29/06/2016

Uma de nós vai comer a outra

Por um lado, vê-se perfeitamente que este blogue atingiu a saturação, absorveu o seu público e estagnou, começou a escorrer pelas paredes na forma de substância viscosa, um cansaço que dava para uma poesia negra que eu não sei qual é, mas sei que falar do blogue é giro, liga as pessoas. Porém, antes de lhe fazer um shifting ou um lifting, ainda não decidi, vou fazer o meu jantar e mantenho vivo o bloguezinho.

Por outro lado, tem estado uma dourada embrulhada num saco de plástico em cima da bancada da cozinha nas últimas horas a perder o frio que trazia, completamente morta. Isto interesse ter não tem, mas que sabe bem escrever, ai sabe.  

Talvez não seja mal pensado acrescentar que ontem à noite fui a Cascais e quando saí do carro deixei de ver onde punha os pés porque o meu cabelo que não é lá muito curto, se meteu todo em frente da cara, dos olhos, enrolou-se no pescoço que eu senti, o vento soprava muito forte e mudava de ideias em termos de direção a tomar em cada segundo, portanto eu tive de segurar os meus cabelos com as duas mãos para atravessar a estrada em segurança e ainda bem. Porque consegui ver pelo canto superior do olho direito um caixote de papelão aberto num dos lados, tipo pronto-a-usar-em-estando-quieto, a voar como se fosse um caça acrobático em queda picada na minha direção, ao que baixei a cabeça num instante para não ficar encaixotada em Cascais, o caixote arrastou-se depois, perdedor, pelo alcatrão fora a mando do ventão que estava, eu com as mãos na cabeça – aproveitei que já lá estavam a segurar o cabelo e disse valha-me deus mantendo-as ali por ser bastante apropriado - e logo a seguir o caixote tentou fazer-se a um carro que travou a fundo à boca do malandro, posso dizer quase entrou dentro dele, havia de ser um carro encaixotado em Cascais e falta só dizer que não era propriamente um carro enorme.

Isto pus aqui no blogue mesmo assim saturado e tudo, para me entreter enquanto a dourada assava, ela já assou e agora com licença que uma de nós vai comer a outra.

26/06/2016

Orquídea com batatas fritas

Batatas fritas em pacote azul, prioritário, higiénico e assético por não ter os males do costume, parece. São tão boas quanto era vivaço o olhar que ontem estava na carinha do tamboril espalmado no balcão do peixe. Mas é um azul bonito (está ali).

Ando há muito tempo com vontade de escrever um post sobre a Finlândia, qualquer coisa da Finlândia, eu nunca fui à Finlândia - para dedicar à pessoa que me lê todos os dias da Finlândia. Já descobri o que vai ser. (isto é um teaser)

A minha amiga Marina mandou-me uma fotografia dos seus pés com unhas vermelhas de um vermelho sangue, muito bonitos os pés, a mostrar-me como tem evoluído em ornamentação, cedido às pressões oferecidas nos cabeleireiros, só falto eu.

Mas eu as mãos já disse que ornamento com um anel muito belo para compensar os transeuntes de não encontrarem em mim a riqueza da unha pintada, é uma opção devido à poupança de tempo que oferece o meter um anel no dedo, relativamente ao processo de pintar - e deixar secar - dez unhas mesmo que sejam todas da mesma cor. Mas às vezes esqueço-me.

A minha família de três orquídeas grandes e uma pequena foi atacada por um pulgão de boas características multiplicativas, mas só as grandes. Isto ia a primavera a entrar. Uma morreu logo, a mais nova. As outras duas levaram uma esfrega no banho, uns cortes em todas as hastes e foram passar a primavera à varanda. Entretanto esqueci-me qual é a que dá branco e qual a que dá rosa nas flores. Hoje descobri que uma sobreviveu, já vem aí botão de flor, falta saber qual; a outra (das grandes) ainda está vai não vai. Quanto à pequena, a que o pulgão não quis, está aqui, a acompanhar as batatas fritas.


(este post deve-se ao folclore que sou obrigada a ouvir vindo ali do recinto onde puseram um ecrã gigante e agora o futebol tem descanso e eu tenho limites)


(atualização à luz da tarde seguinte, para entreter - lembra-me uma trilogia que Manuel Amado fez do quarto de Fernando Pessoa: sempre o mesmo quadro mas iluminado pela manhã, pela tarde e pela noite)

24/06/2016

No supermercado e depois também (subtítulo: um post estragado)

Enquanto me pingava água do peixe nos pés pensei assim, está a pingar-me água do peixe nos pés e olhei para os pés, neles vi a ideia de escrever isto num post logo hoje, ok. Nessa altura comprei três tipos de peixe para o fim de semana, douradas, robalos e bifes de atum, e depois saí dali e comprei batatas fritas de pacote muito leves e sem ingredientes nefastos (o pacote é azul, dá ideia de prioritário, higiénico e são) para vermos o jogo, comprei cervejas normais (alguém vê futebol da seleção em junho sem cervejas normais?) e cervejas com limão (para as garotas, sim sim, dois por cento de álcool, um por cento para cada uma) para vermos o jogo, comprei tremoços e azeitonas de várias cores para vermos o jogo e comprei um sumo de frutas que dá para avançar no prolongamento em caso de muitos nervos para vermos o jogo (como numa festa).

(mãe, tenho três metros e quarenta centímetros e cento e trinta e cinco quilos de filhas - a minha mãe ri-se sempre quando eu dou dados biométricos não solicitados e ela anda a ler-me o blogue)

Tudo muito lindo, mas este post acaba mal. Eu tinha-me esquecido que as minhas filhas iam este fim de semana existir para junto do pai, encantar o mundo do pai, adoçar os dias do pai, ver o jogo com o pai.


Preferia levar com mais água do peixe nos pés.

22/06/2016

O microfone aos peixes (deve haver lá peixes)

É que um microfone vale dinheiro... sei lá, cem euros? E para além de valer dinheiro, vai levar umas centenas de anos a ser reabsorvido pela natureza do lago francês, na sua infinita sabedoria (a sabedoria é da natureza em geral, em França e em qualquer lado), a sabedoria, dizíamos, de ir buscar de volta aquilo que nós, o Homem (muito cuidado, Homem com maiúscula inclui a Mulher) lhe subtraímos para podermos fazer entrevistas a jogadores de futebol. Isto, claro, se nenhum mergulhador lionense (de Lyon) não se lembrar de ir lá ao fundo apanhar o objeto que a esta hora, bem leiloado, há de ter já passado dos tais cem euros umas cem vezes pelo menos. E transações comerciais assim tão gordas como esta pagam impostos também gordos, os motores indispensáveis para manter uma economia sã. É certo que a CMTV vai ter de comprar um microfone novo, mas devido ao iva incluído na transação, a gente ok, é o impostozinho. Portanto foi bastante bom e ainda por cima há mais, ó: a esta hora um, a malta toda já sabe o nome do diretor do CMTV que veio dizer uma coisa sobre envergonhar o país e dois, o CMTV lançou-se para bons níveis de audiência logo hoje; e isto assim numa análise muito por cima e feita por quem até hoje não tinha bem a certeza do que queria a sigla CMTV dizer, olha três, só neste post deste pequeno blogue de meia dúzia de visitas diárias já lá vão quatro referências à sigla.

De modo que não tem problema nenhum aquilo, faltando apenas acrescentar que até gosto de imaginar um peixinho, por exemplo uma carpa francesa, a sentir a sacudidela do micro a passar-lhe na guelra, mais qu’est-ce que c’est ça, mon dieu? É um microfone.

Portanto não é o aquecimento global nem a taxa de desemprego nem o Brexit nem a cena dos bancos – por falar em envergonhar o país, lembrei-me da cena dos bancos – nem um novo cometa em rota de colisão com a terra, sim?

É mesmo e só um microfone. 

Boa?

(e viva Portugal!)

20/06/2016

Lamechices tolinhas não

Ela tinha uma coisa urgente para me dizer. Como não apareci ao almoço na cantina, que fui preferivelmente apanhar o verão à rua e o almoço também o apanhei, este último à dentada, para ser precisa na descrição que, não sendo um forte meu, é necessária. Mas o cerne é este: ela tinha uma coisa para me dizer e disse. Entra-me pela sala adentro (adentro dá mais penetração que dentro, embora penetração aqui talvez não fique a matar mas faz falta, lá está, à descrição), e diz-me:

Então as férias? Descansou? Está melhor? A anemia já passou? Tomou o ferro?

Sem me deixar responder, que a urgência do que vem a seguir impõe-se, a dona Esmeralda chega-se mais à minha secretária, baixa um pouco a cabeça e lança finalmente o que pretendia dizer-me:

Olhe que estou a adorar o seu livro.
Qual deles? – com ela eu gosto de fazer render o peixe, mesmo quando sei a resposta.
O que me ofereceu.

Para o caso de o leitor ser ligeiramente curioso, o livro de que falamos foi procurado por mim para ser oferecido especificamente a esta senhora que quer ler histórias de amor e intitula-se Tim, é de Colleen McCullough.

Ai adoro o livro! Já vou muito adiantada!
Ainda bem, eu sabia que ia gostar, andei à procura dele para si - aqui dei-lhe um sorriso porque isto é coisa que me faz feliz, encontrar livros para as pessoas.

Depois, em jeito de quem conta um segredo, chegou-se ainda mais e, a baixa voz:

- Às vezes até vou para o jardim lê-lo! 

E logo a seguir continuou, mais descontraída. 

- Ontem – ontem foi domingo – o meu irmão foi lá almoçar comigo e eu disse-lhe assim, ó Jacinto, tu mal saias para ires para casa eu arrumo a cozinha e vou logo para o jardim ler o livro!

Por outras palavras, estamos a assistir a uma dona Esmeralda que corre com o irmão depois de almoço. Mas por uma boa causa, evidentemente. 


E agora é o momento em que peço às minhas leitoras e leitores sugestões urgentes, se fizessem favor, de livros para a dona Esmeralda. Requisitos: histórias de amor, de preferência com final feliz mas sem ser lamechices tolinhas que ela é mulher inteligente e o resto é conversa, sim? 

Muito obrigada.

(eu já estou a pensar no Crime do Padre Amaro, mas hesito... o final não é feliz, pois não?)

18/06/2016

Se leio vou aonde me levam, se escrevo vou aonde quero (mas nem sempre)

Escrevo, polvilhada num texto sério, a mesma expressão uma e outra vez e mais outra. Tantas que, após um certo número, a expressão se escreve autónoma, isto é, ao comando fica ela, de muito se repetir ganha vida própria, sabe o caminho. Por instantes, confiando à expressão a condução do trabalho, a minha mente solta-se e vai, de novo, aterrar no troço de estrada onde tentei encaixar uma vida sonhada, repetidamente. O troço de estrada tem uma ciclovia vermelha que parece real e lhe faz a companhia que o tráfego lhe nega, pois ali escasseia. A ciclovia vê-se, porém, também deserta: toda a infraestrutura ali estendida ao sol foi deixada às contrações sazonais do frio e do calor, sem aparente serventia, a tomar do ar costeiro as salinidades e as brisas sem que alguém a tome por sua. Eu, está visto, quero-a. Sou de lugares vazios, abandonados, rejeitados pelas massas, sou de espaços livres. No fim do troço de estrada há uma curva que convida a contornar a rotunda, a curva servindo de morada à única loja, que parece uma barraca de feira, é ambulante. Uma das últimas vezes em que lá passei, parei. Para apanhar um punhado daquele lugar, fazê-lo meu, entrei na loja, que é de cestos de praia, de baldes e forminhas, de pulseiras com pedras para todos os signos, de espanta-espíritos, de livros de bolso com as capas curvas da humidade e descoradas do sol, de cremes protetores de muitos índices, de panos com palmeiras estampadas a esvoaçar pendurados, de toalhas de praia com ocasos longínquos de vários tons, de chapéus de sol às riscas e eu destes vou e compro um, azul e branco, para condizer com o mar. Assim me fiz dali pertença, assim introduzi uma palavra minha no lugar, podia ser bom dia, que deixei colada ao verso da capa curva de um livro. Talvez tenha sido por isso que, quando lá quis voltar num verão seguinte, a loja não estava. Ninguém tomou a ciclovia, ou mesmo sequer o troço de estrada estendida ao sol, oferecida às salinidades e às brisas costeiras, e a loja mudou-se. No seu lugar a poeira escurecida no chão, sombra da vida que ali não vingou, uma vontade em cinzas. Na curva da estrada deserta, batida a vento marinho, sinto o arrepio nos ossos, estremeço, tantas vezes para aqui chamada, forço-me a emergir à superfície, os meus dedos esperam-me; passaram segundos, a expressão repetida polvilhada no texto sério está pronta e eu primeiro inspiro fundo, depois expiro e continuo a trabalhar.

15/06/2016

O post que não se percebe do que é (mas tem essência, claro)

Entro no dia saboreando devagar dois capítulos do livro da Hélia Correia. Já tinha decidido que este é dos melhores livros da minha vida, mas foi hoje que, digamos, assumi. Por exemplo, ela pode bem ultrapassar Dostoiévski na minha escala, ai pode pode. E a Saramago chega-se muito perto, o que dá que assim nem fica ele tão só. Meto o pensamento no bolso para o tornar a usar enquanto, mais tarde, aspiro o chão, uma barulheira este aspirador, seria descabido o Nobel?, limpo o pó e vou dobrando o pano deixando viradas para fora as partes limpas até não haver partes limpas, qual descabido, pensando bem nem sei de que estão à espera para lhe dar o Nobel, lavo a casa de banho, que é das tarefas que não me agradam mas fica sempre tão bem feitinha, não serão justas as comparações, claro, nem eu devia fazê-las, cada um escreve como escreve e todos fazem falta, ai o que seria do mundo sem Dostoiévski, deito água no balde até meio, ou sem Saramago, nem pensar nisso, meu rico Saramago, agora duas golfadas ou três do líquido verde de limpeza para dentro da água do balde, eu se um dia cegasse seria muito infeliz por não poder ler, lavo o chão do piso superior, que não é extenso, há livros áudio, pois há, mas que é lá isso, a leitura é para ser em silêncio, e as casas assim pequenas não são más de limpar, enquanto o chão seca em cima, atiro-me à loiça no piso de baixo, de lavar a loiça gosto eu, os pensamentos são como as cerejas e ocorre-me outra vez aquilo da crítica literária, mas que falta faz a crítica literária à gente?, quem precisa de crítica literária?! e com isto quase ia para me esquecer de contar as duas máquinas de roupa que estendi ao sol enquanto o houve, que foi de manhã que houve, até parecia ali de repente um dia junho, e enquanto mudo as camas caramba, estes lençóis de elástico são práticos mas esticá-los está quieto, o caramba é daqui: parece impossível ter chegado a esta idade sem Hélia Correia, eu se calhar devia ter vergonha e ficar caladinha, afinal não vim cá contar quando me encantei com o Dinis Machado, pois não? e tanto me ri com ele, depois, já noite, passo a ferro a primeira máquina que não secou bem, o nevoeiro voltou a subir o monte e vinha todo de amores com a chuva miudinha, ainda parece que se divertem a chuva miudinha e o nevoeiro, ou com o Afonso Cruz, que mete desenhos nas palavras o Afonso Cruz, e inventa lugares impossíveis, estou mesmo farta deste fevereiro metidinho, os pirilampos coitadinhos vê-se perfeitamente agora no escuro que nem conseguem dar as voadinhas deles como deve ser à procura das fêmeas, as fêmeas estão no chão a piscar a sua luzinha, cheias de esperança, as fêmeas não voam, são confinadas à espera que é prima da esperança, da Clarice Lispector contei, também me encanta a Clarice, quando ela quis oferecer um presente à sua máquina de escrever, ah! aí contei e foi bom, foi não?, e claro que no fim do dia estava com as mãos secas como carapaus, tanto detergente tanta dobra do pano do pó tanta coisa, lá fui passar creme nas mãos, e ainda antes de terminar o post que está mesmo a extinguir-se, dizia eu que devia ter vergonha e não tenho, o que tenho é esta vontadezinha integrada de escrever todos os dias agora que há vagar, agora que posso, agora que estou de férias.

13/06/2016

Nem junho nem o telefone esperto

Ainda não são seis horas, pelas frinchas da janela passa uma claridade fraca. Levanto-me e acerco-me dela, mostra lá o dia, ó janela, toma nevoeiro, queres nevoeiro? Não, hoje quero mais sol, podia ser junho para hoje? Mas é nevoeiro que temos, talvez um farrapo de dezembro ou de fevereiro, e do espesso: bom, perfeito para poemas místicos de feiticeiros, elfos e cavalos alados, mas isso não é aqui. Aqui arde-me o peito. Lá fora, a espessura branca barra-me os olhos, não os deixa cair no vale, ó janela dá-me junho. Varro, então, as folhas da palmeira que nasceu aqui de conjugações naturais ou forçadas, desconfio que forçadas. Varro-lhe as folhas com os olhos, uma árvore é uma árvore, mesmo que seja destas, fora da caixa, ó janela, as folhas enormes brilham da saturação que o ar não pode mais conter, estão molhadas, molhadas. Levo a mão ao peito e sinto-lhe o ardor que não está dizente com este fevereiro, um dia assim e o meu peito a arder. Isto não é poesia, desenganemo-nos já, que aqui não temos poesia, aliás aqui temos muito pouco. Arde-me o peito por ter adormecido ao sol de ontem, que o houve, se houve!, e que me queimou a pele. Abandono a janela ao nevoeiro espesso, adeus janela, e imagino, quase invejando, que do outro lado talvez seja esse verão, atrás do qual me vejo correr. Na casa-de-banho, dentro do armário, está o creme que espalho no ardor do peito e no espelho, à minha frente, encontro o mesmo tom vermelho no nariz e na testa, ena! olha uma índia. Passo o creme também aqui, e regresso ao quarto. Viro as costas de propósito à janela e pego no telefone esperto que, afinal, coisa rica, é uma janela maior, uma janela para o mundo, deixa ver, queridinho, diz lá as horas, dizes? Noto, então, num cantinho desta janela, um sinalzinho na zona destinada aos sinaizinhos do telefone esperto e vou lá ver o que é, mostra lá isso tic.

Duas horas até ao trabalho - queria o sinalzinho dizer num dia feriado no meu trabalho e, não contente com isto, ainda tem outra mensagem, ó que maravilha: um lembrete, não fosse eu ter enlouquecido ou assim, de que hoje é o aniversário da minha própria filha.

Nem é isto um junho nem o meu telefone é esperto.


(para castigo de ambos, fica um pedaço do junho que ontem esteve aqui)

10/06/2016

Dia de Portugal

“Houvera, de algum modo, um atrofiamento na idade mental de toda aquela gente que ainda fora educada para um padrão de vida cuja glória assentava num ofício promissor e num acrescentar sem fim de aparelhagens e mais assoalhadas para as conter. Mas, nos últimos tempos, viviam de subsídios e pequenas malícias, o que, ao longo dos meses, os emparvoecera, tornando-os temerosos e falhos em piedade, como se regressassem ao descuido da infância, quando se encontra sempre a comida na mesa e a mão do pai sobre a cabeça, a perdoar.”


Hélia Correia
Insânia
Relógio D'Água Editores, 1996

06/06/2016

Uma história de amor

- Eu tinha muito tempo, filha, a camioneta só passava daí a duas horas e por isso, olhe, limpei a campa, tirei os caracóis, as caracoletas, estava cheio de caracoletas o retrato do meu marido, é o tempo delas, sabe?... tirei todas, limpei tudo, pus flores novas, claro, mas roubaram-me uma jarra, eu tinha duas e só lá estava uma, alguém levou, filha, e quem é que leva assim jarras das campas? o coveiro diz que não viu nada, eu acredito, coitado, ele não pode ver tudo, não é? paciência, o que hei de fazer? e então pedi-lhe para pintar, filha, para ficar mais arranjadinho ali em volta, sujam-se muito as campas, e ele vai pintar, o coveiro, eu dou-lhe dez euros e ele pinta a campa do meu marido. E depois, ainda tinha tanto tempo... tinha tempo...

- Conversou com ele.

- Sim, isso, filha, conversei com o meu marido. Até lhe disse que pintei o cabelo, perguntei-lhe se de lá de onde ele está gosta de me ver o cabelo assim.

Dizendo isto, a dona Esmeralda leva a mão ao seu cabelo curto, pintado pela primeira vez na vida, submetido a um dos atrevimentos nunca permitidos pelo marido, que não, pintar para quê se és velha? queres ser nova? não és nova, mulher! 

E a dona Esmeralda agora realmente mais nova, um bocadinho mais nova, conta-me isto à tarde, eu levei-lhe mais um livro, desta vez é uma história de amor, dona Esmeralda, ela quer histórias de amor, passa a mão no cabelo como se fosse ali um tesouro, à hora do almoço levanta a touca que usa para servir os pratos e mostra o cabelo a toda a gente, pergunta se gostamos, nós gostamos, e agora está aqui à minha frente, trata-me por filha, agradece-me o livro que aperta junto ao peito, diz que vai sentir a minha falta quando eu sair, eu vou sair, pergunta se me pode dar dois beijinhos, claro que pode, pede desculpa por ter alguma coisa na cara que eu não senti, o que eu vi muito bem foi o que sucedeu quando mostrou o cabelo ao marido, aqui, outra vez, para ele ver se gostade lá de onde ele está, o meu António, vi muito bem assomarem as lágrimas que ela segura com força nos olhos.

04/06/2016

Pai Nosso que estais nos pés (ou então não sei)

- Leite?!

- Sim, leite, leitoso, esbranquiçado…

- Desculpe lá… isso fica horrível, não ponha leite.

Nem sempre as minhas visitas semestrais ao cabeleireiro me devolvem um bem estar completo, especialmente se encomendo um tratamento global que é como quem diz dos pés à cabeça embora com algumas interrupções geográficas pelo caminho, cujo detalhe deixamos de lado.
O meu pé espetado para a área de atuação da Paula e ela horrorizada a olhar para mim. Horrorizada não é exagero.

- Oiça, ninguém põe branco leitoso nas unhas dos pés. Isso é o mesmo que nada.

- Então que cor sugere?! -  tenho uma mente aberta, embora não muito muito aberta.

- Uma cor viva, este vermelho, por exemplo. – e segura no ar o vidrinho vermelho sangue, um tom bonito, sem dúvida bonito.

- Não, isso não sou eu. É o branco leitoso, se faz favor.

Ela encolheu os ombros, suspirou como eu faço quando entro no supermercado devido a aborrecer-me ir ao supermercado, e com um jeitinho mesmo assim, vá lá, de um frete disfarçado, pincelou as minhas dez unhas dos pés com aquele tom todo muito mais eu. Foi provavelmente a quarta ou quinta vez na vida que pintei as unhas dos pés, isto contando com os dois casamentos que fiz sobram três no máximo, de modo que não vou mal para a idade que tenho, sendo que a cor foi provavelmente sempre a mesma.

Agora pergunto-me, será por eu ser assim tão esquisita com as pinturas das unhas que ontem a Clara Ferreira Alves me despachou à velocidade do som (se fosse para exagerar diria da luz, velocidade da luz) quando lhe fui pedir um autógrafo no meu Pai Nosso? Ela nem para o meu rosto olhou, para os pés é verdade que muito menos, que ainda por cima iam absolutamente calçados, mas talvez ali, de Pai Nosso na mão, ela tenha pressentido isto em mim, esta inabilidade para normalizar, me querer fazer bela, sei lá, esta coisa assim estranha, ninguém, ninguém pinta as unhas dos pés de branco leitoso, como toda a gente sabe.

Pois é uma simpatia, a CFA.

03/06/2016

Música no coração

Ontem arranjei a desculpa de ser dia da criança, deixei o trabalho sossegadinho sem ninguém a fazê-lo, peguei nas minhas, que de crianças já têm pouco, e levei-as à Feira do Livro. Parece que ali o ar até se respirava melhor. Mesmo quando, ao sair do parque de estacionamento subterrâneo, desembocámos na casinha alegre das farturas, o ar estava tão bom de se respirar; enchi o peito todinho dele sem me fartar (ai). Já a noite caía ali pelo Parque abaixo e nós antes pelo Parque acima, eu digo: é esta a minha festa. Não é festivais não é pulos não é barulho, é Feira do Livro. 

Durante a subida, que foi sendo lenta, um para-arranca todo voluntário, mãe olha aqui e mãe olha ali, isto a passo de caracol vai-se fazendo por entre as pessoas, somos convivas da mesma festa. Pedaços de conversas pelo ar, ouvem-se nomes de autores, soltam-se títulos de livros, a minha irmã é doida pelo Eça, ouvi a um rapaz, eu quando gosto de um autor leio-lhe os livros todos, ouvi a um senhor.

E ouvimos cantar. Quem lá vem é uma mini-menina, sobe a calçada a cantar. Traz uma coroa de cartolina na cabeça e, a plenos pulmões, entoa cantiga desconhecida para mim, à qual as minhas filhas prontamente se juntam, lá lá não sei quê, lá lá não sei quê, mas que canção é essa? é do Frozen, mãe, lá lá não sei quê. A mini-menina da coroa passa agora por nós, ouve-se ainda mais alto a cantoria, as minhas filhas também, eu estranho mas elas não e cantam e cantam. Pela mão leva a cachopinha duas pessoas grandes da sua família, lá lá não sei quê. Os restantes familiares, que não são poucos, caminham atrás e riem-se daquilo, toda a gente suspensa a olhar a miúda, uns de livros na mão outros de mão nos livros. A Feira parecia parar em onda, tipo jogo no estádio de futebol mas aqui tão perto, a ver a banda passar, até me lembrei do Chico. Ai esta miúda, ai valha-me deus, diziam as senhoras que a seguiam, o corso encabeçado pela mini-cantora, até vou dizer mini-soprano, já disse, ia abrindo caminho. Lá lá não sei quê mais umas vezes até se começarem a sumir os acordes por ali acima e, aos poucos, as gentes retomaram os livros e o bruaá tornou a instalar-se. Ora eu, que cantar não cantei, trouxe a música no coração.

Mas também trouxe livros. Entre eles um novo autor, aliás autora: Hélia Correia. Como isto é uma espécie de juntar um novo membro à família, pus-me logo a lê-la mal escorreguei entre os lençóis. Gostei, ai se gostei, caramba, a Feira do Livro é uma festa que continua.

(e como também gosto de ver as fotografias dos livros que os colegas bloggers compram, posto aqui a minha, voilá)