeámos a jornada por forma a fazermos a paragem na cidadezinha holandesa de Oldeboorn. Esta pequena cidade, devo acrescentar, para além de ter uma torre inclinada e postais à venda nas lojinhas de rua com fotografias da torre, tem também uma loja para produtos de pesca onde comprei há dois anos as minhas botas de borracha made in Portugal.

Mas voltemos a hoje.

Chovia que se fartava, facto que não nos deteve dos nossos intentos. É que nos faltava um ingrediente importantíssimo para o jantar supimpa que tencionávamos cozinhar a bordo.

Atracámos o barco à chuva, processo que deixa as minhas mãos em mau estado. Os cabos ficam ásperos e encharcados, mas há que laçá-los, dar os nós, não vá o barco ter ideias de fugir.

Caminhámos em passos apressados até ao supermercado, que fica a meia dúzia de quarteirões da zona onde parámos.

Tínhamos uma lista de apenas sete artigos, entre os quais um produto de limpeza daqueles cremosos que cheiram a limão. Para além, claro, do ingrediente maravilhoso para o nosso jantar, ao qual já fiz referência e que agora revelo: bami.

Entrámos no supermercado, pingámos o chão, baixámos os capuzes, notei que a disposição das prateleiras estava diferente. Afinal, já há dois anos que não vinha aqui.

A recolha dos artigos da nossa lista para dentro do cesto de compras decorreu sem ocorrência merecedora de registo. Ainda juntei chá verde da Indonésia aos sete artigos da lista, por causa da chuva. É bom beber chá a fumegar quando estamos encharcados. Mesmo em Agosto.

Ao chegarmos à caixa para pagamento, o Erik depositou todos os oito produtos no tapete de borracha preta, para poderem ser lidos pelo leitor de código de barras e registados para pagamento.

Eu cheguei-me à frente, para lá da célula de registo óptico. Preparei-me para receber as nossas compras, com o saco de plástico aberto. Um trabalho de equipa bem encadeado, o Erik e eu.

O caixa do supermercado é um jovem que aparenta ter uns dezasseis anos, tipicamente um dos muitos casos de empregos que os estudantes arranjam no verão.

O jovem passou o primeiro artigo, que eu guardei no saco. E o segundo também.

O movimento brusco que o tapete de borracha preta fez, ao arrancar a sua marcha, pregou uma rasteira à garrafa de detergente cremoso com cheiro a limão, apanhando-a desprevenida. A garrafa caíu, a tampa abriu-se e o detergente castigou o tapete com umas gordas manchas amareladas. A elas, acrescentou-se um riozinho da mesma cor quando o rapaz da caixa removeu apressadamente a garrafa, apertando-a com mais força do que devia. É da tenra idade, penso eu.

Peguei na embalagem acidentada e meti-a no saco, bem fechada, não sem antes me certificar de que tinha ouvido o bip-bip a anunciar que o registo estava feito.

Tinha-se aproximado o encarregado, que andava ali por perto, para ajudar o moço munindo-o rapidamente de pano e spray de limpeza, a aplicar ao tapete, que já cheirava a limão.

O Erik, ao ver a atrapalhação do caixa, interveio para ajudar. Pegou em dois ou três dos artigos que ainda esperavam vez em cima do tapete, e que estavam perigosamente perto do detergente entornado, para que o rapaz pudesse executar os movimentos de limpeza em espaço livre.

No entanto, a boa vontade do Erik fez com que a célula óptica detectora da presença de artigos anunciasse a ausência destes e o sistema desse ordens ao tapete para rolar.

Antes que o rapaz pudesse iniciar a operação, de pano erguido numa mão e spray de limpeza na outra, o detergente entornado desapareceu da nossa vista.

E depois o tapete parou.

Com as mãos ocupadas com os artigos removidos, quis o Erik pousá-los para poder retirar outros e fazer o tapete rolar outra vez, quiçá a mancha cremosa apareceria na outra ponta a deixar-se finalmente limpar.

O melhor local que viu para os pousar foi aquele que daria o resultado mais eficaz: dentro do saco de compras que eu segurava enquanto observava a situação.

Para ajudar o rapaz.

Que entretanto exclamou qualquer coisa que eu não entendi, a apontar para os artigos que o Erik colocava dentro do saco sem terem sido registados para pagamento. O tapete voltou a rolar.

Eu comecei a retirá-los do saco, mas o rápido Erik ainda meteu mais um ou dois lá dentro. A ver se o tapete rola mais um pouco e o rapaz o pode limpar...


No fim, assegurámos que tudo era de novo verificado e registado, pagámos a conta sem que faltasse nada, pedimos desculpas mais algumas vezes e saímos para a chuva.

Enquanto arrumei as compras, ainda a rir, na nossa pequena mas funcional cozinha a bordo, o Erik limpou os vidros da nossa viatura flutuante, embaciados pelo tempo húmido, soltou as amarras e pôs-nos em marcha.

Já em andamento, tomámos o chá verde da Indonésia que tem florzinhas rosa muito bonitas.

E mais tarde, ao jantar, saboreámos a deliciosa refeição asiática que o Erik preparou, a condizer.

Não com o chá, mas com o vinho tinto da região de Setúbal que também se vende por aqui.

06/08/2013

Tempestade

Caíu o primeiro pingo de chuva. Grosso e anafado.

As nuvens densas que se avistavam ao longe parecem agora mais perto.

É quase noite e nós temos o barco atracado junto ao prado onde as ovelhas há pouco não paravam de comer.

Não se vê mais ninguém por aqui. Do lado de lá da fileira de árvores que se avistam daqui, passa o comboio local a cada onze minutos. Ora num sentido ora no outro. Desconfio que não tem condutor.

O moínho típico desta paisagem, que marca a curva do canal de água, ali à frente, tem a silhueta de breu recortada contra o que resta do céu mal iluminado. E vestido agora de nuvens negras.

Reforçámos os cabos que prendem o barco a terra. Vai ser forte.

E enfim começou. O espectáculo de luz branca e som. Primeiro o relâmpago, que é dos modernos, luz de led, para poupar energia. Tão branca, insípida, feia.

Alguns segundos depois o rugir do trovão, irritado com aquilo do led. Eu também não gosto nada desta moda, mas tenho de poupar.

Novo relâmpago led e novo trovão. Desta vez irritou-se mais depressa, o barulhento.

A coisa está-se a chegar para cá.

A chuva começa a cair com uma fúria que aumenta de intensidade a cada momento.

O vento também se juntou à festa e está a agitar a água do canal. Muito.

Estamos dentro do barco, o ipod do Erik toca o Erroll Garner para nós. As notas do piano enchem o espaço, mas são engolidas pelo barulho que a chuva faz a bater no deck, nos vidros, na capota de plástico. 

A chuva, os trovões, a música do Erroll Garner de há quatro décadas, que festa de contrastes. O barco, no entanto, está contente. Dança dança dança.

Lá fora os corpos esbranquiçados das ovelhas estão atarrachados ao chão que estiveram a comer antes de se instalar a escuridão. Alternada pela luz led, potente, da tempestade.

Os relâmpagos sucedem-se uns aos outros em disputa psicadélica, eu cá nunca vi nada assim. Disputa que nenhum ganha, porque afinal todos foram à mesma loja comprar as lâmpadas,  que falta de gosto.

A pizzaria lá do bairro onde vivo, em Lisboa, também tem esta iluminação branquela no tecto.   

As pizzas são boas, mas só ao almoço. A essa hora o led do tecto, ainda que em desenvolvimentos design, reconheço, está apagado. As janelas altas para a rua, felizmente, fazem um bom trabalho.

Agora já sei. Se um dia lá for jantar entro a rugir, como fazem os trovões. Para mostrar que aquilo me irrita.

Entretanto, com a conversa, os relâmpagos fizeram as pazes. Acabou-se a festa psicadélica. Os rugidos não os oiço. O barco já não dança, a chuva também parou. 

Gosto tanto do Erroll Garner. Pena não fazer o barco dançar.

05/08/2013

O agricultor


Parece um carrinho de brincar, de tão bonito que é.

Enquanto Erik faz o nosso barco deslizar pela água quieta do canal, fico a vê-lo trabalhar a terra.

Desenha lenta e pacientemente uma serpentina apertada no terreno, por forma a não deixar nada por fazer. 

Ao progredir, o verde que lhe fica para trás é de um tom diferente daquele que ainda está por calcorrear.

Como não nasci nestas terras, não me fica mal a pergunta. O Erik respondeu, ele sabe.

O agricultor está a revirar a erva que cortou há dias. Para que a camada de baixo fique agora por cima, a secar ao sol. A que esteve por cima passa para baixo, já está seca, não se importa.

Daqui a um ou dois dias de sol, se o houver, esperemos que sim, vai o agricultor recolher toda a erva, já seca. Junta-a depois num grande monte que vai cobrir com um gigante lençol de plástico, para não deixar a chuva entrar. E a erva fica a descansar o resto do verão.

A descansar, sim. Sem apodrecer. Porque o sol lhe levou a água e com ela a hipótese de se instalar uma família muito grande de bactérias a fazer das suas. Nem conto o resto, é terrível.

Quando o inverno chegar, o gado não pode alimentar-se nos prados por causa do frio e da neve. Então, abrir-se-á o enorme plástico protector e a erva sequinha do verão fará as delícias das vaquinhas.

Depois vem o leite, o iogurte e o queijo, já sabemos. E vem muito, que o monte de erva vai durar até Abril.

Se eu fosse criança, pedia um tractor destes ao Pai Natal.

Como não sou, vou antes pedir à chuva que espere um bocadinho e deixe a erva secar.

Para que, quando vier a neve, toda a gente tenha queijinho por aqui. 


E enquanto o saboreiam à lareira, as famílias holandesas planeiam o próximo verão.

04/08/2013

Triplo céu


Ontem o dia acabou assim.
Não sei se é de agora ou se o céu tem este costume. O de se espelhar na janela do barco e na superfície da água ao mesmo tempo. Sem se enganar.

Não pude decidir para qual olhar. E antes que cegasse com a beleza deste quadro, fotografei.

O barco continuou a deslizar, sem fazer barulho. Se calhar já conhece estas proezas do céu.


Acho que os pássaros também. Passantes, diziam, a rir, que eu não sou de cá.



Hoje, a esta hora, ainda o Sol vai a meio do seu caminho e a minha lente já está preparada.
A ver se o céu se atreve outra vez. 

03/08/2013

Dez e dez


Passavam dez minutos das dez horas quando a máquina disparou e congelou o momento. Juro.
A foto está pronta agora para ser metida num catálogo publicitário. Até o ponteiro dos segundos colaborou, apanhei-o na posição preferida dos profissionais disto.

Que mistério. Porque razão os relógios dos catálogos publicitários mostram que a foto lhes foi tirada às dez e dez? Tipo... sempre?!


Foi na revista que compro no aeroporto e que leio avidamente, que descobri a razão.


Nesta posição o observador pode ver livremente a marca do fabricante do relógio. Que normalmente é colocada às doze horas. Ou às seis da tarde. Ou da manhã, para os madrugadores.


E porque não, então, fotografar os relógios às oito e vinte?


Porque, senhoras e senhores, às dez e dez o relógio está a sorrir.



Tal como eu fiquei quando li esta história.


Nota: às dez para as duas o efeito seria idêntico, mas aparentemente quem é destro gosta mais de ver o ponteiro mais longo à direita. E por sermos quase todos destros, os catálogos privilegiam-nos. Injusto, claro. Mesmo com sorriso.